Avanços e retrocessos no debate de carreira proposto pelo CNJ, por Démerson Dias


06/08/2021 - Redação
Ex-dirigente da Fenajufe e do Sintrajud participou da negociação e elaboração de alguns dos PCSs e da sistematização da proposta de Projeto de Plano de Carreira da Fenajufe.

Na véspera do Encontro Nacional de Carreira da Fenajufe, que será realizado em plataforma online neste sábado (7 de agosto), publicamos uma contribuição ao debate formulada pelo servidor do TRE Démerson Dias (foto). Fundador do Sintrajud e da Federação Nacional da categoria, Démerson é um dos articuladores da proposta que os servidores do Poder Judiciário da União construíram, ainda no início dos anos 2000, do que deveriam ser os pressupostos, objetivos, missão e desenho da carreira judiciária.

Nesta semana, Démerson participou também de uma das lives realizadas pelo Sindicato, que pode ser assistida clicando aqui.

O Sintrajud terá uma delegação no Encontro.

Confira abaixo a íntegra do artigo produzido exclusivamente para o Sintrajud:

O que é avanço e o que é retrocesso no debate de carreira proposto pelo CNJ?

Démerson Dias*

 

A Fenajufe chamou a categoria para discutir proposta do CNJ sobre Fórum Permanente de Gestão da Carreira.

Seria pertinente que, ao chamar a categoria para discutir essa mesa, fosse oferecida uma contextualização tanto sobre o histórico desse debate, mas principalmente um questionamento sobre a oportunidade para que o CNJ esteja atendendo reivindicação histórica da categoria sem os devidos antecedentes históricos e teóricos.

Alguns elementos precisam ser apresentados para que o debate não ocorra, apenas como uma colagem de questões pontuais. Sobretudo num assunto em que a Fenajufe já demonstrou ser capaz de ter elaboração superior às manifestações das instâncias formais do judiciário federal. Não foram os tribunais que inventaram os PCSs. Foi a categoria. E só não discutimos carreira antes por indisposição da cúpula do judiciário. Se houve reposicionamento, no mínimo as motivações precisam ser esclarecidas.

A Fenajufe, bem como os sindicatos, tem mandato expresso da categoria para balizar essa discussão. Essa história não pode ser menosprezada por uma iniciativa pontual e superficial. 

A convocação do CNJ e a conjuntura do país

Entendemos que a decisão do CNJ de convocar esse debate no presente momento tem relação com o contexto histórico do país. Um período de desmonte generalizado dos direitos e garantias, em que o caráter social do estado é atacado barbaramente. E temos em tramitação um projeto de emenda constitucional que se constitui na pior das propostas de desmonte do caráter público do Estado.

Contraditoriamente, esse mesmo estado e, sobretudo, os servidores públicos, a revelia das próprias autoridades no poder, é que estão salvando vidas na  pior crise sanitária da nossa história. Hoje,  somente a existência de profissionais concursados separa o país da barbárie. 

Não fosse a estabilidade no serviço público, um delegado federal não teria tido condições de denunciar a conivência, ou cumplicidade, de um ministro da área ambiental com a devastação de riquezas naturais do pais.

Ou sem a denúncia de um funcionário concursado do Ministério da Saúde não teria sido exposta e contida a ação governamental premeditada e criminosa que condenou à morte milhares de brasileiros, apenas porque aguardava a melhor oportunidade para realizar negociatas na compra de vacinas para combater a Covid-19.

Assim como a corrupção, algumas reformas não precisam de lei, basta um consenso político entre agentes públicos. E o judiciário não é imune a esses consensos destrutivos.

A extinção dos cargos de artífices e de todos os cargos vinculados ao nível básico de ensino foi um desses consensos ideológicos que promoveu a um só tempo precarização do trabalho e a transferência e concentração de riqueza.

Esse desmonte ocorreu sem ser anunciado, sem projeto de lei, baseado apenas numa determinação ideológica neoliberal de que as terceirizações são saudáveis para a sociedade. A economia gerada é duvidosa, mas o impacto socioeconômico, não.

A derrota da proposta de desmonte dos serviços públicos constante na PEC 32/2020 é prioridade para todas as categorias profissionais do Estado nos três níveis de governo e em todos os poderes.

A aprovação dessa PEC implica na extinção, não apenas das carreiras do funcionalismo, mas também do Estado como promotor dos direitos e garantias políticas e sociais.

Portanto, a derrota da PEC é determinante para que as discussões do Fórum Permanente de Gestão da Carreira tenham finalidade objetiva.

Com base na perspectiva histórica e nos parâmetros tidos como estratégicos pelo CNJ, o mais provável é que se a Fenajufe cobrar do CNJ posição em defesa do papel do estado como interlocutor da sociedade e de proteção aos direitos de cidadania inscritos na Constituição Federal de 1988, essa posição não virá com a clareza da incondicionalidade. E as razões para isso estão expressas a seguir.

Fórum Permanente de Gestão da Carreira X  Conselho Nacional de Gestão do Trabalho, Carreira e Competências

Nem a ciência, nem a técnica, nem, muito menos, a burocracia são atividades politicamente neutras.

O contexto da convocação do CNJ não é distinto das orientações que prescreve aos órgãos judiciários e essas orientações apontam para um modelo de judiciário que não coincide com as razões expressas pela categoria judiciária e ministerial.

O primeiro aspecto que deve atrair nossa atenção é que essa convocatória parece ocorrer em abstrato, sem contexto histórico declarado, nem arcabouço teórico estabelecido.

Sob quais diretrizes  estarão estabelecidos os trabalhos e debates nesse fórum permanente?

A primeira reunião definiu três áreas de discussão:

  • Reestruturação de cargos, revisão de normas e Portarias conjuntas, desenvolvimento na carreira e a Qualidade de Vida no Trabalho (QVT). 
  • Reenquadramento dos auxiliares e VPNI recebida pelos oficiais de Justiça.
  • Recomposição e questões salariais.

Não devemos ser ingênuos, qualquer comissão permanente institucional possui diretrizes e responsabilidades, se não estão declarados, ou afirmados, é porque não existe disposição de consensuar a esse respeito. No caso em questão, as diretrizes são pautadas a partir da Comissão Permanente de Eficiência Operacional, Infraestrutura e Gestão de Pessoas, cujo membro irá coordenar e desempatar as propostas deste Fórum.

Outro aspecto importante a registrar é que as comissões que elaboraram a maioria dos PCSs tinha efetivo caráter negocial, sendo referendadas pelos diversos órgãos. O Fórum, dessa forma já nasce com caráter negocial precário. É praticamente um espaço de diálogo com o setor de gestão de pessoas, sem comprometimento efetivo das autoridades judiciárias.

Mas esse debate não acontece em abstrato, e a Fenajufe tem fundamentação política e teórica bem mais abrangente do que sinaliza o escopo oferecido pelo CNJ. Aliás, a Fenajufe possui um mandato da própria categoria para orientar sua atuação naquele espaço.

Conforme proposta aprovada pela categoria em 2009, entendemos que o contexto da Carreira implica, pelo menos, os seguintes instrumentos de gestão. 1) Conselho Nacional de Gestão do Trabalho, Carreira e Competências; 2) Programa Permanente de Desenvolvimento e Capacitação; 3) Manual de Descrição e Atribuição dos Cargos e Especialidades da Carreira Judiciária; 4) Tabela de Correlação dos Cargos, Classes e/ou Especialidades, bem como os requisitos de escolaridade e demais critérios de acesso; 5) Plano de Organização, Desenvolvimento, da Gestão do Trabalho e das Competências da Carreira Judiciária; 6) Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Carreira Judiciária; 7) Centros Gestores da Carreira; 8) Plano de Desenvolvimento Individual; 9) Grupo de Referência dos Conselhos.

Em todas essas instâncias de gestão, formulação e acompanhamento, estariam garantidas a participação da categoria, sendo que a proposta também busca romper com vício político estrutural do judiciário que subordina toda a estrutura do poder às limitações e perspectivas das instâncias superiores.

Em tempo, convém mencionar que em diversos momentos das discussões em torno dos PCSs o STF tentou se valer da negociação com a Fenajufe para legitimar propostas de subordinação das autonomias dos demais órgãos e instâncias.

A horizontalização das prerrogativas garante que o judiciário cumpra de forma mais efetiva seu papel precípuo que é alcançar as demandas da sociedade em nível local, permitindo, inclusive a reafirmação dos laços que caracterizam o país em termos de território e condições de vida.

Evidentemente essas disposições exigem uma conformação legal que ainda não existe, portanto uma das disposições dos representantes da Fenajufe no referido Fórum deve compreender estabelecer condições e consensos para elevar o patamar desse debate para um contexto mais abrangente e consequente.

Historicamente o STF e atualmente o CNJ confundem o caráter judicial vinculante com a imposição de um modelo de gestão centralizado, o que diverge, inclusive, das disposições constitucionais do poder judiciário. O que nos leva a outras considerações. 

A maior surpresa da convocatória do CNJ é que ele não se refere especificamente o maior drama a que a categoria está submetida nos dias de hoje, o teletrabalho. Reconhecido por todos os especialistas que debatem o mundo do trabalho como ferramenta de precarização, o advento da pandemia impôs o teletrabalho como realidade. As consequências para a vida  ainda demandam avaliação criteriosa. Ao mesmo tempo a ausência de um debate sobre o retorno ao trabalho presencial impõe que os sindicatos apresentem esse tema como segundo ponto prioritário, logo atrás da questão da reposição emergencial das perdas.

Além desses aspectos, existem pelo menos três pressupostos que devem ser considerados em relação ao debate em tela.

CNJ, Controle externo, social, ou estado mínimo?

A Fenajufe esteve comprometida com a criação de uma instância de controle social para o poder judiciário. Contribuindo, inclusive, com o debate realizado no Congresso Nacional com essa finalidade.

Nossa posição evoluiu do consenso preliminar em torno do controle externo para o de controle social, tendo em vista que o polo de discussão que saiu vitorioso no embate parlamentar defendia algo muito próximo de mais uma confraria de interesses corporativos.

A indigência do debate que se estabeleceu privou a sociedade de exigir do judiciário um comprometimento efetivo com as garantias e direitos. E é exatamente por essa omissão que o CNJ assumiu, previsivelmente, um papel ideológico avesso ao sentido originário da Constituição Federal de 1988.

Nesses marcos, o que temos a pretexto de um órgão de controle externo é basicamente uma atípica agência reguladora de formulação e fomento à privatização da administração da justiça.

A perspectiva estratégica produtivista e percepção quantitativa das atividades do judiciário prescreve metas que passam ao largo da administração efetiva da justiça.

Por outro lado, o CNJ patrocina a consolidação de paradigmas teóricos que, no mínimo flertam com a precarização, enxugamento institucional e progressão paulatina das atribuições do Poder Judiciário para setores alheios ao serviço público estatal.

E existem pressupostos e arcabouços para justificar esse plano estratégico.

Desmonte neoliberal em pleno vigor

Ainda estão em vigor no país as diretrizes de redução do espaço de intervenção do estado para níveis mínimos em relação aos direitos e garantias.

Adaptadas do modelo neoliberal, o Brasil acolheu as teses de estado (social) mínimo que preconiza que o Estado progressivamente abra mão de atuar em toda e qualquer área em que o setor privado possa auferir lucro.

Outro aspecto estruturante da reforma neoliberal do Estado é a redução da estrutura de funcionamento em que constam verticalmente, no seu topo, um núcleo estratégico, e, horizontalmente, as secretarias formuladoras de políticas públicas, as agências executivas e as agências reguladoras. Essa é a chamada administração pública gerencial.

Mesmo no plano horizontal, compete ao estado apenas a definição de políticas, ou seja, no máximo carreiras de gestão estratégica.

Em outro ponto do mesmo documento da reforma é explicitado o que, de fato, nos marcos da reforma, consistem atividades inerentes, exclusivas, ou típicas de Estado.

Apenas um núcleo estratégico e de formulação compõe o serviço público estatutário. As áreas de serviço social, ou científico são pertinentes a empresas públicas não estatais. 

Aplicada ao judiciário, exceto o assessoramento imediato à magistratura, toda as demais atividade de apoio administrativo, serviços cartorários, segurança e expedição (no nosso caso, oficiais de justiça) mesmo no âmbito específico do Estado, é destinada à terceirização ou deixam de ser executadas por funcionários estatutários.

Documento 319/96 do Banco Mundial

Entre 1997 e 2002 o banco mundial aplicou pelo menos US$ 10,7 milhões de dólares em projetos de reforma dos poderes judiciários da América Latina e Caribe.

Diferente de outros países que adotam transparência em relação aos projetos de organismos internacionais, o Brasil sequestra essas informações da sociedade.

De maneira sintomática e diferente de outros países que só se submetem ao Banco Mundial em troca de financiamento, o CNJ assume as determinações capitalistas por convicção e gratuitamente e ainda as anuncia como soluções virtuosas e de interesse social. Tipicamente neoliberal e não por acaso.

Os intercâmbios realizados pela magistratura brasileira, quando muito constam do currículo individual. O caráter sistêmico dessas interlocuções, suas finalidades e consequências, são encobertas por diretrizes de gestão que são “naturalizadas” como consequência das ações administrativas. 

Da mesma forma como Sérgio Moro seguiu as prescrições do Departamento de Estado Estadunidense, o judiciário brasileiro  (que acompanhou calado, ou de maneira exultante a cruzada persecutória, até que ela fosse exposta e desmoralizada), a cúpula da magistratura tem um longo histórico de alinhamento com o centro do império.

A perspectiva de priorizar no Brasil um viés produtivista e quantitativo está alinhada ao diagnóstico e prognóstico expostos no Documento 319/96.

A propósito, numa pesquisa sumária na página do Banco Mundial, é possível observar que, pelo menos entre 2007 e 2011, o Brasil recebeu um total de US$ 10 milhões de dólares para reformar seu sistema previdenciário estatal.

Apenas por limitação de espaço não é possível desdobrar em um documento preliminar os aspectos que acentuam a afinidade entre o debate sinalizado pelo CNJ, suas perspectivas estratégicas de downsizing e as diretrizes de orientação neoliberal.

A Fenajufe deve compor esse espaço de interlocução proposto pelo CNJ porque corresponde parcialmente à compreensão que temos da gestão de carreira e trabalho. Mas é fundamental que esteja permanentemente respaldada pelo acompanhamento do conjunto da categoria.

Nesse sentido, seria importante horizontalizar esse debate e recomendar às entidades sindicais que estabeleçam espaços para repercussão e elaboração em torno dos temas levados à atenção do Fórum Permanente De Gestão Da Carreira.

Démerson Dias é funcionário do TRE-SP, ex-dirigente da Fenajufe e do Sintrajud. Participou da negociação e elaboração de alguns dos Planos de Cargos e Salários (PCSs) do Judiciário, e também da sistematização da proposta de Projeto de Plano de Carreira da Fenajufe.

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