Queda da MP 808 abre novo momento na disputa em torno da reforma trabalhista


27/04/2018 - helio batista

A Medida Provisória 808/2017, que trata da legislação trabalhista, chegou a ser apontada como a que mais propostas de emendas recebeu na história do Congresso Nacional. Editada em novembro passado, ela é resultado de um “acordo” envolvendo senadores da própria base governista com o presidente Michel Temer, para evitar que o projeto que alterou a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) fosse modificado e retornasse à Câmara dos Deputados.

No dia 23 de abril, porém, a MP 808 naufragou sem chegar a ir a voto nem sequer na comissão temática. Ao estourar o limite de 60 dias renováveis por igual período, nos quais vigora com força de lei, caducou, perdendo a validade. Teve o mesmo destino de outra medida, a MP 805, editada pouco antes pelo impopular governo Temer.

Nesta, porém, a vitória dos sindicatos e trabalhadores é evidente: ao deixar de tramitar, a MP 805 levou consigo a tentativa do governo de aumentar o percentual da alíquota previdenciária sobre os salários dos servidores, que passaria de 11% para 14%, e adiar as parcelas de reajustes salariais previstas para 2018 devidas às carreiras do funcionalismo do Executivo.

Pontos alterados

No caso da MP 808, no entanto, a questão é mais complexa, dentro de um contexto generalizado de eliminação de direitos da classe trabalhadora, sem dúvida o maior já realizado na história do país.

O conteúdo da medida incluía itens que, pontualmente, atenuavam algumas perdas – caso, por exemplo, da fixação da quarentena de 18 meses para que um empregador possa demitir seu empregado e recontratá-lo pelo trabalho intermitente. Ou a proibição explicita de que trabalhadores contratados como autônomos terceirizados, sem vinculo trabalhista, possam ser submetidos a um regime de trabalho de dedicação exclusiva. Assim como a alteração que revertia na lei a permissão para que mulheres grávidas trabalhem em locais insalubres.

Mas, por outro lado, continha também alterações que acentuavam as perdas, caso da definição de que todos os contratos em vigor, mesmo os assinados antes da reformulação da lei, são atingidos pelas novas regras. Além disso, as 967 emendas propostas atiravam para todos os lados: a depender da relatoria e do que prevalecesse no Congresso Nacional, poderiam desde aprofundar mais a eliminação de direitos até revogar a Lei 13.467/2017, a chamada reforma trabalhista.

Os dados iniciais referentes ao impacto da reforma na Justiça do Trabalho, ainda que incipientes, mostram uma queda brutal no número de ações movidas pelos trabalhadores. No primeiro trimestre do ano, registrou-se uma queda de 45% das ações trabalhistas em relação ao mesmo período de 2017. Foram quase 300 mil processos a menos. Os números foram comemorados em editoriais por empresas detentoras de veículos de comunicação, como a “Folha de S. Paulo” e o “Valor Econômico”.

Essa queda no volume de ações, ainda que referente a um período de incertezas e prematuro para análises mais profundas, já alimenta os setores da sociedade que atuam para extinguir a Justiça Trabalhista. Isso ficou evidente na sessão da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado (CAE) do dia 3 de abril último. Naquela data, alguns parlamentares votaram contra a criação de cargos para o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo alegando que com a demanda na Justiça do Trabalho despencando, servidores desse ramo do Judiciário poderiam ser remanejados para a Justiça Eleitoral.

Em meio às incertezas jurídicas sobre o assunto, o Tribunal Superior do Trabalho instalou uma comissão no dia 6 de fevereiro para estudar as propostas de alteração de jurisprudência em decorrência da Lei 13.467/2017. O prazo para a conclusão dos trabalhos foi prorrogado por 30 dias, no dia 18 de abril, pelo presidente do TST, ministro João Batista Brito Pereira, sendo estendido, portanto, até 18 de maio.

Audiência no TST

Foto: Valcir Araújo

Na audiência em que recebeu dirigentes do Sintrajud (foto), o presidente do TST ouviu o relato do que ocorrera na sessão da CAE e as preocupações das entidades sindicais com o que está acontecendo com este ramo do Judiciário Federal.

“É uma preocupação nossa, compartilhamos aqui, esta situação da Justiça do Trabalho estar nesse momento sob ataque duro, em decorrência da reforma trabalhista. É nossa disposição somar esforços para fazer a defesa da Justiça do Trabalho, que entendemos que é um patrimônio na defesa dos direitos sociais”, disse Tarcísio Ferreira, que participou da audiência ao lado do servidor Marcos Vergne.

O ministro Brito Pereira não chegou a se alongar nesse ponto da reunião, mas disse que essa é uma preocupação presente hoje no TST. “Estamos todos unidos [com relação a isso]”, disse. Sabe-se, no entanto, que no interior do tribunal superior e na magistratura na primeira instância há posições antagônicas com relação à reforma trabalhista e suas consequências.

A matéria está judicializada – com ações nas instâncias de base e no Supremo Tribunal Federal. Em outra esfera, o governo ventila a possibilidade de enviar um projeto de lei sobre o assunto ao Congresso Nacional, onde já tramitam, a passos lentos, outras propostas que modificam pontos da reforma.

O que parece evidente é que a definição de como ficará a legislação que regula as relações trabalhistas no Brasil está ainda em aberto, em disputa, cujo resultado pode estar também traçando o que será da Justiça do Trabalho em um futuro próximo.

 

O que muda com o fim da eficácia da MP 808/2017

Alguns dos pontos que mudam com a queda da MP 808, segundo estudo elaborado pela Zulmair Consultoria e divulgado pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap)

I) JORNADA DE TRABALHO 12X36 (art. 59-A)

Volta a vigorar a regra de que a jornada 12×36 também poderá ser pactuada por acordo individual, violando a Constituição Federal, tendo em vista que seu art. 7º, inciso XIII, dispõe que é facultada a compensação de jornada mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho, não apresentando qualquer exceção a essa regra. Além disso, o entendimento acerca da necessidade de instrumento coletivo para pactuar a jornada 12×36 é corroborado pela Súmula 444 do TST.

II) DANO EXTRAPATRIMONIAL (arts. 223-C e 223-G)

Tanto a Lei 13.467/2017 quanto a MP 808/2017 tarifam o dano extrapatrimonial. O que foi alterado pela MP foi apenas a base de cálculo, que agora, com a perda da sua vigência, volta a ser o último salário contratual do ofendido, o que vai de encontro à Constituição Federal. Inclusive o STF já decidiu anteriormente pela inconstitucionalidade da tarifação do dano moral no RE 396.386-4. Há violação, ainda, da Convenção 111 da OIT, que trata da discriminação em matéria de emprego e ocupação. Importante ressaltar que ainda permanece omissa a aplicação da regra estipulada pela Lei 13.467/2017 aos danos extrapatrimoniais decorrentes de acidentes de trabalho. Sobre o tema há a ADI 5870 em tramitação no STF.

III) EMPREGADA GESTANTE E LACTANTE (art. 394-A)

Retornando a redação prevista na Lei 13.467/2017, abre-se a possibilidade de a trabalhadora gestante trabalhar em locais insalubres, violando a Constituição Federal e a Convenção 103 da OIT, que determinam o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho e o direito a um meio ambiente de trabalho saudável.

IV) TRABALHO AUTÔNOMO (art. 442-B)

Com a perda da validade da MP 808/2017, retorna a figura do trabalhador autônomo exclusivo sem que isso configure vínculo empregatício. Este aspecto tende a ser muito contestado: uma vez presentes os requisitos previstos nos arts. 2º e 3º da CLT e configurando o desvirtuamento do trabalho autônomo mostra-se imprescindível o reconhecimento do vínculo de emprego, pois prevalece no direito do trabalho o princípio da primazia da realidade.

V) TRABALHO INTERMITENTE (arts. 452-A à 452-H)

O trabalho intermitente, criado pela reforma trabalhista, volta a ter o mínimo de regulamentação, pois vários pontos previstos na MP não foram dispostos na Lei 13.467/2017.

Texto original da reforma – A reforma trabalhista incluiu, na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a modalidade de jornada intermitente, em que o trabalho não é contínuo e a carga horária não é fixa.

Pela proposta, o empregador deverá convocar o empregado com pelo menos três dias de antecedência. A remuneração será definida por hora trabalhada e o valor não poderá ser inferior ao valor da hora aplicada no salário mínimo. O empregado terá um dia útil para responder ao chamado. Depois de aceita a oferta, o empregador ou o empregado que descumprir o contrato sem motivos justos terá de pagar à outra parte 50% da remuneração que seria devida.

Importante ressaltar que o trabalho intermitente, tanto na forma da MP quanto da Lei n. 13.467/2017, tem a sua constitucionalidade questionada por violação aos art. 7ª da Constituição Federal de 1988 e por afrontar o direito fundamental do trabalhador aos limites de duração do trabalho, ao salário mínimo, ao décimo terceiro salário e às férias remuneradas.

VI) NATUREZA JURÍDICA DAS VERBAS TRABALHISTAS

A MP 808 incluiu a gratificação de função às verbas que integram o salário e a ajuda de custo limitada a 50%. Ao deixar de vigorar, volta a valer o que está na nova lei. que retira a natureza salarial das verbas pagas a título de diárias para viagem e abonos, não constituindo, assim, base de incidência de qualquer encargo trabalhista e previdenciário. Conceitua prêmios, além de estabelecer que não integrarão a remuneração do empregado.

VII) COMISSÃO DOS REPRESENTANTES DOS EMPREGADOS (ART. 510-A 510-C)

Com a perda da eficácia da MP 808, não haverá mais disposição expressa de que a comissão de representantes dos empregados não substitui a função do sindicato, inclusive no que tange às negociações coletivas, em que é obrigatória a participação da entidade sindical, de acordo com os incisos III e VI do art. 8º da CF/88.

Além disso, permanece a regra, já estava prevista na Lei 13.467/2017, que veda a interferência do sindicato da categoria nas eleições da comissão. Importante ressaltar, ainda, que as Convenções 135 e 154 da OIT, ratificadas pelo Brasil, são expressas ao impedir que a presença de representantes eleitos venha a ser utilizada para o enfraquecimento da situação dos sindicatos e, ainda, que a existência desses representantes não seja utilizada em detrimento da posição das organizações sindicais. Sobre o tema há a ADI 5810 em tramitação no STF.

VIII) PREVALÊNCIA DO NEGOCIADO SOBRE O LEGISLADO: LITISCONSORTE NECESSÁRIO (ART. 611-A, §5º)

Com a perda da eficácia da MP 808/2017, volta a viger a regra de que as entidades sindicais devem figurar como litisconsorte necessário nas ações judiciais individuais e coletivas que tenham como objeto a anulação de cláusulas de instrumento coletivo.  A MP 808 estabelecia que isso só ocorreria nas ações coletivas que tenham como objeto a anulação de cláusulas de instrumento coletivo.

IX) PREVALÊNCIA DO NEGOCIADO SOBRE O LEGISLADO: INSALUBRIDADE (ART. 611- A, INCISOS XII E XIII)

A possibilidade de negociação do grau de insalubridade era prevista tanto na Lei 13.467/2017 quanto na MP 808/2017. Entretanto, a MP previa expressamente que devem ser observadas as normas de saúde e segurança do trabalho, o que não há na Lei 13.467/2017. Além disso, volta a vigorar a regra da possibilidade de prorrogação de jornada em ambientes insalubres sem a autorização do Ministério do Trabalho. Esse aspecto também tem a sua constitucionalidade questionada.

X) APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO

Com a perda da eficácia da MP 808, não haverá mais previsão acerca da aplicação da Lei 13.467/2017 aos contratos de trabalho vigentes, o que dá margem à mais abrangente controvérsia com relação à lei e principal objeto da discussão na comissão criada no TST para tratar dos efeitos da reforma. Ressalte-se que há jurisprudência entendendo que a legislação vigente à época do contrato de trabalho é que deve regulá-lo.

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