‘Capacitismo nos subjuga e adoece’, reforça vítima de assédio no JEF/Ribeirão Preto


30/06/2023 - Giselle Pereira
Não é a primeira vez que o Sintrajud recebe denúncias sobre a postura do juiz Paulo Arena Filho. O sindicato vem acompanhando os casos e exige apuração das denuncias de assédio moral.

Servidores e ativistas anticapacitismo durante o protesto no JEF/Ribeirão (Fotos: Gero Rodrigues).

Com os olhos lacrimejando, João Carlos França Peres, conhecido carinhosamente como ‘Johnny’ — servidor do JEF/Ribeirão Preto —, entrou acompanhado por dirigentes do Sindicato na sala onde trabalhou por 14 anos. Visivelmente emocionado, ele recolheu pertences como livros, cadernos, canetas, crachá, e agradeceu o apoio dos colegas, que de pé observavam toda a movimentação. A esposa do servidor o aguardava apreensiva, no hall de entrada do prédio.

Acompanhado pela diretoria do Sintrajud, ‘Johnny’ recolhe seus pertences no espaço que trabalhou por 14 anos. Foto: Gero Rodrigues

Na despedida do Juizado Especial Federal (JEF), no dia 23 de junho, apertos de mão, abraços e choro marcaram a saída de João, cuja disponibilidade à Diretoria do Foro foi requerida pelo juiz Paulo Arena Filho, presidente do Juizado e auxiliar da desembargadora Marisa dos Santos. Para Arena, a deficiência auditiva e o direito ao teletrabalho sem acréscimo de produtividade tornariam a permanência do servidor incompatível com as necessidades da unidade.

O Sintrajud demandou à Corregedoria Regional Federal na 3º Região que apure a conduta do magistrado. O caso, caracterizado pela diretoria do Sindicato como mais um episódio de assédio moral, além de capacitismo, vem ganhando repercussão nacional na mídia (veja aqui) e solidariedade de parlamentares e entidades de classe (confira abaixo).

O colega, que ingressou no Poder Judiciário em vaga reservada para pessoa com deficiência, salienta que essa possibilidade é fruto de uma conquista histórica de diversos movimentos sociais e populares. Porém, é justamente esta condição, que deveria ser motivo de orgulho para a administração, que está na centralidade do pedido do Sintrajud de apuração de assédio e capacitismo.

Fabiano dos Santos, diretor do Sintrajud e coordenador da Fenajufe, conforta a colega de sala de João, servidor vítima de capacitismo. Foto: Gero Rodrigues

Vale ressaltar que os órgãos públicos têm o dever de oferecer as condições de trabalho adequadas para as diversas formas de deficiência dos servidores, o que inclui acessibilidade, mas também acolhimento pessoal e uma rotina saudável.

O servidor havia, menos de um mês antes, obtido o legal e legítimo direito à condição especial de trabalho, com base na Resolução 423/2021-TRF3. O expediente tramitou na Subsecretaria de Gestão de Pessoas da Justiça Federal, e o Diretor do Foro, juiz Márcio Ferro Catapani, havia reconhecido “os requisitos legais para a instituição da condição especial de trabalho ao servidor, a fim de exercer suas atividades em regime de teletrabalho, sem acréscimo de produtividade”.

Companheiras e companheiros da Justiça Estadual também participaram do ato contra o assédio moral no JEF/Ribeirão. Foto: Gero Rodrigues

Como forma de retaliação, avalia o servidor, o juiz pediu a sua disponibilidade. Johnny, que tinha direito legal a redução da carga horária, mas não  solicitou o benefício, havia sido designado em 2022 para trabalhar no balcão virtual. “Eu tinha medo de trabalhar naquele formato, assim como outros colegas. Atendia muitas pessoas e como eu não escuto direito, geralmente tinha que pedir para as pessoas repetirem a solicitação. Por vezes, fui hostilizado”, relatou, informando que buscou ajuda com psicólogas da Justiça Federal.

Orientado a fazer uma denúncia formal, o servidor procurou o Sindicato, que há anos realiza campanha contra o assédio.

Foi durante um dos atos promovidos pelo Sintrajud contra a Resolução 514/2022 (que praticamente extinguia o teletrabalho na Terceira Região e acabou sendo substituída pela Resolução 565 após a mobilização) que João fez relatos do sofrimento psicológico que estava vivendo. Na ocasião, segundo ele, outras servidoras e servidores também relataram situações de assédio em outras unidades do Judiciário Federal de São Paulo. “Nunca recebi queixas em relação ao meu trabalho, sempre cumpri metas e não tinha faltas. Meus superiores poderiam ter me alocado para trabalhar em qualquer atividade, mas me colocaram no balcão”, salientou, referindo-se às dificuldades laborais por conta da deficiência auditiva no desempenho de atendimentos por videoconferência.

“Tive que explicar minha condição de deficiente auditivo e até pedir desculpas ao juiz Paulo Arena. Me senti humilhado”, recordou ‘Johnny’.

Ester Nogueira, diretora do Sintrajud, panfletou no hall de entrado do JEF/Ribeirão e dialogou com os colegas sobre a campanha contra o assédio promovida pelo sindicato. Foto: Gero Rodrigues

No dia seguinte à transmissão ao vivo do ato, realizado no dia 5 de maio, o juiz tirou a função comissionada que João Carlos manteve por dez anos. O servidor menciona que recebeu um e-mail na noite de uma segunda-feira, sem justificativa. Na semana seguinte, na busca por explicações, soube que o magistrado fizera o pedido por “não ter gostado das minhas falas na live do Sintrajud”.

O servidor contra-argumentou alegando ser um desabafo por conta de toda a pressão que estava passando no ambiente de trabalho. Em conversa com o juiz, perguntou se o trabalho desempenhado estava ruim e se o rendimento havia caído. “Minha chefia me destratou, disse que eu era ‘surdo seletivo’, me chamou de menino sensível e mimado. Pior, disse que eu era uma pessoa difícil de trabalhar”, expôs indignado. O servidor contou ainda que estava prestes a se casar e aquilo foi como um ‘banho de água fria’, pois “retiraram minha função nas vésperas do meu matrimônio”.

Selo da campanha contra o assédio.

João Carlos não se deu por satisfeito e dias depois procurou o juiz Paulo Arena para conversar. “Ele e outros membros da administração do Juizado me destrataram e exigiram que eu pedisse desculpas e questionaram: “nossa, não é que ele teve coragem de vir aqui?”. Pressionado, pediu desculpas. Na conversa, solicitou que reconsiderassem a decisão, mas a negativa foi imediata. No episódio que se seguiu, o servidor teve que explicar a deficiência.

Ato em frente ao Fórum Trabalhista Rui Barbosa (Barra Funda) pela punição do Juiz Marcos Scalercio, acusado de assédio sexual contra mulheres em SP. Foto: Kit Gaion

Na entrevista concedida à reportagem do Sintrajud, no dia do ato promovido pelo Sindicato contra o assédio moral, no JEF/Ribeirão Preto, João disse que na época sentiu-se deprimido, sem vontade de conversar até mesmo com as pessoas mais próximas e a família. “Minha esposa temia que eu desaparecesse ou até mesmo atentasse contra a minha própria vida”. Ainda sobre a conversa com o juiz, citou ter sido orientado a recorrer à Resolução 423/202 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que dispõe sobre as condições especiais de trabalho para magistrados e servidores com deficiência ou que sejam pais ou responsáveis por dependentes nessa condição.

O juiz disse que, se ele tivesse coragem, fizesse o pedido à Diretoria do Foro. “Não pensei duas vezes e pedi a ajuda ao Sintrajud, que não mediu esforços em me ajudar, e o magistrado teve que reconhecer o meu direito ao teletrabalho como Pessoa com Necessidades Especiais (PNE)”. Mas, apenas após 20 dias, Paulo Arena pediu sua disponibilidade. “Ainda estou desesperado, pois não sei para onde eu vou. Tenho quatro elogios na minha ficha funcional e 14 anos de trabalho no JEF, mas parece que nada disso evitou a minha saída ”, indignou-se.

Sintrajud relata caso de capacitismo a presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Alesp, deputada Andréia Werner (PSB).

Reconhecimento internacional da pessoa com deficiência

Em 1992, a data 3 de dezembro  foi instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) como Dia Internacional da Pessoa com Deficiência. O objetivo era promover os assuntos relacionados e aumentar a consciência sobre a importância da inclusão dessas pessoas. Antes disso, em 1981, ocorreu o Ano da Pessoa com Deficiência, também declarado pela ONU, com objetivo de trazer voz à luta. Graças a isso, diversos movimentos se organizaram para lutar por políticas públicas e outras conquistas, como a própria Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em 2006.

Recorrência

Outro servidor que já fez parte do quadro funcional do JEF/Ribeirão Preto narrou à reportagem do Sindicato ter vivido assédio por anos. A situação levou a vítima a um quadro de stress crônico [também conhecido como esgotamento], posteriormente agravado para Síndrome de Burnout. Sob uma constante de retaliações e condutas abusivas que acarretaram em afastamento por doença, o serventuário se viu desprotegido, sem esperança e subjugado, até que conseguiu uma remoção para outra unidade.

“Assédio moral no Judiciário é uma constante e os principais algozes são os juízes, que ficam impunes”, critica servidor que sofreu de Burnout, após ser colocado em desvio de função.

Diretores do Sintrajud carregam faixa contra o assédio moral na galeria da Alesp, em protesto aos assédios no Poder Judiciário Federal. Arquivo Sintrajud

“Depois de quase uma década em desvio de função, perda da minha capacidade de ler, escrever e de interagir com os meus colegas, aos poucos fui levado ao ostracismo. Eu, que era uma pessoa saudável, fui adoecendo ao ponto de pedir afastamento”, contou, pedindo para manter a identidade em sigilo. O pedido de ajuda à psicóloga do Judiciário, acarretou em processo administrativo contra ele. Não suportando a pressão extrema, pediu para sair da vara onde trabalhava e por mais de uma vez, o pedido foi negado, o que agravou a doença.

O servidor, que acumulava elogios no prontuário, pediu socorro relatando à administração as condutas abusivas vividas. A  perícia médica orientou remoção, e finalmente o pedido foi aceito. Ele havia indicado duas varas onde poderia desempenhar suas funções, mas foi mandado para um local distante de onde residia. “Ainda assim, considero uma vitória. Agora estou em recuperação de todo esse processo de assédio”.

Sintrajud recebe apoio da Deputada Estadual Mônica Seixas (Psol), na campanha contra o assédio moral e sexual no Judiciário. Ela discursou na Alesp em defesa do servidor do JEF/Ribeirão.

Ele reforça a crítica à postura  do Poder Judiciário em relação aos assédios. “São políticas que visam apenas gerar números e mostrar que o Judiciário intervém nessas práticas abusivas e criminosas, mas na verdade, nada é feito e os principais disseminadores de assédio, que são os juízes, permanecem impunes”, desabafa o servidor, que também relatou ter sido perseguido pelo Juiz Paulo Arena Filho.

Corroborando com o argumento dos trabalhadores, pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) destaca que 56,4% dos servidores do Poder Judiciário afirmam já terem sofrido algum tipo de assédio no local de trabalho. Destes, 74% apontam que os assediadores ocupavam cargos superiores aos deles. A pesquisa também chama a atenção para o fato de que 90% das vítimas não denunciaram o crime por motivos como vergonha, medo de sofrer represálias ou por achar que não daria em nada.

O Sintrajud reforça a importância da campanha permanente contra o assédio moral e sexual e orienta aquelas e aqueles que estejam passando por situações similares aos casos acima, que entrem em contato com o sindicato.

 

 

 

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