“As lutas pela carreira e PCS contribuíram para deter o desmonte do Judiciário’’, diz Démerson Dias


04/05/2023 - Helcio Duarte Filho
Entrevista com o servidor aborda aspectos da carreira, do papel dos rebaixamentos salariais e as ameaças internas e externas sobre o serviço jurisdicional público

Servidor do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo e ex-dirigente do Sintrajud e da federação nacional (Fenajufe), Démerson Dias tem larga e intensa experiência nas campanhas e lutas da categoria pela reestruturação das carreiras e de planos de cargos. Participou de basicamente todos os debates e movimentos que resultaram nas conquistas dos Planos de Cargos e Salários (PCSs).

 

Nesta entrevista, Démerson fala da urgência de a categoria se apropriar dos debates e reflexões sobre o seu trabalho e interferir com mais força nas impactantes mudanças que vêm acontecendo.

 

Sobre isso, expõe a complexidade do tema ao dizer que o teletrabalho vem sendo aplicado como parte de um projeto que, ao final, projeta o desmonte do serviço público prestado, das carreiras e elimina postos de trabalho.

 

No entanto, afirma ser factível enfrentar e pressionar para mudar os rumos das transformações irreversíveis e colocá-las a serviço de uma melhor qualidade de vida e de mais empregos.

 

“Parte da categoria prefere o teletrabalho, parte não prefere. Enfim, a gente não pode cair nessa cilada que a política de metas coloca na nossa frente. A opção pelo teletrabalho não é uma opção ingênua, é uma opção concreta dentro da realidade”, constata, ao mencionar que “a pessoa que optou pelo teletrabalho também está fazendo uma crítica ao trabalho presencial”.

 

Afirma, ainda, que as lutas que resultaram nos PCSs, apesar das críticas a aspectos dos projetos finais, foram também fundamentais para enfrentar as políticas que tentam desmontar a Justiça pública. “Sempre que a gente consegue ter ganhos, nós estamos ajudando a segurar um pouquinho esse desmonte”, disse.

 

E faz críticas ao Conselho Nacional de Justiça. “O modelo de gestão que o CNJ está propondo sinaliza para um processo de desmonte e privatização”, afirma. Avalia que as políticas adotadas pelo CNJ caminham para o mesmo lugar dos projetos da extrema-direita que estão no Congresso Nacional e apontam a extinção de parte da Justiça pública – estes apenas mais explícitos e abruptos. “Eu acho até que lutar contra esses projetos nos fortalece na luta interna. Então a luta é sempre a melhor oportunidade, o melhor caminho”, observou.

 

Sobre as pautas relacionadas à Carreira, defende chamar a categoria e propor para ela o desafio de responder a todas essas questões. “Eu não quero ser otimista, mas nesses anos todos de construção do PCS de carreira, sempre que nós pautamos o debate, a categoria deu resposta superior ao que a gente era capaz de elaborar”, disse.

 

Démerson é um dos palestrantes convidados do 9º Congresso do Sintrajud, de 4 a 7 de maio de 2023, em Atibaia (SP). Falará, a partir das 14 horas de sábado (6), no painel “Valorização da carreira e combate à terceirização no Judiciário. Revogação das reformas da previdência e trabalhista”, ao lado de Maria Lúcia Fattorelli, auditora fiscal aposentada da Receita Federal e da coordenação da Auditoria Cidadã da Dívida.

 

A seguir, a entrevista que concedeu ao jornalista Hélcio Duarte Filho, que integra a equipe de comunicação do Sintrajud.

 

*

 

Sintrajud: Você participou da construção e elaboração coletiva de propostas de plano de carreira e de talvez todos os planos de cargos e salários conquistados pela categoria no Poder Judiciário Federal e no MPU. Como você vê a importância deste debate hoje?

 

Démerson Dias: Eu balizaria o debate nos seguintes termos: nós vivemos três momentos que podemos estabelecer como marcos. O momento pós-Constituinte ou Constituinte, quando a gente inscreve na Constituição e elabora o RJU, o Regime Jurídico Único. Naquele momento, havia uma compreensão de que é preciso organizar o Estado para que ele atenda o interesse público. Então ali foi um momento de formulação e de reflexão. E nós, o nosso PCS, eles entram nesse bojo. E dura até concretamente o governo Dilma. O desmonte já tinha começado no governo Collor, mas o desmonte que surge com o Fernando Henrique é um pouco diferente, é um desmonte que ainda aponta para uma perspectiva, alguma perspectiva de Estado.

 

Agora, com Temer o que acontece é o início de um processo de terra arrasada. Então, você tem o início da Constituinte, como primeiro marco; veio o período Fernando Henrique e Bresser Pereira, que buscou desconstruir, mas, do nosso lado, nós seguimos pautando esse debate e fomos razoavelmente vitoriosos, digamos assim, pelo menos no aspecto salarial e no acúmulo do debate. Com o Temer, é inaugurada uma outra fase para o país. Não há uma preocupação com a burocracia, que havia no Plano do Bresser Pereira, [que] visava uma preservação de algum núcleo estratégico no Estado. Ou seja, ainda havia Estado. Agora, de Temer para frente, e aí o Bolsonaro só piora, vem uma política descarada de desmonte. Então, eu acho importante a gente situar esses três momentos, tanto do lado institucional quanto do lado dos trabalhadores.

 

Mesmo com o avanço do neoliberalismo no governo Fernando Henrique e, em parte, a não recuperação disso com o governo Lula, que não reverteu a gestão neoliberal do Estado, mas ainda assim, nesses dois períodos, a gente conseguiu dar conta de fazer uma discussão. Por outro lado, nós nunca conseguimos amadurecer efetivamente um plano de carreira, a gente discutiu, ao largo dele, planos de cargos e salários. Isso não só nós, mas outras categorias também. E aí o que acontece? O problema é que esse modelo foi sendo desgastado. E quando a gente chega em 2009 e a Fenajufe elabora um plano de carreira de fato, as próprias condições objetivas já eram assim francamente desfavoráveis. De lá pra cá, só piorou. Então, assim, a principal importância de discutir carreira é que é o nosso trabalho. Nós temos que ter uma visão crítica do trabalho, do nosso trabalho.

 

A carreira dialoga com isso. Como isso se instala no plano institucional e na luta é uma outra questão, é uma discussão de organização política-sindical. Mas é importante a categoria ter claro que sempre que ela se omite no debate do próprio trabalho, do seu próprio fazer, da crítica ao modelo neoliberal implantado, ao Banco Mundial, ao CNJ, nós estamos abrindo espaço para mais desmonte. É um debate que a gente não pode deixar de fazer. A questão é se nós conseguimos traduzir isso num plano de carreira. Esse é o desafio que eu hoje não consigo vislumbrar solução. E por uma razão muito simples: a solução está nas mãos da categoria. Nós temos que chamar a categoria para essa conversa. É claro, precisa de uma fundamentação mínima, porque nós tínhamos, em 1988, a Constituição. Agora nós não temos mais. Então, nós precisamos lançar elementos e chamar a categoria para refletir sobre o seu trabalho.

 

Sintrajud: Em cima dessa questão da reflexão sobre o trabalho, vivemos um período recente, a partir da pandemia, em que a gente tem uma acentuada desvalorização do servidor e do serviço público nas políticas dos dois últimos governos, por um lado, e por outro, um momento em que os serviços públicos se mostraram muito importantes e necessários para a população no enfrentamento da pandemia. Concomitante a isso, vivemos também um período de enorme avanço tecnológico e da chamada inteligência artificial. E nessa combinação e transformações ganha peso o teletrabalho: a possibilidade do trabalho remoto, do trabalho híbrido, revezamento etc. Tudo se dando, digamos assim, com pouca ou nenhuma consulta à categoria pelas administrações. Categoria que reagiu e atuou em conjunto com o sindicato nos momentos em que foi atacada nesta área. E também, no aspecto legal, toda a regulamentação disso vem se dando por meio de resoluções e portarias. Como analisa isso?

 

Démerson Dias: Nós estamos ainda na vigência de um projeto de desmonte neoliberal. Então, o que aconteceu antes? Os trabalhadores, inspirados na Constituição, tentaram fazer reformas e os governos implantaram contrarreformas. Por isso que esse debate sobre contrarreformas não é um debate secundário, mas é difícil para a sociedade entender isso. Bom, esse é um elemento. O segundo elemento que eu traria, e aí não afeta exatamente o Judiciário, mas afeta o serviço público, é o modelo de gestão. Embora o Estado tenha sido demandado, nós não podemos esquecer, por exemplo, que o SUS, embora seja um projeto público, hoje é gerido basicamente por Ocips, por modelos privados de gestão. E mesmo agora, neste momento, [quando] o governo propõe uma conciliação entre trabalho e capital, ele cria uma agência. Não sei se ele criou já a agência, mas ele cria um modelo de ‘agencificação’. Ou seja, não é o Estado que media, é uma agência do Estado com trabalhadores privados, que não têm obrigação de pensar política pública, elas pensam a política setorial.

 

No Judiciário acontece uma coisa muito parecida: o modelo de gestão que o CNJ está propondo sinaliza para um processo de desmonte e privatização. Isso coloca uma variável nesse debate, que a gente poderia passar um tempo enorme aqui tentando aprofundar. Agora, o que me preocupa mais é que a categoria de fato está se deparando com um desafio que é inédito. Porque na história do teletrabalho nós estamos vivendo uma contradição e é difícil a gente fazer essa discussão, porque tem muito interesse envolvido. É difícil para mim dizer para a categoria, por exemplo, que quando ela atua no machine learning, que é educar a máquina, educar o algoritmo, ela está preparando a extinção do seu trabalho. E o CNJ estabeleceu que o machine learning, a inteligência artificial, é uma diretriz.

 

As pessoas têm dificuldade de entender que quando ela aceita o teletrabalho, ela está também patrocinando a precarização, ela está patrocinando uma situação que pode não afetá-la pessoalmente [agora], mas em médio prazo, do jeito que está sendo implantado, vai patrocinar a extinção das carreiras. Isso poderia ser diferente? Sim, porque esse é um outro elemento da sua pergunta que é complexa, que desde as revoluções industriais é prometido o paraíso para a classe trabalhadora: ‘não, nós vamos trabalhar menos, a qualidade de vida vai melhorar’. E o que acontece é o contrário disso. Acontece que pessoas são demitidas, outras trabalham mais tempo e a qualidade de vida não melhora. Ela melhora inicialmente porque a evolução tecnológica acaba produzindo respostas e soluções melhores, como medicamento, como tecnologia para facilitar o trabalho. Só que isso não volta, volta como mais-valia para o empresário, para o dono do capital e não para o trabalhador. Não reverteu em qualidade de vida.

 

Esse é um debate que eu acho difícil fazer, porque a gente precisaria de tempo e tempo é o que a gente não tem. Porque o tempo da máquina é muito mais rápido que o nosso. Então nós estamos de fato vivendo um desafio. Só que vamos ter claro: isso é irreversível. Por que é irreversível? Porque é um marco civilizatório e é bom. A tecnologia não é neutra, mas ela poderia ter sido usada de forma diferente. Por exemplo, o teletrabalho de fato implicar em você empregar mais pessoas, trabalhando menos e ganhando o mesmo. Mas não é isso que tem acontecido. O que aconteceu foi se forçar um aumento de produtividade. O que deveria aumentar e potencializar a produção, a produtividade é a tecnologia e não o trabalhador ser mais explorado do que era antes. E eu não sei se ficou claro, porque é um tema complexo realmente. E o que sobra pra nós? Chamar a categoria e tentar conversar com ela, porque nós temos pessoas da área de TI que podem ter uma visão crítica sobre isso e os outros setores também. Por exemplo, o Judiciário está atendendo mais ou menos os interesses sociais? Quando eu coloco no INSS o algoritmo que faz uma triagem preliminar e nega a maioria das demandas, eu estou piorando a situação social, que é um tema já debatido. No Brasil é menos, mas a questão do algoritmo reproduzir preconceito é um debate que está posto lá fora, só que aqui não chega, porque, enfim, são problemas culturais nossos, mas é um debate que está posto lá fora e deveria chegar para nós.

 

Sintrajud: A questão tecnológica e as transformações decorrentes dela podem ser irreversíveis, porém, pelo que você analisa, é possível sim barrar a precarização das relações de trabalho e assegurar a manutenção e até ampliação de direitos?

 

Démerson: De um lado, a tecnologia é irreversível. E tem que ser. O que eu acho que a gente precisa fazer é colocar a tecnologia no lugar certo. Como eu falei, a tecnologia tem que reverter em melhoria da qualidade de vida e não está acontecendo isso porque ela está sendo programada para ser usada de outra forma. Mas aí a pessoa que optou por teletrabalho, ela está fazendo uma crítica ao trabalho presencial. Ela está criticando, por exemplo, a jornada de trabalho. Isso infelizmente nós não nos demos conta, nunca esteve tão madura a discussão sobre redução de jornada quanto nesse período pós-pandemia ou a partir da pandemia. Por quê? Porque as pessoas perceberam, e é real isso, o fato de eu me deslocar para o trabalho, o fato de eu ser obrigado a passar uma jornada X definida, eu não posso sair mais cedo porque eu já produzi o suficiente, eu tenho que ficar lá, mesmo que não tenha nada para fazer… Então a opção pelo teletrabalho não é a opção ingênua, é uma opção concreta dentro da realidade.

 

Outra coisa: embora a gente saiba que a qualidade do relacionamento doméstico não melhorou exatamente como a gente gostaria, é óbvio que a pessoa passou a ter mais tempo para ela. Como ela administrou isso é um outro problema. Mas vai me dizer que os filhos não gostaram de ter o pai e a mãe por perto mais tempo? Esses elementos precisam ser discutidos. Eu acho que a gente teve um hiato aí em que a gente parou de discutir o trabalho, enquanto a CNJ acelerou esse debate. Porque essa discussão que chega hoje via tecnologia podia ter chegado antes, como chegou no debate do assédio moral. A gente estava indo nesse caminho, né? Só que não na velocidade que a tecnologia exigiu. Então o que eu diria? É uma resposta até que conservadora: nós temos que chamar a categoria e ouvir a categoria e propor para ela o desafio de responder a essas questões todas. Não basta a gente só constatar não, parte da categoria prefere o teletrabalho, parte não prefere. Enfim, a gente não pode cair nessa cilada que a política, que as metas colocaram na nossa frente.

 

Por exemplo, nós não estamos discutindo se o Judiciário está fazendo mais ou menos justiça com as métricas do CNJ. A gente sabe que é meta matemática, numérica. A qualidade da Justiça não melhorou, e esse debate nós não estamos fazendo. Então, tentando sintetizar uma resposta: com certeza a categoria é fundamental, sempre é importante chamar a categoria para a discussão, mas cada vez é mais importante ainda porque os ataques são cada vez mais brutais.

O tempo todo ouvir a categoria e propor o desafio de pensar o seu trabalho é uma tarefa de todos nós. Eu me lembro aqui da educação e da saúde fazerem historicamente greves para melhoria do serviço público. [Também precisamos] defender a melhoria da prestação jurisdicional, a denúncia de soluções jurídicas que atendem a grandes grupos econômicos em detrimento não só do direito social, mas do próprio direito, do Estado Social mesmo, da própria Constituição. Eu não quero ser otimista, mas nesses anos todos de construção do PCS de carreira, sempre que nós pautamos o debate, a categoria deu resposta superior ao que a gente era capaz de elaborar. Por isso, em 2009, nós chegamos naquele projeto. Por quê? Porque nós partimos do quê? De quem realiza o trabalho e a crítica do trabalho, é a práxis. A gente tentou pautar a práxis e as pessoas têm as respostas. É preciso que a gente consiga se organizar e organizar a categoria para ela dar essas respostas.

 

Sintrajud: O rebaixamento dos salários por meio de longos períodos de congelamento, como o que acabou de ser superado, é uma forma de atacar também os serviços públicos oferecidos à população?

 

Démerson: Eu vou fazer um parênteses, porque embora eu fale de ‘agencificação’ no Judiciário, o que há de fato é privatização. Só que o Judiciário aprimora o modelo neoliberal porque, além do Bresser Pereira, ele segue os ritos do Banco Mundial. Então existe uma outra matriz teórica, ela não concorre com o Bresser Pereira, mas o Banco Mundial formula uma outra teoria, uma outra visão de sociedade. E o CNJ tem sido muito eficaz na aplicação disso.

 

A questão do desmonte de salário, por exemplo, do rebaixamento de salário, ela dialoga num primeiro momento como o desmonte neoliberal em geral, porque nós temos no país a Lei de Responsabilidade Fiscal, mas não temos a Lei de Responsabilidade Social. E, com isso, você tem a discussão do serviço público, você não aprimora o serviço público, você desmonta ele e uma das formas do desmonte é a redução do salário e o Bresser Pereira deixou isso claro. O que acontece com essa questão salarial? Enquanto os salários no Judiciário foram mais interessantes do que os setores no mundo jurídico do setor privado, as pessoas vieram para cá. Isso não se inverteu ainda, mas o que acontece: é preciso rebaixar os salários em todo o setor público, inclusive no Judiciário, para que as pessoas se dirijam ao setor privado, para que isso ajude a sucatear. Então, isso talvez seja uma reflexão que tenha faltado para nós, para alguns de nós, que os PCS foram fundamentais, eles contribuíram, eles combateram o desmonte do Judiciário por um bom tempo, porque a gente conseguiu inserir [essa defesa] através de política salarial. Podemos ter todas as críticas, eu sou uma pessoa crítica ao PCS, embora tenha ajudado a elaborar quase todos. Mas, assim, temos que reconhecer isto: o Judiciário, como talvez nenhum outro, ou como poucos setores, conseguiu segurar esse desmonte, porque a categoria de fato lutou e realizou uma preservação do poder aquisitivo.

 

E isso foi sendo deteriorado com o tempo. E aí, em algum momento vai se reverter essa tendência, mas foi fundamental. E aí é preciso frisar: a luta dos trabalhadores e das trabalhadoras é uma luta consciente, pautada, inclusive, em elaboração teórica. Mas a luta, as greves levaram a gente a resistir e até mesmo combater o desmonte. E sempre que a gente consegue ter ganhos, nós estamos ajudando a segurar um pouquinho esse desmonte. Inclusive porque a categoria, nos planos de carreira, nos PCSs, discutiu o aperfeiçoamento do Poder Judiciário. Então são coisas casadas. Mas, com certeza, a luta por proteção salarial, por preservação do poder aquisitivo, nós não podemos inventar a roda, é a luta primordial da classe trabalhadora, é o que está na frente dela, é o que ela consegue ver com mais clareza. Cabe às direções [sindicais], às vanguardas introduzirem os outros elementos.

 

Sintrajud: O Poder Judiciário vem sendo alvo constante de setores da extrema-direita, não só a Justiça Eleitoral, onde nas eleições servidoras e servidores chegaram a ser hostilizados, como a Justiça do Trabalho e a Justiça como um todo. Como você analisa os projetos apresentados por parlamentares da direita que ameaçam extinguir ramos do Judiciário e que tramitam no Congresso Nacional?

 

Démerson: É outra pergunta complexa porque eu acho que esses projetos de extinção cumprem quase que o papel diversionista, porque o desmonte real está sendo patrocinado pelos projetos do CNJ. O CNJ tem um projeto muito mais consistente, porque ele, inclusive, não depende de lei. É um desmonte de dentro para fora. E não precisa extinguir a Justiça do Trabalho. Na Justiça do Trabalho é um péssimo exemplo, porque veio o debate do negociado sobre o legislado. Mas, por exemplo, não precisa extinguir direitos. Eu posso criar um algoritmo no Judiciário que caso o cidadão, a cidadã pleiteie o direito de forma precária ou com advogado que não seja tão experiente, ele de pronto vai ter na primeira instância o seu pleito rejeitado. E se ele não tiver condição de recorrer a uma segunda ou terceira instância, ele já vai ter o seu direito revogado. Sem lei, sem nada, apenas com base no algoritmo.

 

Agora, me parece, pensando nos projetos de extinção, [eles precisam ser combatidos]. E à medida que tenta se extinguir de um lado e os trabalhadores lutam para combater isso, abre um debate na sociedade. Ou abre a oportunidade de debate na sociedade. E sempre que isso acontece, eu acho que a gente acaba avançando muito mais do que recuando. A luta, ao contrário do que a mídia tenta fazer crer, ajuda a esclarecer as coisas. É claro que o obscurantismo sempre tentou encobrir as coisas, mas sempre que você tem uma luta que apresenta os desafios que aquela categoria específica está enfrentando, você abre oportunidades de uma discussão com a sociedade sobre o papel do Estado, o papel do Judiciário. Isso ficou muito claro, por exemplo, com o SUS na pandemia, mas pode ficar também com o Judiciário. É questão da gente conseguir aproveitar a oportunidade. Então, eu acho que nós temos que combater nas duas frentes, porque na minha opinião, eu posso estar enganado, o desmonte real está acontecendo por dentro, mas é claro que se você deixar correr solto, os projetos de desmonte via legislativa, eles vão acontecer e aí precipita algo que o CNJ buscava e que [poderia] acontecer mais lentamente.

 

Mas a oportunidade está exatamente na gente confrontar isso, que é mais fácil, na minha opinião, do que confrontar o embate que ocorre por dentro. Porque por dentro o Judiciário está convencendo corações e mentes, inclusive magistratura, advogados. Então a luta é sempre a melhor oportunidade, o melhor caminho. Eu acho até que lutar contra esses projetos nos fortalece na luta interna. A gente tem que tomar cuidado para não se desgastar, porque são duas frentes que parecem que são a mesma, mas se apresentam de forma distinta. Mas a luta sempre vai estar na perspectiva de solução para a classe trabalhadora. Sempre.

 

Sintrajud: No caso dos projetos, eles são cada vez mais explícitos…

Démérson: Sim. Mas até nisso, eu lembro que quando se falou na discussão de extinção do Ministério do Trabalho, como teve pessoas, setores, sindicatos que disseram ‘peraí, como é isso?’. O projeto suscita debates. Diferente do CNJ, que está fazendo tudo isso por dentro e ele vem e diz como sendo coisas boas. Se você entra na página do CNJ você fica encantado com as diretrizes, mulheres, crianças, está tudo melhorando. Só que não é isso que está sendo realizado pela política.

 

O projeto do CNJ e do Banco Mundial é um projeto privatista porque eles estão apostando na mediação do capital. Eles dizem que a mediação é mais democrática que o Estado. Há um fundo filosófico consistente aí. Só que ele é inconsistente para o conjunto da sociedade. Se você falar para a sociedade se ela quer optar pelo direito ou se ela negociar o direito, ela quer o direito em si. Quando o trabalhador do Judiciário deixa de considerar que ele é parte de uma classe, ele enfraquece a luta por direitos também em outras categorias. Eu preciso de um Judiciário que atenda ao interesse social não só porque eu preciso defender a minha situação. Eu tenho que defender que a sociedade tenha mais direitos, realize direitos, e o modelo privatista retira isso da sociedade.

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