Greve de juízes por “moradia” escancara luta corporativa por privilégios


14/03/2018 - Luciana Araujo

Nesta quinta-feira (15 de março) magistrados prometem cruzar os braços para pressionar o Supremo Tribunal Federal a manter o auxílio-moradia, pago há três anos e meio a juízes de todo o país com base em decisão liminar proferida pelo ministro Luiz Fux. A paralisação foi impulsionada pela Associação dos Juízes Federais (Ajufe), mas as demais entidades da magistratura da União aderiram à realização de atos e manifestações Brasil afora. Na sexta-feira, 9, além da Ajufe, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) e a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT) divulgaram nota conjunta convocando uma “mobilização nacional pela independência e pelas garantias constitucionais das carreiras e pela defesa da verdade, da isonomia e da dignidade remuneratória”.

Por mais que a pauta tenha sido ampliada, dada a repercussão negativa na sociedade, é inegável que o mote das iniciativas previstas para este dia 15 é a intenção de continuar recebendo um adicional que só está posto em virtude do corporativismo de quem lhe dá contornos de justiça.

Já reconhecida pelos próprios juízes como remuneração disfarçada (acima do limite constitucional que o judiciário tem obrigação institucional de resguardar), a regalia perdura há quase quatro anos por decisão monocrática cuja constitucionalidade é questionada até por outros ministros do STF por não haver previsão legal anterior para o benefício nem para a criação da despesa.

Ademais, pela Constituição, ao prestar concurso o juiz obriga-se a residir no local em que atua, salvo autorização do tribunal. E ainda tem a garantia da inamovibilidade. Os magistrados também têm à disposição a veículo com motorista a partir da investidura na segunda instância, recebimento de verbas extraordinárias em caso de substituição ou em viagens, incluindo diárias para hospedagem, sem obrigação de comprovação da despesa. Garantias que não são dadas a nenhuma outra categoria profissional além dos altos escalões das carreiras de Estado.

Nessa realidade, a concessão concomitante de auxílio-moradia resulta ainda em pagamentos em duplicidade. Uma excrescência jurídica.

E quando dois juízes se unem em um relacionamento, o auxílio-moradia vem sendo pago em dobro, ainda que vivam sob o mesmo teto. Graças a decisões de primeira e segunda instância em todo o país que têm estendido o benefício a pares, à revelia da vedação determinada pelo CNJ (que “regulamentou” a regalia a partir da liminar de Fux), invocando decisão do Superior Tribunal de Justiça.

Contradições e manobras

Em si, o movimento das associações de juízes é eivado de contradições. A começar pelo fato de pretender, pela via da pressão política que os magistrados tanto rejeitam e que está vedada na Lei Orgânica da Magistratura, manter um benefício cuja legalidade é questionada pela jurisprudência próprio Supremo.

O dito princípio reivindicado pela categoria dos magistrados da “independência dos julgados, livres de pressões externas, como garantia da cidadania e do Estado Democrático de Direito” parece estar sendo revisto. Talvez a única boa notícia de todo este processo, já que é sabido que todo o funcionamento do Estado, suas instituições e seus mecanismos de freios e contrapesos estão permanentemente sujeitos às disputas políticas e interesses dos diversos atores sociais.

Para a diretoria do Sintrajud, o Supremo como um todo tem sido conivente com tal privilégio. E além das circunstâncias da própria liminar, deve ser também chamado à responsabilidade por segurar este processo com decisão provisória e assim manter por tanto tempo de uma decisão como essa.

Mas as maiores contradições da greve de juízes se colocam quando analisado o padrão dos julgados pelo país afora diante de movimentos reivindicatórios. A prática cotidiana no Judiciário, com destaque para os últimos 20 anos, vem sendo a negativa de direitos, especialmente quando as arengas jurídicas envolvem o poder público ou grandes empresas. Exemplos não faltam. Sentenças pela ilegalidade de greves com imposição de pesadas multas a sindicatos. Legitimação da retirada de direitos, como no julgamento da elevação do custo do plano de saúde dos trabalhadores dos Correios pelo TST, na última segunda-feira. Reintegrações de posse em detrimento de famílias que não têm para onde ir e liberação de uso da força policial contra mulheres e crianças – como na desocupação do acampamento Pinheirinho, em São José dos Campos em 2012, e inúmeros outros terrenos ocupados por movimentos sociais contra a especulação imobiliária e a sonegação de milhões de reais de impostos. Também deve ser lembrado o encarceramento de pessoas em situação de vulnerabilidade social mediante provas extremamente frágeis, que têm exposto o país ao escrutínio negativo internacional, como nos casos de Rafael Braga, no Rio de Janeiro, ou da jovem Jéssica Monteiro (que passou três dias presa junto com um bebê de apenas dois dias de vida). E os mais de 200 mil presos provisórios, quase 40% da população carcerária brasileira, sem condenação.

Fica ainda mais difícil defender tal benefício para uma categoria cuja média mensal de rendimentos foi de R$ 47,7 mil em 2016* num país onde o salário mínimo soma parcos R$ 954,00 e existem 13,4 milhões de pessoas vivendo em situação de pobreza extrema (US$ 1,90/dia), segundo o IBGE, e 22 milhões de brasileiros sem casa para morar, de acordo com dados de 2008 da Fundação João Pinheiro.

O auxílio moradia hoje concedido indistintamente a todos os juízes brasileiros (à exceção dos que não tenham solicitado o pagamento ou que a ele tenham renunciado), independente do fato de terem residência própria ou mais de um imóvel em seu nome, é maior até mesmo que o salário mínimo vital calculado pelo Dieese. De acordo com o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos, para uma vida em condições minimamente dignas, a quantia estimada neste ano seria de R$ 3.682,67.

Ainda assim, o ex-presidente do TST e articulador da ‘reforma’ trabalhista e de uma série de outras medidas que retiraram direitos nos últimos anos, ministro Ives Gandra, propõe legalizar os chamados “penduricalhos” que expõem as contradições do que os juízes defendem para si em relação ao que a maioria pratica quando em posição de julgador.

Gandra, junto com segmentos da magistratura, resgata proposta de transformar todas as parcelas remuneratórias questionáveis em um adicional de 5% a até 35% dos rendimentos a cada cinco anos. Somente para juízes e membros do Ministério Público, claro! A ideia, na verdade, teve origem na movimentação das associações de magistrados que resultou na Proposta de Emenda Constitucional 63/2013, que tramita no Congresso Nacional, para legalizar um absurdo e direcionado adicional por tempo de serviço não sujeito ao teto constitucional.

Contra os privilégios

A direção do Sintrajud reivindica o direito de toda categoria profissional utilizar o instrumento da greve, principal arma dos trabalhadores, para reivindicar e defender direitos. No entanto, considera que seria mais legítimo e coerente que os magistrados se mobilizassem e cruzassem os braços, em conjunto com outras categorias, em defesa de uma política salarial digna para o conjunto do funcionalismo público, com garantia de incorporação das parcelas extra-remuneratórias impostas pelos governos e o parlamento a fim de prejudicar o direito à aposentadoria, progressão econômica com critérios objetivos e carreiras estruturadas. E para que a massa salarial no país não gerasse uma desigualdade tão abissal entre os que ganham menos e aqueles que ganham mais.

Para concluir, como organização representativa dos trabalhadores do Judiciário Federal, a diretoria do Sintrajud não pode deixar de manifestar repúdio a que, no dia de greve de juízes, as tarefas destes sejam delegadas aos servidores, que já convivem com metas inatingíveis, assédio moral, congelamento de salários e benefícios, políticas de gestão antidemocráticas e a precarização do Poder que deveria assegurar justiça para todos.

Por tudo isso, o Sintrajud externa posição contrária a este movimento, reafirmando seu compromisso com a defesa de direitos para todos os trabalhadores, incluindo os servidores públicos, e contra qualquer forma de privilégio.

Crédito da imagem: Sérgio Amaral/AJUFE


* Dado extraído do relátório ‘Judiciário em Números 2017’.

 

 

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