TRF-3 nega provimento a recurso do MPF para punir torturadores de jornalista morto na ditadura


11/10/2019 - Luciana Araujo

Da esq. à dir.: A advogada Heloísa Machado, Angela Mendes de Almeida, Tatiana Merlino, Vivian Mendes, Adriano Diogo, Amelinha Teles, Criméia Almeida e Stan Szermeta (Arquivo Sintrajud).

 

“Uma vergonha! Todos reconhecem que houve a ditadura, houve o assassinato e mesmo assim foi negado o provimento ao recurso, o que impede a chegada à verdade judicial, porque a verdade histórica já está aí, mais do que comprovada. O que se busca é que o Estado brasileiro reconheça que mataram o Luiz Eduardo Merlino – e ninguém contesta que esse assassinato existiu, sob tortura, pelo Dirceu Gravina, pelo Aparecido Laertes Calandra. Essa é uma decisão que legitima a tortura”. Assim a ativista em defesa dos direitos humanos Maria Amélia de Almeida Teles avaliou a decisão da 11ª turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região que impediu a o seguimento de ação criminal contra três agentes públicos apontados pelo Ministério Público Federal como responsáveis pelo assassinato sob tortura do jornalista Luiz Eduardo Merlino.

Levado de casa, na cidade de Santos, para a sede do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna) em São Paulo em julho de 1971, aos 23 anos, Merlino foi tão barbaramente torturado que suas pernas gangrenaram. A versão de que teria se suicidado para fugir de um cerco policial caiu por terra quando o corpo foi reconhecido no Instituto Médico Legal de São Paulo. À época, até mesmo os órgãos de imprensa – Merlino trabalhava então para a ‘Folha da Manhã’ – foram proibidos de noticiar sua morte.

Em pouco mais de 30 minutos, dois desembargadores federais de São Paulo se confrontaram com a História feita por outro colega no mesmo regional 31 anos antes. O então jovem juiz Márcio José de Moraes, ainda sob o regime ditatorial, condenou pela primeira vez, em 1978, o Estado brasileiro pela morte do também jornalista Vladimir Herzog. Em condições muito similares às que cercaram a execução de Merlino, em 1975 Herzog, então diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, foi levado de casa sem opor resistência e dias depois seu assassinato foi divulgado pelos comandantes do mesmo do DOI-CODI como resultado de “suicídio”, versão que não se sustentou por nem uma semana.

Sob argumentos de que a Lei da Anistia teria promovido um “concerto social” e que o Supremo Tribunal Federal teria pacificado o reconhecimento da Lei 6.683/1979, Nino Toldo e José Lunardelli negaram provimento ao recurso do Ministério Público Federal à decisão de primeira instância que favoreceu os acusados. Os denunciados são os delegados da Polícia Civil paulista Dirceu Gravina e Aparecido Laertes Calandra (já aposentado) e o médico Abeylard de Queiroz Orsini. Calandra – o “Capitão Ubirajara – e Gravina são acusados de homicídio doloso qualificado por motivo torpe e com emprego de tortura. A Orsini, que na época atuava como legista, é imputado o crime de falsidade ideológica pela falsificação do laudo necroscópico do jornalista.

O voto de Lunardelli foi proferido em tom de voz quase inaudível e permeado de manifestações de solidariedade à família. O desembargador Nuno Toldo afirmou estar obrigado a “cumprir e fazer a Constituição” e arguiu a vinculação a decisões de tribunais superiores para justificar seu voto, por meio do qual tentou, sem muita veemência, rebater a única manifestação divergente na turma, apresentada pelo desembargador Fausto De Sanctis.

Já declarado torturador pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, o ex-comandante do DOI-CODI, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, também fora denunciado, mas sua morte, em 2015, extinguiu a punibilidade criminal contra ele.

Goela abaixo

De forma eloquente, De Sanctis frisou que “jamais poderia ser dada vigência” à Lei da Anistia e acatou o recurso do MPF.

O magistrado lembrou que nos autos da própria Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153 – que discute a mencionada lei 6.683/1979 – o entendimento do Supremo Tribunal Federal “foi desafiado, por embargos de declaração, para saber se a extensão material da anistia se dá sobre os crimes de homicídio, estupro e tortura, portanto não é uma decisão ainda perene da nossa Corte Suprema [o reconhecimento integral e inquestionável ao diploma]”, afirmou.

De Sanctis trouxe ainda o resgate da ADPF 320, que defende a inaplicabilidade da Lei com relação a crimes de graves violações de direitos humanos. E acrescentou que mesmo sob a ótica da “constituição anterior não se poderia admitir uma lei dessa natureza, com violações de toda ordem à regularidade e preservação dos valores democráticos”. O desembargador referia-se à Constituição de 1967, editada já sob o regime ditatorial empresarial-militar.

De Sanctis trouxe ainda o entendimento de que a emenda constitucional 26/1985, que estabeleceu os limites da anistia, determinava que “crimes políticos e conexos são aqueles exclusivamente com motivação política, portanto essa abrangência maior para crimes de outra natureza jamais poderia abarcar tamanha e brutal violação à existência humana”.

Sobre um suposto acordo para conformar as forças à época em conflito, o desembargador afirmou ainda que “não acredito que essa Lei seja fruto da vontade soberana popular. Pelas razões de natureza dela própria, não houve nenhuma discussão ou debate público antes da edição dessa lei, que foi votada e aprovada de maneira bastante sumária, de forma que não há, também sob essa ótica, a possibilidade de dar validade a uma lei imposta goela abaixo como foi essa Lei de 1979”, concluiu.

Estímulo à tortura

“O pior é que essa decisão, baseada na letra fria da lei, é um incentivo à tortura. Fico escandalizada que na situação em que estamos, na qual o presidente da República e outros [agentes públicos] defendem a tortura, que nunca deixou de existir, e a ditadura militar, o Judiciário demonstre tal insensibilidade”, afirmou Angela Mendes de Almeida, companheira de Luiz Eduardo Merlino à época em que o jornalista foi morto.

Acompanharam o julgamento junto com Angela, com olhos marejados e expressão tensa, a sobrinha Tatiana Merlino, também jornalista, além de vários ex-presos políticos e amigos da família.

Ao final da sessão, ainda com a voz embargada, Angela afirmou que a sustentação oral realizada pela advogada Heloísa Machado, professora de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas, a emocionara. Heloísa ressaltara que manter a barreira da Lei da Anistia para impedir o prosseguimento do processo significa seguir violando o direito das vítimas. A especialista falou ao Tribunal como assistente da acusação.

Perguntada se a família pretende recorrer aos tribunais internacionais Angela Mendes de Almeida afirmou que sim. “Estamos em contato constante com outras famílias [de mortos e desaparecidos], mas pretendemos também levar esse caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, porque é preciso que o Judiciário brasileiro acolha a legislação internacional, que declare que torturar é um crime contra a humanidade”, disse.

O Brasil já foi condenado duas vezes pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em razão da violação continuada de direitos humanos às vítimas da ditadura que seguem buscando justiça para as torturas, mortes e desaparecimentos promovidos por agentes do Estado entre 1964 e 1985. A família de Vladimir Herzog busca que o STF faça cumprir a condenação do ano passado, que determinou que sejam investigados, julgados e punidos os autores da morte do jornalista.

As famílias Herzog e Santa Cruz também denunciaram o governo brasileiro à CIDH, agosto deste ano, em razão das declarações do presidente Jair Bolsonaro (PSL) em defesa da tortura e da ditadura empresarial-militar e ofensivas à memória do ex-militante desaparecido no período Fernando Santa Cruz.

Sobre a continuidade da busca por justiça que já dura 48 anos, a ex-companheira de Merlino foi enfática: “A luta vai sobreviver a mim”.

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