‘Viés eleitoreiro’: CPI mira trabalho social na Cracolândia e Padre Júlio Lancellotti


12/01/2024 - Niara Aureliano
Está no debate público a inacreditável perseguição a um padre que atua com pessoas em situação de rua e vulnerabilidade social na Cracolândia, no Centro; região é marcada pela exclusão, desigualdade e pela crise habitacional que afeta São Paulo

Reprodução: Instagram

Perpetrada pelo vereador Rubinho Nunes (União), base do prefeito da capital Ricardo Nunes, a chamada ‘CPI das ONGs’ foi protocolada na Câmara Municipal da cidade mirando o Padre Júlio Lancellotti, Vigário Episcopal da Arquidiocese de São Paulo e da Pastoral do Povo da Rua, e o trabalho que executa com dependentes químicos que se aglomeram na região central.

O requerimento de criação da CPI, de 6 de dezembro de 2023, não cita o Padre Júlio. Argumenta que tem a “finalidade de investigar Organizações Não Governamentais (ONGs) que fornecem alimentos, utensílios para uso de substâncias ilícitas e tratamento aos grupos de usuários que frequentam a região da Cracolândia”, e ainda destaca que “a atuação dessas ONGs não está isenta de fiscalização, sendo necessária a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), até porque, algumas delas frequentemente recebem financiamento público para realizar suas atividades”. O pedido teve o apoio inicial de 22 vereadores de São Paulo.

O religioso não possui vínculo com ONGs conveniadas ao município de São Paulo. Nas redes sociais, o vereador Rubinho Nunes, que é ex-integrante do Movimento Brasil Livre (MBL), disse que convocaria Lancellotti para “prestar esclarecimentos”.

Nítida é a intenção do parlamentar em criar um antagonismo com o Padre tendo em vista as eleições municipais de 2024. Coaduna também com o discurso recorrente da direita e extrema-direita de que o trabalho das ONGs auxilia na expansão da Cracolândia. Narrativa essa que desconsidera a crise habitacional em São Paulo, que tem mais de 54 mil indivíduos em situação de rua e onde está uma em cada 4 pessoas vivendo nas ruas no país, de acordo com levantamento do ano passado do Observatório Nacional dos Direitos Humanos. E que o poder público não consegue apresentar soluções para o problema.

A diretoria do Sintrajud se solidariza com o Padre Júlio Lancellotti, repudia ataques e perseguições a ele e à organizações que, executando trabalho social na região, aplacam a fome de milhares jogados na miserabilidade. Enquanto isso, o Estado atua com medidas higienistas de dispersão de pobres e dependentes químicos do Centro, rejeitando as saídas necessárias e eficazes: moradia, assistência social, renda e trabalho. É necessário, antes de tudo, olhar tais pessoas com a humanidade que lhes foi retirada ao serem lançadas nesta situação.

É neste sentido que reside a apreensão de servidoras e servidores que se inquietam com a possibilidade de realocação para o conjunto próprio do Tribunal Regional do Trabalho (TRT-2) na Avenida Rio Branco. A política da repressão e o clima permanente de conflito, inclusive com o uso sistemático de bombas de efeito moral, entre a Polícia Militar e Guarda Municipal e a população em situação de vulnerabilidade, angustiam os colegas.

Sem o trabalho social nesta região, a situação seria ainda mais caótica, defende o Sindicato.

Logo, uma CPI forjada para defender os interesses da especulação imobiliária e angariar votos de simpatizantes da extrema-direita paulistana precisa ser obstruída na Câmara Municipal. Se instalada em fevereiro deste ano, avançará o projeto higienista e autoritário, que desconsidera a questão da dependência química como caso de saúde pública e da miséria como ausência de atuação do Estado para mitigá-la.

Especialmente no encerramento do expediente há preocupação com eventuais situações de violência.

Ato de 8 de janeiro, na Avenida Paulista. Foto: Niara Aureliano

“Essa CPI se trata de uma estratégia eleitoreira para criar factoide e disseminar ódio contra pessoas que já estão em situação de vulnerabilidade e contra quem luta para mudar essa realidade. Deveriam estar preocupados com a formulação de políticas públicas para a proteção dessas pessoas, além de evitar que mais trabalhadores cheguem a essa condição. Com as reformas trabalhista e da previdência, o arcabouço fiscal, pandemia, a qualidade de vida da classe trabalhadora piorou. O padre Júlio defende o direito de todas as pessoas exercerem sua humanidade, independente da condição econômica que elas tenham. Seu trabalho deveria ser apoiado e ampliado pelo poder público”, destacou a diretora Camila Oliveira.

Em solidariedade, no último 8 de janeiro, centenas se reuniram na Avenida Paulista para realizar um ato pró-democracia e em desagravo ao Padre Júlio Lancellotti.

Oposição quer obstruir CPI

Ao Sintrajud, a vereadora Luana Alves (PSOL) criticou os governos de Ricardo Nunes e Tarcísio de Freitas (Republicanos) e a política de tratar a questão como “caso de polícia”, frisando que perseguir o trabalho social realizado ali é continuidade de tal política repressora.

“Para nós do PSOL, é um absurdo completo. A postura é de obstrução. Estamos com bastante expectativa que essa proposta não vá para frente. Para ir para frente teria que passar por um acordo no Colégio de Líderes, que vai começar em fevereiro, e nós não temos acordo com essa proposta”, pontuou a parlamentar.

Ela também convocou a sociedade civil a acompanhar o assunto e seguir pressionando para que a instalação da CPI não passe. “O que a gente vê é que se tenta mascarar o debate da Cracolândia. A realidade é que a prefeitura tem cortado atendimento em saúde, em assistência; tem feito uma política desastrosa de policiamento; e tenta agora jogar culpa no Padre Júlio e em todos os movimentos e entidades que fazem trabalho ali na região”, opinou.

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