Violência policial e extermínio nas periferias seguem como política de Estado 60 anos depois do golpe


01/04/2024 - Giselle Pereira
Impunidade aos crimes da ditadura empresarial-militar valida violência policial que ainda assombra a sociedade brasileira.

O presidente Lula é observado pelo general comandante do Exército, Tomás Paiva, durante cerimônia em celebração à Força, em 19 de abril de 2023 (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Enquanto o presidente Lula pedia, às vésperas do aniversário do golpe, que esqueçamos os crimes da ditadura instalada em março/abril de 1964, o Clube Militar propagava nota louvando o fatídico 31 de março que inaugurou um período de duas décadas de opressão e terrorismo de Estado. E a PM do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) chegava a 56 assassinatos em dois meses e meio de Operação Verão. Vítimas que se somam às 30 da Operação Escudo, ocorrida no ano passado também na Baixada Santista.

O Sintrajud relembra o golpe militar para ressaltar que a violência policial que aterroriza as periferias do país até os dias atuais é fruto do não acerto de contas com a ditadura. É também a anistia aos crimes de agentes do Estado que deu ao golpistas de alto escalão do 8 de janeiro de 2023 a certeza da impunidade.

Torturas, assassinatos, desaparecimento de corpos, detenções ilegais e arbitrárias, são algumas das evidências de que os militares ainda buscam impor-se, mesmo após o encerramento da ditadura militar, em 1985. No tocante à violência policial, é possível questionar: o que mudou para a parcela mais vulnerável da população, que vive nas periferias, após a redemocratização do país?

O envolvimento das Forças Armadas nos acontecimentos de 8 de janeiro de 2023, quando o Brasil acompanhou a invasão e destruição das sedes dos três Poderes, em Brasília, por grupos de vândalos, tornou-se mais um triste capítulo da história de quarteladas em nosso país. Uma comissão parlamentar mista de inquérito investigou os fatos e indiciou 61 pessoas, entre elas, o ex-presidente Jair Bolsonaro e militares do seu governo, como o ex-ministro da Casa Civil e da Defesa, general Walter Braga Netto. O caso ilustra a atuação das forças militares como uma espécie de poder paralelo.

Na avaliação de Lorrane Rodrigues, coordenadora da Área de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog (IVH), no período de redemocratização, os militares tiveram forte participação na construção das pautas de segurança pública e a tentativa de golpe em janeiro de 2023 revela que a democracia brasileira ainda é frágil.

Ela explica que os dados atuais de violência no país colocam luz sobre a urgência de discutir as políticas reparatórias no quesito da segurança pública, levando em consideração as suas concepções, a cultura organizacional do corpo militar e, especialmente, o nível de autonomia que as polícias brasileiras têm ganhado nos últimos anos.

Como resultado da impunidade dos crimes cometidos nos anos de chumbo, a violência policial se intensifica nas periferias do país e continua fazendo milhares de vítimas. Como foi o caso do músico Evaldo Rosa dos Santos, morto em ação na qual 257 tiros foram disparados contra seu carro por agentes do Exército, no Rio de Janeiro. Ainda assim o relator do Superior Tribunal Militar (STM) argumentou que os assassinos agiram em legítima defesa, justificando a redução das penas de oito envolvidos no fuzilamento, que aconteceu em 2019.

Outro caso que ganhou repercussão foi a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que julgou em liberdade o policial militar Alessandro de Souza, que matou Johnatha de Oliveira, em 2014, com um tiro nas costas. À revelia das provas apresentadas pela acusação, o Conselho de Sentença acatou a tese de que o PM cometeu um homicídio culposo, quando não há intenção de matar. O caso, que gerou revolta social e a indignação de familiares e amigos do jovem, agora segue para a Justiça Militar, por declínio de competência do judiciário estadual fluminense.

Práticas “de ontem” seguem em uso

Uma situação que perdura há meses e tem levado terror à população é a política de genocídio em curso na Baixada Santista, que iniciou-se em julho de 2023, com a ‘Operação Escudo’, rebatizada como ‘Operação Verão’. Depois da morte do soldado Samuel Wesley Cosmo, em 2 de fevereiro, o governo de São Paulo lançou a nova fase, ainda mais letal, da ação que já resultou em mais de 50 mortes e prisão arbitrária de centenas, majoritariamente negros.

Conforme o 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022 houve 6.429 mortes decorrentes de intervenções policiais, e a cada 100 vítimas, 81 são pessoas negras.

O número de mortes nas ditas operações fez com que entidades como a ONG Conectas Direitos Humanos e o Instituto Vladimir Herzog enviassem um apelo à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e à ONU pelo fim da operação e pela obrigatoriedade do uso de câmeras corporais. O governador de São Paulo declarou em entrevista coletiva no dia 8 de março — Dia Internacional de Luta da Mulher — que não está “nem aí” para as denúncias sobre as práticas de abusos da Polícia Militar.

Na data, mulheres, mães, filhas e irmãs de vítimas da violência policial exigiram o fim das chacinas na Baixada Santista em ato na Avenida Paulista. Durante a caminhada, o grupo denunciou que “a ditadura não acabou” e pediu “o fim da polícia militar”.

Perseguições a quem luta também seguem 

Em 2012, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça julgou e concedeu o status de anistiado político e reparação econômica a oito membros da antiga Oposição Metalúrgica de São Paulo. Entre eles, está o ex-diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, Luiz Carlos Prates, o Mancha, que conversou com a reportagem. Luiz também é dirigente da CSP-Conlutas, central sindical à qual o Sintrajud é filiado.

Ele contou que a burguesia e o imperialismo temiam o crescimento das lutas e não hesitaram em derrubar então presidente João Goulart, e iniciar uma implacável perseguição à juventude, aos operários e camponeses.

Mancha foi preso em 1977 por duas vezes, uma delas durante a invasão policial à PUC, quando foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional (LSN). O dispositivo estabelecia quais eram os crimes contra a segurança nacional e contra a ordem política e social; e funcionava, na prática, para perseguir os opositores políticos.

O ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, sancionou com vetos a Lei 14.197, de 2021, que revogou a famigerada LSN (Lei 7.170, de 1983). Porém, vetou vários artigos, entre eles o que previa até cinco anos de reclusão para quem cometesse o crime de “comunicação enganosa em massa”. Ironicamente, o TSE investiga desde 2023, Bolsonaro por disseminação de informações falsas nos processos eleitorais de 2018 e 2022 por meio de aplicativos de mensagens.

Além da violência física, o regime apoiado pelos Estados Unidos impôs o arrocho salarial, garantindo superexploração em benefício das multinacionais. “A queda formal do regime militar em 1985 não pôs fim às torturas, elas continuaram (e continuam) ocorrendo nas periferias e são frutos da impunidade e conivência do Estado”, alertou Mancha, defendendo a punição e desmilitarização das polícias.

Na oportunidade, o líder metalúrgico também criticou a fala do presidente Lula, ao dizer que “o povo já conquistou o direito de democratizar esse país”. “O não acerto de contas com o passado é inseparável da violência estatal de hoje”, apontou Mancha, lembrando que o presidente cancelou os atos em memória aos 60 anos do golpe militar.

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