SINDICATO DOS TRABALHADORES DO JUDICIÁRIO FEDERAL NO ESTADO DE SÃO PAULO
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JJ - Edição 224 - 23/09/2005 - Página 7

CULTURA - CINEMA


Solanas leva catástrofe argentina para telas

Documentário sobre conseqüências da implementação do projeto
neoliberal no país vizinho tem muitos pontos similares ao Brasil

Por Hélcio Duarte Filho

As novas gerações talvez nem saibam mais disso. Mas a Argentina, eterna rival do Brasil nos gramados, destacava-se também como o país com melhores índices de desenvolvimento humano na América do Sul.
O retrato que o cineasta argentino Fernando Solanas leva para a telona com “Memórias do Saqueio” é outro. As imagens da vida em cidades afastadas de Buenos Aires que tiveram fábricas fechadas após as privatizações neoliberais é desolador. Não devem nada à miséria secular das periferias urbanas e dos grotões do interior do Brasil. “Estamos passando fome. Nos levaram o petróleo, nos levaram o gás, e é assim que nos pagam?”, pergunta um ex-operário da ex-estatal do petróleo.
No aspecto cinematográfico, o documentário do pouco convencional Solanas não traz inovações. Pode-se dizer que trabalha com respostas prontas e alvo certo – atacar as privatizações e o conjunto da obra neoliberal que teve no ex-presidente Carlos Menem seu principal executor na década de 1990. Por parte da crítica, foi definido como panfleto político pobre. Recebeu comparações (negativas) com as obras de Michael Moore, o norte-americano que faz de seus filmes torpedos contra o presidente George W. Bush e o “sonho americano”.

Cenas do filme: rebelião popular em 2001 e menino em região com alto nível de pobreza

Independente do eterno debate sobre os limites criativos da arte engajada, o filme tem méritos. E o principal deles talvez seja de difícil digestão para quem viu ou ainda vê nas idéias neoliberais sinônimo de progresso e modernidade.
A obra mostra que a euforia das privatizações, da abertura do comércio e da dolarização – anunciados pelo ministro da economia de Menem, Domingos Cavallo, como uma “revolução produtiva” – levaram o país à ruína e a um empobrecimento da população jamais visto. Também aborda a corrupção e o surgimento de uma burocracia vendida aos interesses dos Estados Unidos – incluindo aí os papéis primordiais das lideranças sindicais, cooptadas, e do Poder Judiciário, conivente, para que tudo acontecesse sem contestações.
Panfletário? É provável. Mas Solanas, militante da esquerda, parece querer provocar a reflexão expondo sem meias palavras o que se passou na argentina. Talvez um contraponto à história oficial, que, se já perdeu a euforia, ainda defende as políticas neoliberais adotadas na América Latina.
Ao final, as imagens da rebelião popular que derrubou o presidente De la Rua, em dezembro de 2001, na qual 34 manifestantes foram assassinados, pagam o ingresso. Emocionam, mostram a derrocada do projeto neoliberal e reafirmam a velha máxima de que não se pode enganar a todos o tempo todo.


CRÔNICA


Vamos comemorar!

Maria Francisca Lopes

Você alguma vez na sua vida já esteve no seu fusquinha 65 azul, subindo algo que poderia jurar tratar-se de um morro, embora seu guia rodoviário lhe informasse ser a Estrada da Vovó Carolina? Parou algum dia seu carro para indagar do caboclo – parado à porta do próprio barraco – que rua, bairro, cidade, planeta era aquele – para descobrir que nem ele sabia?
Já enfrentou porventura meia dúzia de cães sanguinários munido apenas de uma pasta; foi atendido por um empregado mal encarado te radiografando do lado errado de uma carabina; suportou com paciência de monge chinês ataques - justificáveis ou não - de fúria, choro, stress, histerismo, simples descontrole alcoólico, tudo agravado com a responsabilidade de não se envolver emocionalmente? Se respondeu sim a mais que duas dessas perguntas, parabéns, você é um colega oficial de justiça e estas linhas são endereçadas a você.
Somos do Judiciário a materialização do Estado que o cidadão mais humilde toma conhecimento, uma vez que os mais abonados financeiramente em geral têm todo um aparato que filtra ao máximo a ingerência do Estado em suas vidas.
O juiz decide e nós levamos a má nova para ele - mesmo porque, se fosse boa nova certamente o advogado faria questão de informá-lo pessoalmente, o que todos podemos compreender.
Como dizia um professor, a melhor notícia que um oficial de justiça traz é a de que você será testemunha em algum processo, e não comparecendo pagará multa e terá a companhia nem sempre simpática de alguns policiais.
Somos os arautos das notícias ruins, conseqüentemente, não podemos ser muito amados pelo público em geral, que nos identifica inclusive com estereótipos ligados à corrupção. Somos, ao mesmo tempo, trabalhadores que deixam em casa pessoas que nos amam e se preocupam com os lugares inóspitos que freqüentamos.
Somos, enfim, como termômetros humanos: da economia, dos planos econômicos dos governos, do desemprego, da reação ao aumento da carga tributária; sentimos tudo isso na pele, antes mesmo dos indicadores oficiais colherem seus dados, à medida que adentramos os lares e classificamos seu grau de miserabilidade (que temos de agradecer, no Brasil é apenas material, raras vezes espiritual) e presenciamos também a compreensível falta de entusiasmo do empresário em contratar num país em que as regras do jogo mudam a todo momento.
Contudo, ainda nos sentimos meio que separados dos outros trabalhadores do Judiciário, vez que nossa rotina é sui generis”, e para quem olha de fora parece uma vida ideal.
Numa auto-análise, talvez seja nossa responsabilidade esclarecer aos colegas como é nosso dia-a-dia, e ouvir o lado deles.
Talvez assim nos congracemos (que lindo) e possamos lutar como categoria que somos, queiramos ou não – já que o Estado – não o Judiciário – nos enxerga assim, como um grande bloco indefinido que realiza a tarefa maior, o bem supremo de arrecadar.
Sabemos que colegas acabam desenvolvendo algum tipo de fobia, síndrome do pânico, e outras doenças que de novas só tem a denominação uma vez que seres humanos submetidos a stress semelhante ao inerente à nossa rotina podem ser encontrados fossilizados em museus pelo mundo, sem ter tido o prazer de ao menos uma consulta psicológica. Porém estes mesmo colegas têm de saber que não estão sozinhos, que os que lutam por uma melhoria para a categoria como um todo também lutam por eles, independentemente de partido ou chapa de sindicato.
Vale ainda lembrar que, quando nos reunimos nos sindicatos ou associações, – deixando filhos e responsabilidades em casa - estamos também socializando, trocando essas experiências que vão de trágicas a cômicas - muitas vezes no mesmo dia de trabalho de um único indivíduo.
Desnecessário explicar que as atividades físicas ajudam muito na luta contra o stress. Logo, pare de reclamar e venha dançar – a propósito, o sindicato oferece um ótimo curso de dança de salão aos sábados, gratuito para os associados.
Em última análise, temos de nos orgulhar da nossa profissão.
Pode ser que daqui a alguns anos a tecnologia nos torne dispensáveis, como função, e sejamos substituídos por oficiais de justiça virtuais. Contudo, na área do direito, qualquer profissional que não se recicla torna-se mesmo obsoleto. Enquanto isso não acontece, cabe a nós utilizar nosso conhecimento para servir ao cidadão da melhor forma que pudermos, trazendo, assim, as bonitas teorias do direito o mais próximo possível da realidade sensível do destinatário do provimento jurisdicional, na medida de nossa própria limitação material.
Ao invés de tentar mudar a cabeça de todos, vamos mudar a nossa. Afinal, 5 de setembro foi o nosso dia. Comemore a vida, esqueça os prazos, encontre os amigos, vá namorar - porque, na verdade, nosso próprio prazo como seres humanos (ou data de validade, como diriam alguns) também se esgota.

Maria Francisca é oficial de justiça avaliadora da Vara do Trabalho de Ribeirão Pires.