A lógica fiscal aplicada há longo período no país, e mantida com alterações pontuais no projeto aprovado este ano no Congresso Nacional, é seletiva: beneficia empresários e banqueiros credores das dívidas públicas, enquanto é usada para justificar o congelamento salarial, o desrespeito à data-base dos servidores e restringir os recursos aplicados nos serviços públicos prestados à população.
Foi o que afirmaram representantes de entidades sindicais que participaram da audiência pública, realizada na Comissão de Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados, para tratar do direito à revisão anual dos salários dos servidores e servidoras públicas no país. O Sintrajud participou da atividade.
“Embora todos os governos tenham aplicado políticas que achatam os salários do funcionalismo, inclusive com medidas nocivas aos direitos sociais, como o teto dos gastos e o arcabouço fiscal, há a possibilidade de crescimento pela inflação para o orçamento anual”, observou o servidor Fabiano dos Santos, coordenador da Federação Nacional dos Trabalhadores do Judiciário Federal e do MPU (Fenajufe), ao contestar os argumentos contrários à proposta de emenda constitucional levantados pela representante do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos que falou, por vídeo, na audiência, a subsecretária Regina Coeli Moreira Camargo.
“A folha de pagamentos também faz parte desse orçamento. Então, se é possível aplicar o crescimento da inflação para todo o orçamento, por que o funcionalismo não pode se beneficiar disso? No período da política da ‘granada no bolso’, observamos uma quantidade significativa de prédios [públicos] sendo reformados porque essa margem de crescimento orçamentário sobre a folha foi aplicada em outras despesas. Isso é uma contradição que precisamos questionar. Se é possível crescer [o orçamento] pela inflação, por que a folha não pode crescer pela inflação?”, disse Fabiano, que também é ex-dirigente do Sintrajud.
Abaixo, o momento em que o servidor Fabiano dos Santos fala na audiência pública:
Sob o tema “Luta contra a política de empobrecimento dos servidores (PEC 220/16)”, a audiência, realizada presencialmente no dia 7 de dezembro de 2023, em Brasília, se constituiu num espaço ocupado pelos servidores para recolocar em pauta, e com força, a luta pelo respeito à data-base dos servidores públicos federais, estaduais e municipais .
A audiência pública abordou a Proposta de Emenda Constitucional 220/2016, que insere no texto constitucional, que já prevê o direito à revisão salarial, que esta deve ser aplicada sobre os salários de servidores públicos e membros de Poderes em índice que melhor reflita a inflação acumulada nos 12 meses anteriores.
A atividade foi convocada pela Comissão de Administração e Serviço Público por solicitação das deputadas Fernanda Melchionna (PSOL-RS) e Sâmia Bomfim (PSOL-SP). Sâmia foi recentemente designada relatora da PEC 220/2016 na Comissão de Constituição e Justiça, primeira etapa da tramitação. A atividade foi transmitida pela TV Câmara e compartilhada por diversas entidades sindicais nas suas plataformas nas redes sociais, entre elas o Sintrajud.
Nota técnica ou política?
Fabiano, assim como às demais representações sindicais, contestavam o que dissera a representante do governo. A subsecretária admitiu que estava ali apenas para “repetir, replicar” a nota técnica da Diretoria de Carreiras da Secretaria de Gestão de Pessoas sobre a proposta de emenda constitucional.
“A conclusão final [da nota técnica] é que essa emenda à Constituição número 220/2016 não deveria prosperar por uma série de razões técnicas. Em primeiro lugar, eu citaria o que está descrito no item 15 desta nota técnica: uma vez que essa PEC fosse aprovada, haveria a necessidade de alterar todo o conjunto de princípios orçamentários que hoje rege a formulação do orçamento público”, disse Regina Camargos. “Ou seja, a aprovação dessa PEC implicaria numa revisão completa e bastante sistêmica e radical de todos os princípios que norteiam a política fiscal brasileira”, resumiu, mencionando ainda que a proposta rompe o que chamou de ‘limite do possível’ também em termos políticos.
A posição do governo também foi criticada por Sâmia. “As notas técnicas refletem uma uma análise técnica da situação, mas também refletem um ponto de partida político, refletem uma opinião, que às vezes é traduzida em questões técnicas, mas que tem a ver com a forma que você olha a situação política”, disse a deputada Sâmia Bomfim
“Se é verdade que internamente no Congresso Nacional não há correlação de forças, considerando que a maioria é liberal, com uma bancada expressiva da extrema direita, que, a princípio, rejeitaria a ideia de que os servidores públicos devem ter um reajuste, também é verdade que a correlação de forças não é algo estático, se modifica a partir justamente da intervenção das categorias, da população e do próprio governo”, disse, ressaltando que que o arcabouço fiscal, um dos obstáculos listados pela subsecretária, não foi aprovado em clima de conflito envolvendo o governo no Congresso. A parlamentar disse que a PEC 220 pode se constituir num instrumento de mobilização para esta luta.
Falta vontade política
Um dos debatedores da mesa, o servidor David Landau, da coordenação do Sitraemg, o Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal em Minas Gerais, disse que é possível alterar o modelo fiscal em vigor no país. “Nós tivemos uma eleição neste país. Havia milhares de trabalhadores nas ruas lutando pela alteração justamente do conjunto de princípios orçamentários que nós tínhamos. É um problema alterar? Não, porque o conjunto de princípios orçamentários que temos no país é um conjunto que penaliza os servidores públicos. No momento que a gente não tem reposição salarial não é que não acontece nada, é que a gente tem perdas salariais”, disse
“Não existe nada nocivo em aplicar a lei da data-base”, disse o servidor David Lobão, “o que existe é falta de vontade política” em respeitar o trabalhador dos serviços públicos. Representando o Fórum das Entidades Nacionais dos Servidores Públicos Federais (Fonasefe), do qual o Sintrajud e a Fenajufe participam, afirmou que a nota técnica que embasa a posição do governo está errada tanto do ponto de vista político, quanto orçamentário.
Ele também criticou o processo de negociação em curso, sem espaço para avanços e diálogo efetivo. “É um grande sonho dos servidores ter a sua data-base, ter o seu momento de realmente negociar. O governo Bolsonaro foi desumano, foi draconiano, passou quatro anos sem nos responder, mas o que o governo Lula fez esse ano é de uma desconsideração muito grande”, disse,
Mencionou os sete meses de negociação sem respostas à pauta salarial, o que o Ministério da Gestão ficou de fazer somente agora, no dia 18 de dezembro. Isto é, já na possível reta final de tramitação de um orçamento proposto para a União, no qual as pautas do setor estão excluídas.
‘Não merecemos ser valorizados?’
Coordenador de Educação da Federação de Sindicatos de Trabalhadores Técnico-administrativos em Instituições de Ensino Superior Públicas do Brasil (Fasubra Sindical), Sandro Pimentel também contestou os argumentos apresentados pelo governo. Desafiou, ainda, a base governista a assegurar o voto favorável à PEC 220/2016 – que os demais votos necessários o funcionalismo lutará para buscar.
A professora Annie Schmaltz Hsiou, do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), disse ser “muito preocupante” ouvir da representante do governo, eleito com o voto da maioria dos trabalhadores, que uma proposta que apenas assegura a reposição da corrosão inflacionária é inviável.
“Nós, servidores públicos, no momento mais difícil da história recente mundial e também brasileira, durante toda a pandemia da covid-19, mantivemos a estrutura pública funcionando. Muitos de nós morreram, muitos estiveram na linha de enfrentamento ao combate à covid, combatemos o negacionismo, defendemos a ciência e lutamos ombro a ombro em 2022 pela manutenção da democracia. Fica a minha pergunta para o governo: nós não merecemos ser valorizados?”, indagou.
‘’Lutar e, se preciso, construir a greve’
Ao mesmo tempo em que destacaram a importância de ocupar este espaço no parlamento, foi unânime entre as representações sindicais a avaliação de que não haverá futuro para a proposta de emenda constitucional sem participação das categorias, uma luta com potencial de envolver servidores federais, estaduais e municipais. “É uma pauta que unifica todos os servidores e servidoras do Judiciário Federal e do MPU”, disse a servidora Luciana Carneiro, da coordenação da Fenajufe e ex-dirigente do Sintrajud, em vídeo gravado logo após a audiência, destacando também o potencial de unir todo o funcionalismo em torno desta luta.
“É importante compreender que nossas conquistas sempre foram resultado de processos de luta, e quando necessário, de greves. Faremos greve sim, se necessário, porque é preciso lutar pelos nossos direitos, que estão sendo constantemente desrespeitados”, lembrou Fabiano, reafirmando que é preciso enfrentar a política fiscal e defendendo a inclusão da PEC-220 na pauta de reivindicações da campanha salarial do funcionalismo. “Se for necessário ajustá-la, que façamos, mas não se pode começar dizendo que essa PEC não deve prosperar”, disse.
Abaixo, a íntegra da gravação ao vivo, pela TV Câmara, da audiência pública