Durante a sessão que aprovou a PEC ‘Emergencial’ em segundo turno no Senado, nesta quinta-feira (4 de março), um senador disse que o ‘relator’, Márcio Bittar (MDB-AC), havia retirado uns dez ‘bodes’ da proposta, mas que ela ainda reunia pelo menos outros 40 e por isso era inaceitável. Entre esses ‘bodes’ retirados a que o parlamentar se referia, provavelmente estão a previsão de redução dos salários e jornadas dos servidores em até 25%; o fim dos pisos constitucionais da saúde e educação; o item que impunha congelamento automático de salários e benefícios por três anos para servidores federais em caso de decretação de calamidade nacional; e a alteração constitucional que submetia expressamente direitos como saúde, educação, previdência, habitação, segurança e trabalho a um genérico ‘equilíbrio fiscal’.
O que parece evidente, porém, é que esses ‘bodes’ não saíram da sala sozinhos – há uma mobilização sindical e social em curso que resiste, denuncia e busca pressionar Brasília, apesar das limitações inerentes a quem respeita as medidas de segurança sanitária na pandemia. Os tais ‘bodes’ expressam ainda, mais do que algo que estava lá para ser ‘negociado’, aspectos essenciais das políticas que o presidente Jair Bolsonaro tenta adotar e aprovar às pressas – aspectos que permanecem inseridos em outros itens do texto que chegou à Câmara ainda na quinta-feira.
Durante a votação no Senado, onde a matéria obteve 62 votos tanto no primeiro quanto no segundo turno, senadores que se opunham à PEC afirmaram que o governo fazia ‘chantagem’ e se aproveitava da pandemia para passar mudanças de fundo na Constituição Federal. A chantagem decorre da associação de novo período de pagamento do auxílio emergencial para pessoas em vulnerabilidade social na pandemia à introdução das novas medidas de ‘ajuste’ fiscal na Carta Magna. Estas despesas não estariam submetidas aos limites do teto de gastos contidos na Emenda Constitucional 95.
“Eles estão usando os 250 reais para fazer uma mudança estrutural nas finanças públicas. O grande rombo não está no auxílio, mas nos [benefícios] dados aos bancos”, disse o economista Washington Moura, que assessora o Sintrajud, quando a proposta ainda estava para ser votada no Senado. O economista ressaltou não haver nada que justifique atrelar esse benefício necessário e temporário ao restante da PEC ‘Emergencial’, a não ser a intenção de passar ‘a boiada’ durante a pandemia, como revelado em uma reunião ministerial do ano passado. Aliás, para que o auxílio inserido na PEC seja definido em R$ 250,00 por medida provisória, valor que Bolsonaro vem anunciando, o governo terá que excluir muita gente dos 68 milhões de brasileiros e brasileiras que receberam o benefício no ano passado.
Isto porque os senadores aprovaram um controverso complemento de voto do relator, apresentado quando não se podia mais propor emendas de destaque ao texto, que limita as despesas autorizadas para o benefício em R$ 44 bilhões. Fixação de um teto que não existia em nenhuma versão anterior do texto. A manobra governista fez com que senadores da oposição passassem a chamar o auxílio que estava sendo votado de ‘vale-gás’, num dia em que o Brasil contou quase dois mil mortos por covid-19 em 24 horas.
Para o professor da Unicamp Lalo Minto, da Faculdade de Educação, a proposta em tramitação expressa o antigo desejo do grande empresariado em abocanhar os recursos públicos de áreas como saúde e educação.
“Esse episódio da PEC 186 é uma chantagem explícita dos setores pró-ajuste fiscal, do capital financeiro, tentando até avançar sobre os recursos vinculados para educação e saúde, que é um sonho antigo dos liberais no Brasil e dos setores mais conservadores. Não é uma coisa que o Paulo Guedes inventou, mas que talvez não tenha tido antes dessa fase atual um avanço tão explícito e tão próximo de se concretizar. Isto porque já estamos sob a vigência da Emenda Constitucional 95. Então não é um avanço sobre uma fase de bonança, é um avanço já sobre uma fase de cortes e ajustes. Não é nem cortar na carne, como se diz no jargão, é cortar o osso, amputar uma parte importante do orçamento”, disse Lalo, durante um debate virtual logo após a aprovação em segundo turno no Senado, na quinta-feira (4).
“Interessante que os economistas usam essa expressão ‘gatilho’ fiscal, e a imagem que vem é exatamente um gatilho que vai ser acionado sobre as nossas cabeças pelos impactos daquilo que eles dizem ser inevitável”, complementou o professor.
Na avaliação de dirigentes do Sintrajud, o que se conseguiu excluir até aqui da PEC 186, como a ameaça de redução salarial, deve-se em grande parte à existência de uma mobilização nacional – relacionada à luta contra a ‘reforma’ Administrativa e em defesa dos serviços públicos. A PEC ‘Emergencial’, ressaltam, segue inaceitável e um enorme ataque ao setor público e aos direitos sociais. Mas os recuos que o governo foi obrigado a dar mostram o quanto é necessário seguir pressionando e lutando pela rejeição integral deste e dos demais projetos, apesar de todas as limitações e dificuldades deste momento.
Gatilhos contra os serviços públicos federais | Na esfera federal, o Artigo 109 determina medidas de ‘ajuste’fiscal quando verificado, na aprovação da lei orçamentária, que “a proporção da despesa obrigatória primária em relação à despesa primária total” é superior a 95%. Quando isso ocorrer, “aplicam-se ao respectivo Poder ou órgão, até o final do exercício a que se refere a lei orçamentária”, uma série de vedações, entre elas:
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Gatilhos contra os serviços públicos municipais e estaduais | O artigo 167-A, diz que quando apurado que em 12 meses “a relação entre despesas correntes e receitas correntes” supera 95%, no âmbito dos estados, Distrito Federal e municípios, é facultado aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ao Ministério Público, ao Tribunal de Contas e à Defensoria Pública do ente, enquanto remanescer a situação, aplicar mecanismos de ajuste fiscal. Estas medidas também podem ser aplicadas, por ato do Poder Executivo e a critério dos demais poderes, quando as despesas correntes atingirem 85% das receitas, mas, neste caso, tendo que ser ratificada pelo Legislativo em até 180 dias. Entre outros itens, ficam vedados:
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Calamidade pública nacional | Em caso de decretação de calamidade pública nacional pelo Congresso, por iniciativa do presidente da República, fica determinado que a União terá que aplicar, durante o período em que ela durar, todas as restrições previstas no Artigo 167-A, que congelam salários, benefícios e restringem os concursos públicos. É facultado aos chefes executivos dos estados, municípios e Distrito Federal adotar tais medidas de ‘ajuste’, sendo que, caso não o façam, ficam proibidos de firmar operação de crédito com qualquer outro ente da Federação. |
Dívida Pública | O Artigo 164-A ressalta a prioridade para o pagamento das dívidas públicas. O artigo diz que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios “devem conduzir suas políticas fiscais de forma a manter a dívida pública em níveis sustentáveis” e que a “elaboração e a execução de planos e orçamentos devem refletir a compatibilidade dos indicadores fiscais com a sustentabilidade da dívida.” |
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