STF forma maioria por omissão do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia


24/05/2019 - Luciana Araujo

No próximo dia 5 de junho o Supremo Tribunal Federal retoma o julgamento dos processos que discutem a omissão do Congresso Nacional em tipificar a discriminação por orientação sexual e/ou identidade de gênero como crime correlato ao de racismo. Na sessão desta quinta-feira (23), no entanto, a Corte Suprema já consolidou uma mudança histórica no ordenamento jurídico nacional. Com o voto de seis dos 11 ministros, está dada a maioria pela interpretação de acordo com a Constituição Federal para “enquadrar atos de homofobia e de transfobia nos tipos penais previstos na legislação que define os crimes de racismo, até que o Congresso Nacional aprove lei específica sobre a matéria”, como aponta o próprio STF.

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Estão em julgamento a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, relatada pelo decano Celso de Mello, e o Mandado de Injunção (MI) 4733, cuja relatoria está com o ministro Edson Fachin. A decisão sobre o tema se arrasta na Corte Suprema desde 2012. Além de Mello, que proferiu um voto de 155 páginas considerado histórico, já se manifestaram os ministros Alexandre de Moraes, Fachin, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso e Rosa Weber.

Chamado a opinar sobre a continuidade ou não do julgamento na tarde deste dia 23, sobre comunicado da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal informando ter aprovado um projeto de lei que trata do assunto, Celso de Mello fez outro voto, bem mais curto mas tão incisivo quanto o primeiro. Para o decano, “a mera existência de proposições legislativas em tramitação no Congresso Nacional, como as ora mencionadas na petição do Senado Federal, não tem o condão de afastar, por si só, a configuração, na espécie, de inércia por parte do Poder Legislativo.”

Celso de Mello fez questão ainda de lembrar que “decorridos mais de trinta (30) anos da promulgação da vigente Carta Política, ainda não se registrou – no que concerne à punição dos atos e comportamentos resultantes de discriminação contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou em decorrência de sua identidade de gênero – a necessária intervenção concretizadora do Congresso Nacional.” E listou 17 proposituras sem análise pelo parlamento desde 1997 como exemplos do que configura, na opinião do ministro, “inércia abusiva e inconstitucional do Poder Legislativo.”

A Procuradoria Geral da República também manifestou-se em relação ao comunicado do Senado pelo reconhecimento da mora legislativa e apontou como “relevante que o Supremo Tribunal Federal intervenha para acelerar o processo de produção normativa e conferir concretização aos comandos constitucionais de punição de qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”, citou o decano.

Voto pelo prosseguimento e crítica fina a Toffoli

O presidente do STF, Dias Toffoli, e o ministro Marco Aurélio Mello manifestaram-se pela suspensão do julgamento para dar ao Legislativo o pronunciamento final sobre o tema, amparando-se na votação havida na CCJ da Casa Revisora. Os dois argumentaram que o voto do decano em fevereiro fez com que o parlamento retomasse a análise de matérias sobre o assunto e que a sociedade refletisse.

Os dados, no entanto, desmentem os ministros dissidentes. Neste ano, entre 1º de janeiro e 15 de maio, o Grupo Gay da Bahia, entidade reconhecida internacionalmente como a que disponibiliza os mais confiáveis dados sobre a LGBTfobia no Brasil, contou 126 assassinatos motivados pela orientação sexual ou identidade de gênero das vítimas. Os números apontam para a ocorrência de um homicídio a cada 23 horas. No mesmo período do ano passado foram 111 casos, o que representa um aumento de 14% em 2019.

Em seu voto favorável a que o julgamento prosseguisse, Celso de Melo fez uma referência que pareceu um puxão de orelha no presidente da Corte. O mais experiente ministro do Supremo frisou que “o eminente Ministro DIAS TOFFOLI, ao examinar a ADO 24-MC/DF, de que foi Relator, conheceu de referida ação direta de inconstitucionalidade por omissão e deferiu o pleito cautelar nela formulado, salientando, na linha dos precedentes que venho de mencionar, que a “inertia deliberandi” das Casas do Congresso Nacional, caracterizada pela demora irrazoável na deliberação e na apreciação de projeto de lei em tramitação, revela-se apta a configurar omissão inconstitucional do Poder Legislativo”. A ADO 24 referia-se ao atraso na legislação protetiva aos usuários de serviços públicos.

“Superlativa intolerância”

Mello também lembrou que a necessária preservação dos direitos fundamentais da população LGBT – em particular o direito à vida, num dos países campeões de assassinatos de pessoas homossexuais e transgêneras – ainda pode permanecer desguarnecida por muitos anos dado que não há prazo constitucional para a votação de projetos de lei. E mesmo que proposituras venham a ser aprovadas no Congresso Nacional ainda podem ser vetadas pelo chefe do Executivo.

No Brasil presidido por um cidadão que declarou por diversas vezes preferir um filho morto a descobri-lo homossexual e que homossexualidade poderia ser “curada” com violência física, a precaução do decano soa como, mais que a voz da experiência, uma conclusão óbvia sobre o destino que podem ter quaisquer legislações aprovadas no parlamento brasileiro sobre a criminalização da homofobia durante o governo de Jair Bolsonaro (PSL).

No início de seu posicionamento nesta quinta-feira, Mello comentou o pedido de impeachment formulado por 18 deputados federais da base do governo contra os ministros que se manifestaram nas primeiras sessões que analisavam a ADO e o MI, em fevereiro.  O decano apontou que o Supremo já categorizou como inadmissível a quebra da independência absoluta dos magistrados em decisões processuais. No documento subscrito pelos deputados Alexandre Frota, Carla Zambelli, Coronel Tadeu, General Peternelli, Kim Kataguiri, o príncipe Luiz Philippe de Orleans e Bragança (todos do PSL/SP), Marco Feliciano (PODE/SP) e outros parlamentares constam ainda assinaturas rasuradas dos deputados Major Fabiana Poubel e Carlos Roberto Coelho de Mattos Júnior, conhecido como Carlos Jordy, ambos do PSL/RJ.

Celso de Mello classificou a peça – mais um ato na campanha pela extinção do STF que vem sendo movida por parlamentares e apoiadores do governo – como exemplo de “superlativa intolerância”.

Os parlamentares protocolaram junto à Mesa Diretora do Senado pedido de impeachment do próprio Celso de Mello, de Alexandre de Moraes, Edson Fachin e Roberto Barroso. O argumento é que os ministros teriam afrontado a separação dos poderes da República e que Celso de Mello em particular, seguido pelos outros, teria quebrado o decoro do cargo por ter proferido um voto de “inequívoca parcialidade”. A íntegra do pedido, disponibilizada pelo portal do Senado, pode ser lida aqui.

ENTREVISTA: “Adequada uniformização legislativa”

Belmiro Fernandes (arquivo pessoal).

Em relação à atuação do STF sobre a inércia do Legislativo, a reportagem do Sintrajud ouviu o advogado criminalista Belmiro Fernandes. Mestre pela UFBA com a dissertação intitulada “O dano moral por discriminação à pessoa em decorrência de orientação sexual”, o professor Belmiro lembra de outros julgados nos quais o Judiciário assumiu o papel garantidor de direitos fundamentais frente à omissão do parlamento.

Confira abaixo:

JS – É correto o STF assumir para si a decisão sobre a criminalização?
Belmiro Fernandes – Sim. O STF está agindo de acordo com a teoria do “ativismo judiciário”, que nada mais é do que assumir para si pautas que deveriam ser objeto de deliberação do Congresso Nacional, mas que este, por diversas razões, acaba não aprovando. Isto ocorreu com a greve de servidores públicos (até o presente momento sem lei a respeito, o STF entendeu por aplicar a lei geral de greves, mas na modalidade de serviços essenciais), a utilização de células-tronco (definindo o começo da vida, para fins jurídicos, a partir da nidação [viável] na parede do útero e não no tubo de ensaio) e com o casamento homoafetivo (o Código Civil, até hoje, define o casamento como união entre homem e mulher). Como técnica, o STF está estabelecendo um prazo para que o Congresso adapte a Lei de Crimes Raciais, e pode também adotar a interpretação extensiva, atualizando o conceito de crimes por discriminação, baseados na citada lei. É como se fosse, caso estivesse sendo tratado o tema de tributação de livro, incluir o livro digital.

Que impacto social a decisão do Supremo pode ter?
O impacto social seria, de imediato, uma mensagem jurídico-política à população de que a identidade de gênero e a orientação sexual diferentes do cisgênero (aquele que nasce identificando-se com o sexo biológico) e heterossexual não são erradas.

Hoje, ficando a lei como está, no máximo o autor da discriminação acaba pagando cestas básicas, em razão da pena máxima não superior a 2 anos.

Com a extensão legislativa, passaremos a contar com a modalidade de injúria “racial” (com pena máxima de 3 anos, o que desloca o processo para que o Ministério Público atue) e, com a lei do racismo, penas ainda mais severas podem ser aplicadas aos donos de estabelecimento que discriminem pessoas também por sua orientação sexual ou identidade de gênero. Seguramente, a população entenderá que os cidadãos LGBTIQ+ não são de segunda classe. É esta a mensagem.

Segmentos sociais favoráveis à causa LGBT e mesmo pessoas LGBT no Brasil são contrárias à criminalização da homofobia em razão do que é a estrutura racista e penalista do sistema Judiciário no país e do fato que a criminalização por exemplo do racismo e do feminicídio não freou tais crimes nem assegurou que autores com posses sejam efetivamente responsabilizados. Como o senhor avalia esse cenário?
Seguramente não haverá um freio imediato: a violência continuará. Entretanto, se tomarmos como exemplo o modelo do racismo, hoje todos tomam muito mais cuidado ao proferirem opiniões de ódio e condutas discriminatórias. Sobre o feminicídio, a alteração legislativa é muito recente. Trata-se de um longo processo, que passa também pela conscientização. Entretanto, hoje todas as categorias de pessoas mais vulneráveis são protegidas (por sua etnia/raça/cor, origem, deficiência, por ser mulher etc). O único tema ainda sem proteção adequada é o relacionado à orientação sexual e identidade de gênero. Trata-se de uma adequada uniformização legislativa, visto que a Constituição Brasileira, no artigo 3º, inciso IV, garante que serão adotadas políticas públicas (incluindo legislativas e judiciárias) voltadas à erradicação de toda forma de discriminação. É um caminho sem volta, ainda que provisoriamente. Se – e espero que isso um dia aconteça – a violência começar a diminuir através de ações de educação, talvez possamos considerar rever a legislação. Por enquanto, trata-se de uma medida necessária para proteger a vida e a moral de pessoas, em serem respeitadas pelo que são.

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