TRE: precariedade, trabalho não pago e riscos na montagem de kits


28/10/2020 - Luciana Araujo
Servidores relatam que sistemas de divulgação de candidaturas e PJe dificultam trabalho; demandas da eleição pioram com montagem de kits de segurança sanitária; relatório de horas extras gera extensão de jornada para preenchimento.

Em meio à maior pandemia do século, os servidores da Justiça Eleitoral vêm enfrentando inúmeras dificuldades para assegurar o que o Poder Judiciário chama de ‘Festa da democracia’: as eleições deste ano. Para quem monta a ‘festa’, o dia-a-dia vem sendo mais associado a um pesadelo.

“A gente tem que rir, porque se a gente se deixar afetar nem será possível fazer nada, o stress é muito grande”, afirma um chefe de cartório ouvido pela reportagem. “Já tive depressão. Tem dias em que dá vontade de chorar, aí a gente bota para dentro o choro. A sensação de impotência é total”, afirma uma servidora lotada na Baixada Santista. Para outro entrevistado, com muita experiência no Tribunal Regional Eleitoral, “está sendo a pior eleição. Por causa do sistema, do trabalho remoto — que é uma desgraça —, das exigências de uma administração que deveria se dirigir ao TCU e não delegar essa função [do detalhamento de informações sobre as horas extraordinárias realizadas no período eleitoral], e porque vamos receber 50% das horas extras realizadas como se fosse a coisa mais normal do mundo”. “Tem que fazer hora extra para preencher o relatório”, disse outro servidor.

“Tudo está muito devagar, as pessoas têm que refazer, trabalhar de madrugada, aos sábados e domingos”, relatou outra servidora, que atua na região de Sorocaba. A colega da Baixada corroborou as declarações dos demais. “Faço tudo no Word. Só depois lanço no PJe, porque já aconteceu de estar terminando o trabalho e perder tudo”, informou. Apesar da dificuldade, ela relata estar preferindo o trabalho remoto. “Eu gostei de estar na minha casa e poder trabalhar, e apesar das dificuldades eu até gostei da instalação do PJe, porque aqui em São Paulo ficamos muito tempo com tudo no papel. Em outros estados isso não foi mais um problema na pandemia, uma coisa imposta, porque o sistema já estava sendo usado há anos, a resolução do CNJ já tem mais de 10 anos. Mas aqui foi meio traumático porque a gente foi colocado em casa e ficou um tempão sem rede, sem VPN, demoraram um tempão para mandar o equipamento”, relembrou.

Preservamos a identidade dos entrevistados porque outra falha de gestão verificada na apuração é o receio generalizado de retaliações contra quem aponta problemas nos procedimentos do Tribunal. Para avaliar a dimensão das dificuldades, foram ouvidos servidores lotados em cartórios na capital, Grande São Paulo, Baixada Santista e regiões de Presidente Prudente e Sorocaba.

A situação foi reconhecida como grave até mesmo pelo Tribunal, que realizou uma reunião emergencial com os chefes de cartórios. De acordo com servidores ouvidos, no encontro o presidente do TRE-SP, desembargador Waldir Sebastião de Nuevo Campos Júnior, chegou a informar que a estratégia encontrada pelo TSE para que o PJe funcionasse foi uma espécie de rodízio, uma escala de acesso pelas regiões do país. As regiões Sul e Sudeste, por exemplo, deveriam acessar o sistema a partir das 14 horas.

A reportagem consultou o TRE-SP sobre a preocupação de servidores com os problemas de funcionamento do PJe e do Cand [de registro das candidaturas] que poderiam impactar no prazo de inseminação das urnas (lançamento dos dados para que o eleitor possa votar no dia 15, após o fechamento de todos os prazos de registro). O Tribunal respondeu de forma vaga, “todo o processo está sendo avaliado de perto pela Administração do Tribunal e as datas de inseminação das urnas estão levando em conta o fechamento do Cand por região, bem como as competências e tamanho das zonas eleitorais.”.

Riscos de contaminação e risco de alta abstenção

Os trabalhadores do TRE-SP e de todo o país vêm tendo que se expor aos riscos do comparecimento aos locais de trabalho, já que muitas tarefas da preparação eleitoral não podem ser realizadas remotamente.

Além disso, num dos maiores colégios eleitorais do país, muitos cartórios não têm espaço para o distanciamento exigido para segurança sanitária. E o volume de trabalho tem levado à convocação, ainda que informal, de mais que um servidor por turno.

A última novidade apresentada pelo Tribunal é que os próprios servidores terão que montar os escudos faciais de acrílico (face shields) a serem distribuídos aos mesários e, eventualmente, a eleitores que compareçam aos locais de votação sem máscara.

Determinação de manuseio dos escudos faciais acrílicos para mesários e eleitores.

“Na minha zona recebemos mais de dois mil face shields e mais de oito mil máscaras, que devem ser manuseados por servidor dedicado exclusivamente para essa tarefa, isolado e usando máscaras e luvas para não contaminar os kits. Vamos ter que montar máscaras, depois montar um kit com máscaras comuns para cada mesário, colocar em um saco plástico, com suprimento de fundos mas comprados por nós e no valor máximo de 8 centavos a unidade, e montar os kits por seção”, afirmou um servidor entrevistado lotado em cartório da Grande São Paulo.

O depoimento de outro colega, no extremo oposto do estado, na região de Presidente Prudente, também criticou a medida inclusive como vetor de contaminação. “Não pode aglomerar nem ter contato, mas as máscaras [para mesários] vieram em pacotes de 25. Tem que manusear, tirar três e botar em outro pacote – que eu tenho que comprar – para mandar para a seção. Ou seja, o roteiro de contaminação é muito grande”, ressaltou.

“Todo o protocolo de embalar, colocar três máscaras em cada saquinho, é muito complicado. Eu tenho envolvidas nesse trabalho seis pessoas, quatro terceirizados e dois efetivos, mas com a possibilidade de precisar aumentar esse efetivo para cumprir o prazo. E havia uma orientação de enviar desde já o material para o local de votação, mas há dificuldades, porque as escolas não estão abertas direto e isso envolve vários contatos telefônicos. As escolas também estão questionando como ficará a limpeza das escolas”, relatou outro dos entrevistados.

Num cenário em que o número de seções foi reduzido, em virtude do recolhimento das urnas eletrônicas utilizadas em 2006 e 2008, a aglomeração tende a aumentar, o que pode levar à desistência de eleitores ou elevar os riscos de contágio. A justificativa de quem não vai votar também poderá se dar nas mesas coletoras de votos – já que neste pleito não haverá mesa específica para este fim nas seções eleitorais. A orientação do TSE é que o procedimento seja realizado preferencialmente por meio dos aplicativos que ainda estão em fase de testes para o pleito do dia 15.

O estado de São Paulo tem 10.815 locais de votação, onde serão instaladas 85.664 seções eleitorais, sendo 22.385 na capital e 63.279 no interior. As zonas eleitorais menores na capital têm em média mil mesários e 200 seções.

A servidora da Baixada Santista ouvida pela reportagem aponta o impacto da realidade no trabalho. “A gente vai [trabalhar] nos fins de semana, tem mais pessoas trabalhando do que determina a regra sanitária do Tribunal. Não tem como deixar um funcionário no andar debaixo e outro no andar de cima, é uma falácia essa regra. Como uma pessoa só vai montar os kits? Já tem duas ou três semanas que estão sendo montados os kits [no cartório onde a entrevistada trabalha]”, explicou.

Os servidores demonstraram durante as entrevistas preocupação também com a ausência de eleitores e mesários nos dias 15 e 29 de novembro, para se preservarem de contaminação ou em decorrência dela. O pleito que elegeu o presidente Jair Bolsonaro, em 2018, teve 20,3% de abstenções no primeiro turno – maior índice desde 1998. No segundo turno daquelas eleições 21,3% do eleitorado deixou de comparecer às seções, mesmo sem uma crise sanitária da proporção que vivemos.

Os cartórios ainda têm recebido materiais muito diferentes, o que quebra um dos princípios da administração pública: a isonomia. Algumas regiões receberam face shields rígidos e outras foram ‘brindadas’ com escudos dobráveis que mais parecem brindes de lanchonetes ou cinemas para crianças. “Os colegas estão se virando como podem. A ‘Linha Direta’ [informativo interno do Tribunal] fala em realizar ao envio às zonas na mesma caixa na qual veio o face shield, mas ela é muito frágil e no manuseio de retirada muitas vezes se destrói”, apontou um dos servidores ouvidos pela reportagem.

Face shield recebido em cartórios eleitorais em São Paulo.

“Os face shields que chegaram aqui no cartório são bem vagabundos. Parece brinquedinho do McDonald’s, daqueles que criança monta”, avalia uma das servidoras que falou ao Sintrajud.

Consultado sobre as discrepâncias, o Tribunal respondeu que os escudos faciais para uso dos mesários e eleitores “foram recebidos pela Justiça Eleitoral por meio de doações de diferentes empresas, por isso não são todos do mesmo modelo.”

Em relação à compra descentralizada das sacolas, o TRE respondeu que “a centralização da aquisição por licitação despenderia o tempo dos processos licitatórios, o que poderia inviabilizar a compra no prazo necessário”. Sobre a limpeza das escolas, de acordo com o Regional, será responsabilidade das próprias, assim como os mesários serão chamados a recolher inclusive as máscaras. “Os colaboradores da Justiça Eleitoral são orientados a coletar todos os materiais utilizados na votação e a limpeza das seções eleitorais é realizada pela administração de cada local de votação”, informou o TRE.

Servidores sem proteção

O Tribunal também anunciou a aquisição de 1016 barreiras acrílicas para instalação nos balcões e postos de atendimento, mas os locais ouvidos pela reportagem ainda não têm o equipamento instalado. No site do Tribunal, o parecer da assessoria jurídica favorável à dispensa de licitação das placas acrílicas data de 14 de setembro.

Após vários requerimentos do Sindicato e diante do atraso das compras – os cartório eleitorais retomaram atividade presencial em 6 de julho – na reta final do registro de candidaturas o Tribunal decidiu conceder a quantia de R$ 18,00 (em caráter indenizatório) para que os próprios servidores comprassem suas máscaras.

“Eu recebi quatro pacotinhos de máscaras daquelas branquinhas, se não fosse a prefeitura mandar 60, 70 máscaras a gente não teria”, relatou um entrevistado.

O Sindicato segue cobrando o fornecimento de equipamentos de proteção individual para servidores e terceirizados, realização de testagem regular dos trabalhadores, fornecimento de informações sobre contágio e a priorização da saúde e segurança sanitária.

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