SINDICATO DOS TRABALHADORES DO JUDICIÁRIO FEDERAL NO ESTADO DE SÃO PAULO
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JJ - Edição 75 - 14/11/2001 - Página 8

ENTREVISTA - HÉDIO SILVA JÚNIOR, ESPECIALISTA EM LEGISLAÇÃO ANTI-RACISMO

A lei do cárcere
Palestrante do debate que será realizado no dia 23, o professor da PUC Hédio Júnior diz que legislação brasileira é avançada, mas o negro é discriminado pelo sistema penal

O advogado e professor da PUC-SP Hédio Silva Júnior será um dos palestrantes do debate, marcado para 23 de novembro, organizado pelo Sintrajud em homenagem ao Dia da Consciência Negra. Especialista em legislação anti-racismo.

Jornal do Judiciário - Recentemente o senhor afirmou que a inclusão do negro no Brasil é dada pela via penal. Com o aumento da pobreza e do desemprego gerados pela política do governo, a discriminação racial também aumentou? Há mais negros à margem da sociedade?
Hédio Silva - Não resta a menor dúvida de que a condição racial concorre com o fator pobreza. Entretanto não se pode perder de vista dois dados da realidade. As estatísticas comprovam que quanto maior é a ascensão social do negro, mais patente e freqüente se torna a discriminação, visto que um negro desempenhando uma ocupação socialmente desvalorizada - um gari, por exemplo - é visto como alguém que está "no seu lugar". Já um advogado, professor, um médico, um dentista, alguém que mora num edifício mais sofisticado, toma avião, etc., é visto como um negro "fora do seu lugar" e, portanto, mais sujeito a práticas discriminatórias.
Não vislumbro, portanto, correlação entre aumento de desemprego e aumento da discriminação. O que acontece é que a grande maioria da população negra está situada na base da pirâmide social, ocupando as piores funções, recebendo os piores salários, etc. De modo que a estagnação econômica tende a acentuar as mazelas que recaem sobre negros e negras.
Vários estudos demonstram a correlação direta entre pobreza e criminalidade. Basta lembrar que nos anos 70 a idade média da população encarcerada era de 27 anos, contra os 19 atuais, e o valor médio dos produtos de roubo ou furto era de cerca de 100 dólares, contra os 10 dólares atuais. Note-se ainda que 60% dos delitos praticados diariamente no Brasil são de natureza patrimonial, dentre os quais roubo, furto, receptação, extorsão mediante seqüestro, estelionato, etc.
De outro lado, estudos realizados pelo Núcleo de Estudos da Violência/USP demonstram que o sistema criminal é mais rigoroso com os acusados negros: eles estão mais sujeitos à prisão em flagrante (o que sugere uma maior vigilância da polícia nos locais de concentração de negros) e, especificamente no caso de acusados da prática do crime de roubo, os negros têm maiores probabilidades de condenação, ainda que tenham os mesmos antecedentes de acusados brancos e disponham de defesa particular - sem nenhum demérito, aqui, do competente trabalho desenvolvido pela Procuradoria de Assistência Judiciária. Com isto não pretendo dizer que o fenômeno da violência deve ser atribuído única e exclusivamente à pobreza. Há um conjunto de outros fatores que incidem sobre ele. O que precisamos é demolir o argumento de que o encarceramento deve ser a única resposta possível do direito penal para a criminalidade, ampliando a aplicação de penas alternativas à pena privativa de liberdade, criando programas de reintegração social do egresso do sistema, de modo a diminuir a reincidência (que em São Paulo beira 50%) e conferir ao sistema carcerário condições dignas.

O senhor afirma que a legislação brasileira é uma das melhores do mundo para a coerção do racismo. O que fazer para que essa legislação, de fato, seja cumprida?
A efetividade, eficácia social da legislação anti-racismo, depende, a meu ver, ao menos de quatro fatores:
1 - Investimentos substantivos na preparação dos operadores do direito, incluindo delegados de polícia, advogados, promotores e juízes para tratarem o tema com um mínimo de imparcialidade e com rígida observância da lei; a mim não importa se um juiz gosta ou não de negros ou se um delegado de polícia tem preconceito contra homossexual. No exercício de suas funções eles estão obrigados a conter suas paixões e preferências e apreciar o caso à luz do direito;
2 - Um uso mais amplo e adequado da legislação civil, que supere uma certa concentração das ações no foro criminal;
3 - A propositura cada vez maior de ações coletivas e que busquem a responsabilização do Estado pelas práticas discriminatórias;
4 - Uma maior exploração, especialmente por parte dos advogados, do sistema recursal brasileiro. É preocupante constatar que os tribunais superiores registram apenas quatro processos relacionados com discriminação racial, o que demonstra que a grande maioria dos processos morre nos estados, sem apreciação do STJ ou do STF.

"Os tribunais superiores registram apenas quatro processos de discriminação racial, a maioria dos processos morre nos estados"