As novas gerações talvez nem saibam mais disso. Mas a Argentina, eterna rival do Brasil nos gramados, destacava-se também como o país com melhores índices de desenvolvimento humano na América do Sul.
O retrato que o cineasta argentino Fernando Solanas leva para a telona com “Memórias do Saqueio” é outro. As imagens da vida em cidades afastadas de Buenos Aires que tiveram fábricas fechadas após as privatizações neoliberais é desolador. Não devem nada à miséria secular das periferias urbanas e dos grotões do interior do Brasil. “Estamos passando fome. Nos levaram o petróleo, nos levaram o gás, e é assim que nos pagam?”, pergunta um ex-operário da ex-estatal do petróleo.
No aspecto cinematográfico, o documentário do pouco convencional Solanas não traz inovações. Pode-se dizer que trabalha com respostas prontas e alvo certo – atacar as privatizações e o conjunto da obra neoliberal que teve no ex-presidente Carlos Menem seu principal executor na década de 1990. Por parte da crítica, foi definido como panfleto político pobre. Recebeu comparações (negativas) com as obras de Michael Moore, o norte-americano que faz de seus filmes torpedos contra o presidente George W. Bush e o “sonho americano”.
Independente do eterno debate sobre os limites criativos da arte engajada, o filme tem méritos. E o principal deles talvez seja de difícil digestão para quem viu ou ainda vê nas idéias neoliberais sinônimo de progresso e modernidade.
A obra mostra que a euforia das privatizações, da abertura do comércio e da dolarização – anunciados pelo ministro da economia de Menem, Domingos Cavallo, como uma “revolução produtiva” – levaram o país à ruína e a um empobrecimento da população jamais visto. Também aborda a corrupção e o surgimento de uma burocracia vendida aos interesses dos Estados Unidos – incluindo aí os papéis primordiais das lideranças sindicais, cooptadas, e do Poder Judiciário, conivente, para que tudo acontecesse sem contestações.
Panfletário? É provável. Mas Solanas, militante da esquerda, parece querer provocar a reflexão expondo sem meias palavras o que se passou na argentina. Talvez um contraponto à história oficial, que, se já perdeu a euforia, ainda defende as políticas neoliberais adotadas na América Latina.
Ao final, as imagens da rebelião popular que derrubou o presidente De la Rua, em dezembro de 2001, na qual 34 manifestantes foram assassinados, pagam o ingresso. Emocionam, mostram a derrocada do projeto neoliberal e reafirmam a velha máxima de que não se pode enganar a todos o tempo todo.
Você alguma vez na sua vida já esteve no seu fusquinha 65 azul, subindo algo que poderia jurar tratar-se de um morro, embora seu guia rodoviário lhe informasse ser a Estrada da Vovó Carolina? Parou algum dia seu carro para indagar do caboclo – parado à porta do próprio barraco – que rua, bairro, cidade, planeta era aquele – para descobrir que nem ele sabia?
Já enfrentou porventura meia dúzia de cães sanguinários munido apenas de uma pasta; foi atendido por um empregado mal encarado te radiografando do lado errado de uma carabina; suportou com paciência de monge chinês ataques - justificáveis ou não - de fúria, choro, stress, histerismo, simples descontrole alcoólico, tudo agravado com a responsabilidade de não se envolver emocionalmente? Se respondeu sim a mais que duas dessas perguntas, parabéns, você é um colega oficial de justiça e estas linhas são endereçadas a você.
Somos do Judiciário a materialização do Estado que o cidadão mais humilde toma conhecimento, uma vez que os mais abonados financeiramente em geral têm todo um aparato que filtra ao máximo a ingerência do Estado em suas vidas.
O juiz decide e nós levamos a má nova para ele - mesmo porque, se fosse boa nova certamente o advogado faria questão de informá-lo pessoalmente, o que todos podemos compreender.
Como dizia um professor, a melhor notícia que um oficial de justiça traz é a de que você será testemunha em algum processo, e não comparecendo pagará multa e terá a companhia nem sempre simpática de alguns policiais.
Somos os arautos das notícias ruins, conseqüentemente, não podemos ser muito amados pelo público em geral, que nos identifica inclusive com estereótipos ligados à corrupção. Somos, ao mesmo tempo, trabalhadores que deixam em casa pessoas que nos amam e se preocupam com os lugares inóspitos que freqüentamos.
Somos, enfim, como termômetros humanos: da economia, dos planos econômicos dos governos, do desemprego, da reação ao aumento da carga tributária; sentimos tudo isso na pele, antes mesmo dos indicadores oficiais colherem seus dados, à medida que adentramos os lares e classificamos seu grau de miserabilidade (que temos de agradecer, no Brasil é apenas material, raras vezes espiritual) e presenciamos também a compreensível falta de entusiasmo do empresário em contratar num país em que as regras do jogo mudam a todo momento.
Contudo, ainda nos sentimos meio que separados dos outros trabalhadores do Judiciário, vez que nossa rotina é sui generis”, e para quem olha de fora parece uma vida ideal.
Numa auto-análise, talvez seja nossa responsabilidade esclarecer aos colegas como é nosso dia-a-dia, e ouvir o lado deles.
Talvez assim nos congracemos (que lindo) e possamos lutar como categoria que somos, queiramos ou não – já que o Estado – não o Judiciário – nos enxerga assim, como um grande bloco indefinido que realiza a tarefa maior, o bem supremo de arrecadar.
Sabemos que colegas acabam desenvolvendo algum tipo de fobia, síndrome do pânico, e outras doenças que de novas só tem a denominação uma vez que seres humanos submetidos a stress semelhante ao inerente à nossa rotina podem ser encontrados fossilizados em museus pelo mundo, sem ter tido o prazer de ao menos uma consulta psicológica. Porém estes mesmo colegas têm de saber que não estão sozinhos, que os que lutam por uma melhoria para a categoria como um todo também lutam por eles, independentemente de partido ou chapa de sindicato.
Vale ainda lembrar que, quando nos reunimos nos sindicatos ou associações, – deixando filhos e responsabilidades em casa - estamos também socializando, trocando essas experiências que vão de trágicas a cômicas - muitas vezes no mesmo dia de trabalho de um único indivíduo.
Desnecessário explicar que as atividades físicas ajudam muito na luta contra o stress. Logo, pare de reclamar e venha dançar – a propósito, o sindicato oferece um ótimo curso de dança de salão aos sábados, gratuito para os associados.
Em última análise, temos de nos orgulhar da nossa profissão.
Pode ser que daqui a alguns anos a tecnologia nos torne dispensáveis, como função, e sejamos substituídos por oficiais de justiça virtuais. Contudo, na área do direito, qualquer profissional que não se recicla torna-se mesmo obsoleto. Enquanto isso não acontece, cabe a nós utilizar nosso conhecimento para servir ao cidadão da melhor forma que pudermos, trazendo, assim, as bonitas teorias do direito o mais próximo possível da realidade sensível do destinatário do provimento jurisdicional, na medida de nossa própria limitação material.
Ao invés de tentar mudar a cabeça de todos, vamos mudar a nossa. Afinal, 5 de setembro foi o nosso dia. Comemore a vida, esqueça os prazos, encontre os amigos, vá namorar - porque, na verdade, nosso próprio prazo como seres humanos (ou data de validade, como diriam alguns) também se esgota.