SINDICATO DOS TRABALHADORES DO JUDICIÁRIO FEDERAL NO ESTADO DE SÃO PAULO
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JJ - Edição 153 - 03/09/2003 - Página 8

ENTREVISTA - JUCA VARELLA, CORRESPONDENTE DE GUERRA


Diário de Bagdá

Único fotógrafo brasileiro a cobrir a guerra da capital iraquiana, Varella lança livro e afirma que os iraquianos odeiam a ONU tanto quanto aos EUA, relata depoimentos de torturados por Saddam e diz que as imagens da derrubada da estátua do ditador foram forjadas

O atentado à ONU (Organização das Nações Unidas), em agosto, não surpreendeu o repórter-fotográfico Juca Varella. “Os iraquianos odeiam a ONU tanto quanto aos Estados Unidos”, afirma o jornalista da Folha de São Paulo, um dos poucos profissionais a registrar o primeiro bombardeio sobre Bagdá, no dia 19 de março. O motivo: foi a ONU que aplicou os 13 anos de embargo econômico imposto ao Iraque. As impressões dos dois únicos jornalistas brasileiros que cobriram a guerra da capital iraquiana, Varella e Sérgio Dávila, estão no recém-lançado “Diário de Bagdá - a guerra vista pelos bombardeados”, da editora DBA (150 páginas, R$ 59), livro que traz textos de Dávila e fotos de Varella.

Imprensa mostra ao mundo vítima da ocupação americana no Iraque

Para o fotógrafo da Folha, que já cobriu duas Copas do Mundo e uma Olimpíada, o correspondente de guerra deve contornar as dificuldades e as limitações impostas por ambos os lados para, em meio a generalizada manipulação de informação, transmitir alguma verdade. Os jornalistas que estavam em Bagdá fizeram isso? Pelo depoimento dele, a maioria não. Prova mais eloqüente disso foram as imagens da queda da estátua de Saddam, que simbolizaram a “libertação” dos iraquianos pelas tropas da coalizão anglo-americana. “Não tinha mais do que 50 iraquianos ali”, relata. Mas o iraquiano gostava de Saddam? Varella responde que não, pelo menos a maior parte não. E aponta o que considera a única unanimidade entre os iraquianos: o desejo de que os norte-americanos deixem o país nas mãos de seu povo.
Nesta entrevista, concedida em sua casa, no bairro da Barra Funda, na capital paulista, ao jornalista Hélcio Duarte Filho, Varella fala ainda dos saques que se multiplicaram após a queda do regime e do medo que envolve a rotina da cobertura em meio aos bombardeios. Prestes a fazer um curso especializado para correspondentes de guerra em Buenos Aires, Varella se prepara para voltar ao Iraque no ano quem vem. O que espera encontrar? “Nada muito diferente de como está hoje, a tensão vai continuar”, avalia.

Juca Varella e Sérgio Dávila durante cobertura da guerra (da esquerda para a direita)


Jornal do Judiciário - Há poucos dias aconteceu o atentado à ONU (Organização das Nações Unidas) que matou 22 pessoas, entre elas o brasileiro Sérgio Vieira. Em algumas entrevistas, vocês disseram que a ONU era tão odiada pelo iraquiano quanto os Estados Unidos. Como vocês perceberam isso lá?
Juca Varella – A gente percebeu sim. O povo iraquiano em geral vê na ONU um órgão dos EUA, é uma entidade que trabalha para os EUA. Isso se deve a esses anos todos de embargo econômico. A maioria da população não teve e não tem ainda acesso a uma informação alternativa a não ser aquela que vem do governo iraquiano. A informação que se tem sobre a ONU é aquela que Saddam e seu governo alardeavam. E na verdade é um pouco isso, porque a ONU foi uma entidade que administrou o embargo, administrou aquele projeto Petróleo por comida. Outra coisa: antes um pouco da guerra, a ONU fez a ação pente fino no Iraque, eles fizeram um mapeamento de toda a defesa iraquiana. Não acharam deposito de armas químicas e de destruição em massa, retiraram do país meia dúzia de mísseis de médio e longo alcance. Os EUA não obedeceram a resolução da ONU, pegaram estas informações e invadiram e ocuparam o Iraque. A ONU perante o povo iraquiano é um tentáculo dos EUA. Esta explosão da sede da ONU não foi uma surpresa. O que pode ter acontecido é que os meios de comunicação não tenham explorado esse dado, porque eles não gostam da ONU agora, não gostavam antes e não gostavam há 15 anos atrás. Foi uma conseqüência disso.

E qual era a relação do povo iraquiano com Saddam?
Se desse para dividir, eu diria que um pouco menos da metade da população gostava do cara. Porque eles tinham uma qualidade de vida, não tem miséria no Iraque. Não é como a gente vê aqui na rua. Mais de 90% da população adulta é alfabetizada. Então uma parte dela, minoria, até queria que o cara continuasse lá, mesmo porque a população empregada em órgãos estatais era muito grande. E são pessoas que defendiam a estrutura governamental para viver bem. A outra parcela grande da população, não. Sentia falta da liberdade, sentia aquele esquema repressor na carne e queriam a mudança do regime. Agora, tanto a parcela simpática quanto a não simpática ao regime não querem a presença dos EUA lá. Isso é uma unanimidade. Os que não queriam Saddam dizem: obrigado pelo serviço sujo, agora caíam fora, deixem que do país a gente toma conta. E aqueles que eram a favor de Saddam ainda participam das milícias e também têm esta mesma visão dos EUA, mais exacerbada e mais forte.

Como a população recebeu os soldados americanos? No livro, vocês dizem que as imagens foram manipuladas.
Aquelas imagens da população acenando para os americanos chegando foram pouquíssimas e todas fechadas. É natural que num amontoado de gente tenha aquele que simpatize, mas 99,9% não. Na história da estátua, tinha mais jornalistas e soldados do que iraquianos. E se você for ver as imagens são todas fechadas. Teve uma agência, a Reuters, que transmitiu uma foto aberta que dava um quadro geral da praça. Esta foto circulou pouco, não foi publicada. E onde foi, publicaram com pouco destaque. Estátuas como aquelas foram derrubadas em toda a Bagdá, aquela em particular ficava do lado do hotel Palestina, onde a imprensa trabalhava e ficou sendo considerado um símbolo. Ela ficou como um símbolo da libertação de Bagdá. Mas não tinha mais do que 50 iraquianos e não foram eles que quebraram a estátua. Chutaram, deram marretada, mas quem derrubou foram os tanques norte-americanos, quem botou a bandeira lá na cara do Saddam foi um soldado norte americano, e teve que tirar porque a mesma população que chutou o Saddam o fez tirar, essas mesmas 50 pessoas.

Mâe iraquiana chora ao perder o filho em bombardeio

Antes da queda de Bagdá, no inicio da cobertura, vocês eram monitorados pelo Ministério da Informação. Como foi este período, era muito difícil?
Naquele primeiro período era a única maneira de trabalhar em Bagdá. Um jornalista desgarrado não durava um dia ali, ou era morto, ou preso, ou preso e expulso. Chegando em Bagdá você já tinha que ir ao Ministério da Informação fazer o cadastro e conhecer as regras da cobertura, que numa folha dizia não pode fazer isso, não pode fazer aquilo, tudo não podia. Do outro lado, jornalistas que estavam do lado da força de coalizão e se desgarraram, quando chegaram a Bagdá foram presos, senão mortos, porque teve jornalista que tentou fazer isso e morreu na estrada. Então, se você não trabalhar com proteção de um lado ou de outro é um sério candidato a voltar num saco plástico. Não tem jeito. O que a gente tem que fazer é aceitar as regras, conhecer e tentar vazar um pouquinho aqui e ali, tentar fazer uma coisa diferenciada. Foi o que a gente fez. Por exemplo, era proibido filmar ou fotografar da varanda [do hotel], se você ver as melhores fotos foram feitas da varanda, porque fiz escondido.

Qual a diferença entre a censura dos EUA e a do Iraque?
Para o jornalista que avançava junto com as tropas [anglo-americanas], a censura era feita na hora de mandar as matérias, fotos e gravações em vídeo. Ali existiam oficiais que faziam este controle. Em Bagdá não existia isso, o controle era feito na origem da informação: você não tinha acesso a conversar com quem você quisesse, ou ir ao lugar que você estava a fim. Então você só ia nos lugares que o ministério te levava e através dos guias que eles passavam. A diferença é que um censurava na fonte da informação e o outro censurava a veiculação da sua informação.

As armas químicas não foram encontradas. E mesmo que sejam encontradas agora ninguém mais vai acreditar. Vocês em algum momento chegaram a perguntar sobre armas químicas? 0 que as pessoas diziam?
Na população em geral não se falava em armas químicas. Todos nós tínhamos máscaras e equipamentos para tentar minimizar os efeitos no caso... A população não tinha nada, os soldados tinham. A gente viu muita máscara abandonada depois da ocupação, nas trincheiras, com as fardas. Agora uma coisa eu te digo: para quem estava trabalhando ali era terrível. Hoje não se fala em armas químicas, porque não tem mesmo, não foi usado porque não tem, mas durante os primeiros dias de bombardeios podia ter. É uma coisa que a gente fala até pouco, outro dia eu estava conversando com o Sérgio, a gente nunca mais falou, né? Porque, que cheiro que tem? Se tiver um ataque químico ou biológico como é que você descobre? Eu e Sérgio, só nós dois no apartamento no Palestina, a gente não tinha contato com quase ninguém, como saber que foi detonada uma arma química, o cheiro é diferente, a cor? Você vê o medo que dava, a agente não tinha como saber. Essa dúvida ficou na cabeça e em alguns dias incomodava demais.


Leia aqui a íntegra da entrevista de Juca Varella