CNJ terá canal para receber denúncias de assédio de juízes e servidores contra mulheres


26/07/2023 - Niara Aureliano
Conselho ainda não tem data para início do funcionamento do espaço de recebimento de relatos de crimes contra a dignidade feminina

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) terá um canal para receber denúncias de mulheres vítimas de abusos de magistrados e servidores do Judiciário, prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público. A iniciativa foi instituída pelo provimento nº 147 de 04 de julho de 2023, que estabelece uma política permanente de enfrentamento a todas as formas de violência contra a mulher. Servidoras ou juízas assediadas ou desrespeitadas moral, sexual e psicologicamente passarão a ter acesso a um formulário para abertura das queixas e a Corregedoria Nacional de Justiça terá um protocolo para tratamento das notícias de violências no PJU.

De acordo com a norma, também poderão ser reportados casos em que as violências não tenham sido praticadas diretamente por magistrados, mas haja indicativo de omissão quanto aos deveres de cuidado pela integridade física e psicológica da vítima, e que possam repercutir no pleno exercício das atribuições de magistradas e servidoras do Judiciário.

Os casos deverão ser julgados a partir da perspectiva de gênero (Resolução CNJ n. 254/2018) e não será exigida prova pré-constituída dos fatos alegados como requisito de procedibilidade da representação. O inciso III do art. 5º garante ainda que “a representante será sempre indagada se deseja ser ouvida previamente, de preferência, por uma juíza auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça, para reportar os fatos com maior detalhamento”. O provimento foi assinado pelo ministro Luis Felipe Salomão, corregedor nacional de Justiça.

O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero foi criado com o escopo de orientar a magistratura no julgamento, de modo que magistradas e magistrados julguem os casos sob a lente de gênero, avançando na efetivação da igualdade e nas políticas de equidade. Veio do TRT-2 o primeiro réu condenado a partir de decisão do CNJ com base na aplicação da perspectiva de gênero: o juiz substituto do Tribunal Marcos Scalercio, envolvido em casos de assédio sexual. Ele foi condenado pelo CNJ, no último dia 23 de maio, a aposentadoria compulsória proporcional ao tempo de serviço em face das denúncias de assédio sexual levadas por uma servidora do Tribunal, uma estudante e uma advogada. O Sintrajud, que acompanhou o caso desde as primeiras denúncias no TRT-2, defende que haja punição adequada para crimes contra a dignidade, com revisão da Lei Orgânica da Magistratura.

A diretoria do Sintrajud celebra a criação da política e espera sua efetividade contra o que classifica como uma cultura da política da humilhação no PJU. As mais variadas formas de assédio são apontadas pela entidade como mecanismos institucionais de gestão no serviço público, tornando mais complexo o desafio de acabar com tal prática.

Segundo pesquisa do CNJ, 56,4% dos servidores do Poder Judiciário afirmam já terem sofrido algum tipo de assédio no local de trabalho. Destes, 74% apontam que os assediadores ocupavam cargos superiores aos deles. A pesquisa também revela que 90% das vítimas não denunciaram o crime alegando vergonha, medo de sofrer represálias ou por achar que não daria em nada.

A situação é ainda mais grave contra as mulheres. É o que reforça a diretora do Sindicato Anna Karenina. Ela participou, enquanto integrante da Comissão de Combate ao Assédio da 3ª Região, do I Encontro de Comissões ou Subcomitês de Prevenção e Enfrentamento do Assédio e da Discriminação, do CNJ. O encontro aconteceu em 28 de junho, no Conselho da Justiça Federal (CJF) em Brasília. Anna levou ao conhecimento dos participantes do evento as denúncias de assédio nas quais o Sindicato vem atuando no último período, como a tentativa de demissão da oficiala de justiça e dirigente Beatriz Massariol, revertida pelo Conselho da Justiça Federal da Terceira Região; a denúncia contra o juiz presidente do Juizado Especial Federal de Riberão Preto e auxiliar da presidência do TRF-3 Paulo Arena Filho, por capacitismo contra um servidor com deficiência; bem como o caso envolvendo Scalercio.

“A punição de magistrados como o Scalercio é uma resposta do CNJ a toda pressão das trabalhadoras e trabalhadores. O Sintrajud atuou na linha de frente, contratamos advogado para acompanhar o caso, em defesa das servidoras e de todas as mulheres vitimadas. E assim, o CNJ sabia que não dava pra passar pano”, recordou Karenina.

Ela também cobrou isonomia e combate ao corporativismo no Judiciário, entrave para a responsabilização dos acusados. “O canal é um espaço muito importante e esperamos que seja uma política efetiva, que haja investigação de verdade. Pra isso, nós vamos acompanhar caso a caso. A criação do canal não substitui de forma alguma a atuação em conjunto do Sindicato, para que consigamos ter resultados. Comemoramos esta criação, mas reforçamos a importância de as denúncias continuarem a ser trazidas ao Sindicato. Existe um corporativismo muito forte no Judiciário, então as entidades de trabalhadores precisam acompanhar esse processo, com atuação, exposição e denúncia”, ressalta Anna.

A luta da categoria pela criação de espaços como comissões ou subcomitês para combater o assédio se estende desde 2010, com manifestações, tratativas com as autoridades e fazendo ecoar as denúncias de assédio moral e sexual que se acumulavam no Judiciário Federal. Com a criação da política de enfrentamento, as servidoras e servidores querem saber e participar para garantir a efetividade do mecanismo.

“A responsabilização é mais séria que a punição porque implica na conscientização e em transformar uma cultura no órgão para acabar com a cultura do assédio. Primeiro as instituições precisam perceber que o problema não é só o indivíduo assediador, é o ambiente assediador. Por isso precisa mudar a cultura e valorizar o servidor e servidora de forma geral; e o indivíduo não pode ser estimulado a ser um assediador, e infelizmente é isso que a instituição não faz. Por exemplo, a gente percebe na prática que naqueles ambientes que têm muito assédio, você troca o assediador, a outra pessoa que assume o cargo, ela continua uma atuação assediosa; exatamente porque é uma ferramenta de gestão”, elucidou a diretora.

O diretor do Sintrajud e servidor do TRT-2 Ismael Souza também defende que a criação do canal é uma resposta à luta extensa das servidoras e servidores do Judiciário contra o assédio. “Que não seja mais um canal formal, que esteja de fato a serviço à proteção das mulheres, comprometido com a luta contra o assédio no Judiciário Federal. Que cumpra a tarefa de proteger a vítima, de punir o agressor, mas que além disso tenha um compromisso do CNJ, dos conselhos dos tribunais, com uma política para fazer cessar esse tipo de violência, conseguir de fato enfrentar, e não atuar no sentido de encobrir os casos, proteger o agressor. Todos esses canais precisam estar a serviço de proteger a vítima, com uma política que pare a barbárie”

“Para além disso, é preciso compreender que há uma estrutura do Judiciário que é extremamente assediadora, com assédio cotidiano. É importante falar sobre isso. E o Sindicato vai continuar alerta, cobrando as responsabilidades dos tribunais e cobrando punição para todos os assediadores, sexuais e morais, que a gente sabe que está em uma crescente. Contra o assédio como instrumento de gestão”, finalizou Ismael.

Ainda não há prazo para implementação do canal e ainda estariam em análise mecanismos para gerenciamento do atendimento, de acordo com o CNJ.

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