Faltando 72 horas para a eleição brasileira que é considerada a mais dramática e perigosa desde a redemocratização, o servidor Marcos Pereira, do TRE-SP, trabalhava solitário diante de um computador no cartório eleitoral de Parelheiros, no extremo sul da capital paulista. Às 8 horas da manhã fria e chuvosa da quinta-feira, 29 de setembro, o cartório estava de portas fechadas, mas não trancadas, à espera do restante da equipe que logo chegaria para o trabalho.
“Se eu abrir a porta e chegar um eleitor, vou ter de parar o que estou fazendo para realizar o atendimento”, explicou Marcos à reportagem do Sintrajud. “Ou atendo o eleitor ou faço o serviço interno e hoje estou aprendendo um procedimento novo, que não deu tempo de aprender durante a semana”, contou.
Apesar do nome, o cartório de Parelheiros fica no distrito vizinho de Cidade Dutra e abrange uma extensa e populosa área geográfica que contém 680 seções eleitorais e 62 locais de votação. “Nosso limite está a uns 35 quilômetros, perto da aldeia indígena”, explicou Marcos. Segundo o servidor, trata-se da maior zona eleitoral urbana do país.
O pequeno edifício de dois andares é espaçoso, mas no primeiro e no segundo andar pilhas de caixas de papelão tomam as paredes. São urnas eletrônicas, pastas de mesários, kits de material de escritório, cartazes, frascos de álcool gel e outros itens que até sábado precisam ser distribuídos a todos os locais de votação. “Como as licitações dos materiais são separadas, feitas em momentos diferentes, cada vez que chega mais um item temos de abrir de novo as 680 pastas”, apontou o servidor do TRE.
Situado numa zona residencial, o cartório ocupa uma esquina pacata, mas que inspira preocupações à noite. Não há equipe de segurança contratada nem transporte para os servidores. Nos últimos dias, a preparação das eleições tem exigido que Marcos e alguns de seus colegas trabalhem às vezes até depois das 22h.
“Quem vê esse ambiente silencioso, não faz ideia da quantidade de trabalho, porque hoje em dia a maior parte do atendimento ao eleitor é feito pela internet e pelo WhatsApp”, comentou Marcos. “Estamos na vitrine, no centro do debate político, mas só por causa das narrativas que estão espalhando por aí”, acrescentou.
Além do atendimento ao eleitor, é preciso também responder às dúvidas dos mesários. A zona eleitoral do cartório de Parelheiros tem 2.774 mesários, que receberam treinamento on line para trabalhar no domingo. Além deles, há 434 pessoas de apoio logístico, treinadas por videoconferência, e os presidentes de mesa, que tiveram treinamento presencial.
Logo chegou o restante da equipe e todos assumiram imediatamente suas tarefas. Para dar conta dessa vasta região, o cartório de Parelheiros conta com três servidores do quadro do TRE e quatro servidores requisitados de outros órgãos. Nesta fase pré-eleitoral a equipe ganhou o reforço de quatro trabalhadores de uma empresa terceirizada, para uma assistência temporária.
Os servidores efetivos são Marcos Pereira e o chefe do cartório, além de um analista judiciário que assumiu o posto nesta mesma semana, depois de ser aprovado no último concurso do TRE. A chegada desse analista ameniza um pouco a redução do quadro de pessoal que tem afetado a Justiça Eleitoral e todo o setor público desde a Emenda 95/2016, que congelou os gastos públicos por até 20 anos.
O Sintrajud pressionou o próprio TRE e os dirigentes do Sindicato se mobilizaram em Brasília para conseguir do Senado a aprovação, há cerca de um ano, do projeto que criou 225 cargos efetivos no Regional paulista. Depois, foi necessário ainda conseguir a inclusão da verba para o provimento desses cargos no Orçamento da União.
Outra luta foi para adiar a devolução dos servidores requisitados de outros órgãos que prestavam serviços ao TRE há mais de cinco anos. Usando como justificativa um questionamento do TCU, o Regional chegou a editar Resolução para devolver 1.264 requisitados, o que esvaziaria os cartórios e praticamente inviabilizaria as eleições deste ano.
A medida só foi suspensa após mobilização da categoria, que conseguiu do TSE a manutenção dos requisitados até 4 de julho do próximo ano. No entanto, uma solução definitiva para o preenchimento dessas vagas ainda não foi apresentada. No cartório de Parelheiros, uma das servidoras requisitadas está para se aposentar do Tribunal de Justiça (TJ).
Em meio à correria para deixar tudo pronto para o pleito de domingo, um motivo de preocupação na quinta-feira eram as urnas com problemas técnicos, à espera de um funcionário da empresa fornecedora, para fazer os reparos. Havia certa apreensão com a demora do funcionário em atender ao chamado. “Se ainda não veio, deve ser porque está recebendo muitos chamados”, disse Marcos.
A equipe testava cada uma dessas urnas e anotava os problemas de cada uma. Alinhados ao longo de uma mesa comprida, cada um dos equipamentos exibia a inscrição com o ano de sua fabricação: 2009, 2010, 2011, 2015…
As urnas novas, fabricadas em 2020, estão nas caixas empilhadas. Conforme explicou o servidor, os equipamentos mais novos vão para os locais mais distantes. “As mais antigas têm maior probabilidade de apresentar problema, por isso ficam mais próximas do cartório”, explicou Marcos. “Assim podemos nos deslocar rapidamente para fazer a troca”.
Logo que chegou para o expediente, o chefe do cartório fez um levantamento da quantidade de urnas com defeito e das “urnas de contingência”, a serem usadas em caso de necessidade de substituição.
Mas a maior dificuldade das eleições deste ano não está relacionada à preparação das urnas e sim às fake news, afirmou Marcos Pereira. “Temos de explicar aos mesários coisas que antes não eram necessárias, como o tipo de informações falsas que eles podem receber pelo celular”, observou.
No mesmo dia, pelo menos duas fake news sobre as eleições se espalharam nas redes sociais e ganharam repercussão na mídia. O presidente Jair Bolsonaro divulgou que eleitores estariam sendo proibidos de votar com a camisa da seleção brasileira de futebol e disse que as Forças Armadas fechariam as seções eleitorais onde houvesse tal restrição. No WhatsApp, espalhou-se a fake news de que mesários poderiam manipular cadernos de votação, de forma a falsear o número de votantes, o que é impossível.
No começo da semana, uma trabalhadora terceirizada da 53ª Zona Eleitoral, de Itapeva, no interior paulista, passou por constrangimentos e foi exposta nas redes sociais por uma deputada federal e militantes de extrema direita.
Enquanto as fake news se multiplicam com a aproximação do dia das eleições, a equipe corre para deixar tudo pronto. À medida que o dia avança, de vez em quando alguém interrompe sua participação nesse trabalho para atender um ou outro eleitor que comparece ao cartório. Mas um vendedor de esfirras que também apareceu por ali não conseguiu atrair a atenção de ninguém, tamanha a correria e a concentração nas tarefas.
O técnico da empresa fornecedora de urnas finalmente chegou para fazer os reparos. Vieram também os servidores de uma força-tarefa enviada pelo TJ e começaram a descer para o térreo as caixas com os kits de material dos mesários.
Estava todo mundo muito ocupado, mas uma parte da equipe conseguiu fazer uma rápida refeição na pequena copa. O chefe do cartório teve de ir à sede do TRE, no centro da cidade, resolver algumas pendências. Marcos Pereira continuou na frente do computador, mas agora também preso ao telefone. Ele já sabia que novamente a jornada se estenderia até tarde da noite. “Tem uma parte do serviço que não posso repassar a ninguém”, disse. No dia seguinte teria mais e até domingo, muito mais…