SINDICATO DOS TRABALHADORES DO JUDICIÁRIO FEDERAL NO ESTADO DE SÃO PAULO
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JJ - Edição 161 - 19/11/2003 - Página 11

ENTREVISTA COM O SERVIDOR - ELISÂNGELA GONÇALVEZ DE SOUSA


Um visconde negro no Império

Servidora da JT/2ª Região, Elisângela Gonçalvez de Sousa lança com a advogada Maria da Penha livro que conta a história do Visconde de Jequitinhonha

PERFIL


Elisângela Gonçalvez de Sousa

Técnica judiciária da 14ª Vara da Justiça do Trabalho, está há 12 anos no serviço público e 8 no Judiciário. Aos 30 de idade, é integrante da subcomissão de Negros e subcomissão de Educação da OAB. Estuda direito e é formada em história.
A servidora Elisângela Gonçalvez de Sousa se empolga quando fala do Visconde de Jequitinhonha, ou Francisco Gê Acaiaba de Montezuma. Personagem ignorado da história brasileira, o relato da historiadora sobre este advogado negro que atuou no Segundo Reinado surpreende.
Autora do livro, ao lado da advogada Maria da Penha, “Visconde de Jequitinhonha, um negro no Império”, Elisângela conta como surgiu a idéia de pesquisar sobre o tema e como foi possível viabilizar a obra, que teve o apoio da OAB. Leia, a seguir, trechos da entrevista concedida a Luiz Carlos Máximo, cuja íntegra está na versão digital deste jornal, esta aqui.

Jornal do Judiciário - Como você descobriu o Visconde de Jequitinhonha?
Elisângela - Foi a partir de um funcionário da Ordem dos Advogados do Brasil que nos relatou que o fundador da OAB foi um negro. Eu não conhecia, a Maria da Penha já sabia dele. Ela me contou que o ex-senador Abdias Nascimento, há algum tempo, lhe sugeriu que fizesse um trabalho de resgate do Visconde porque ela é advogada e militante.

Por que esse personagem lhe motivou a escrever o livro?
Nos sentimos no dever de tornar pública essa reparação histórica. Porque a partir do momento em que parti para o campo, percebi que não existia nada, nem ninguém, que tivesse reunido o feito do personagem. Ele fundou o Instituto dos Advogados do Brasil e a OAB que é, na verdade, uma dissidência desse instituto. O primeiro projeto de imposto de renda no Senado é dele, em 1867. Foi ministro das Relações Exteriores. Um dos fundadores do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, e ministro da Justiça na época da Farroupilha. Trazer a público todos os feitos do personagem foi o mínimo que podíamos fazer. Uma biografia completa não foi possível por falta de recursos econômicos.

Como, sendo um negro, ele conseguiu ganhar o título de Visconde?
Ele ganhou o titulo em 1854 do imperador D. Pedro II. Era senador na época e homem de confiança do imperador. Teve um papel dentro da história imperial do Brasil muito mais importante. Em 1823, liderou a assembléia constituinte a se rebelar contra D. Pedro I e que alguns itens da Constituição fossem aprovados. E daí foi exilado para França, de 1823 a 1831.

De que forma um filho de uma escrava com um comerciante de escravos conseguiu esse nível de escolaridade e ascensão social?
O pai o encaminhou. Todas as oportunidades que ele teve foram graças ao pai, que cuidou da sua educação e o colocou na escola de medicina da Bahia que é hoje a UFBA [Universidade Federal da Bahia]. Ele abandonou o curso e o pai o mandou para Portugal. Embora o pai se beneficiasse do comércio de negros, isso não o impediu que tivesse uma consciência crítica quanto à escravidão. Era um líder negro entre brancos.

Você considera que ele foi “apagado” da história do Brasil por ser negro?
Afirmo isso com certa tranqüilidade, porque não vejo outro motivo. Machado de Assis, em 1898, que não era nascido na época da Constituinte de 1823, quando escreve sobre o Senado só faz alusão ao Montezuma de maneira positiva e com grande admiração e respeito. Não foi um personagem que passou despercebido na época imperial. Mas niguém se prestou a fazer uma homenagem como o imperador D. Pedro II que lhe deu o título de visconde. Não existe um momento histórico dentro do segundo reinado que esse homem não tivesse participação direta ou indireta. Ele era abolicionista desde o início do século XIX. Defendia o fim da escravidão e do tráfico. Em 1816 foi estudar Direito em Coimbra e participou da Revolução do Porto, que pedia a volta de D. João VI para Portugal em razão da invasão de Napoleão, porque sabia que ficava mais fácil o Brasil conseguir a independência. Tanto que em 1821 participou diretamente do processo de independência.

Zumbi e outros que lutaram pela libertação são sempre citados pelo movimento negro, o personagem do seu livro nunca foi lembrado. Existe um desconhecimento também das pessoas que lutam contra o racismo?
De toda a população brasileira. O movimento negro o ignora, está começando a conhecer a partir do nosso livro, porque não existia nada reunido. Por mais que se critique nosso modesto ensaio de biografia. Eu sou negra e o conhecimento público desse personagem é um direito e um dever, independente de raça.

Mas se existem citações, por que os historiadores e militantes da questão racial o desconhecem?
A lei 10.639/03 sancionada pelo Lula em 19 de janeiro, obriga aos professores de história, de qualquer instituição de ensino, a tomar conhecimento da história afro-brasileira. Eu tenho uma hipótese que talvez tenha contribuído para esse apagamento: o fato dele ser citado sempre como Visconde, senador e nunca como negro. Por isso o título do livro “Visconde de Jequitinhonha, um negro no Império”. Para fazer esse choque do título de Visconde, que está acima de Barão, com a questão racial. Um império escravocrata que tinha um Visconde negro.

Você acha que possam existir outros personagens negros da história do Brasil ainda desconhecidos?
Há uma grande probabilidade que sim.

Como você analisa o cenário da representação política dos negros?
Hoje, existem quantos senadores negros? Se não me engano três. Essa desproporcionalidade de representação política dos negros ocorre há muito tempo. Mas e hoje? A representatividade dos negros no poder político é tão pouca quanto há 150 anos. A diferença é que hoje se tem o cuidado de não omitir a palavra negro. Hoje se destaca. Essa questão da auto-estima e uma série de outras ações afirmativas têm ajudado neste sentido. O que me dá muito orgulho. Esta história de negro 100%, embora seja agressivo para alguns, para outros é extremamente positivo.

Vocês não tiveram nenhum tipo de financiamento?
Fizemos esta pesquisa sem qualquer financiamento. A OAB custeou a impressão. Temos que vender o livro pra pagá-la. Vou trabalhar minha pós-graduação, na área de história, na biografia completa dele.

Como o livro tem repercutido no movimento negro?
O movimento vê advogado negro como um militante de elite. Não se aproxima. Uma ignorância. Tem aquela coisa de “somos negros mas nem por isso estamos tão juntos quanto você pensa”. Se eu falar da questão de classe, serei obrigada a falar que Marx não falou dos escravos e aí a gente vai longe. Falou da classe operária, do burguês, dos donos dos meios de produção, mas dos escravos e ex-escravos que não foram absorvidos pelo mercado de trabalho ele não falou. É um problema.