O Brasil voltou à pauta internacional nesta semana pelo que pode ser considerado, alem de absurdo desrespeito aos direitos humanos, participação do presidente da República em crimes de Estado. Polemizando com a postura institucional da Ordem dos Advogados do Brasil em defesa das prerrogativas profissionais da advocacia, o presidente Jair Bolsonaro declarou que se Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, “quiser saber como o pai dele desapareceu no período militar, eu conto”.
A frase aponta conhecimento do presidente da República sobre o crime continuado de ocultação de cadáver e sobre os procedimentos do regime dos quartéis no combate aos opositores da ditadura.
No dia seguinte, Bolsonaro voltou à carga e referiu-se à Comissão Nacional da Verdade, instituída por uma legislação nacional vigente à qual o Poder Executivo deve obediência, como uma “balela” à qual não deveria ser dado crédito quanto ao reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro pelo desaparecimento e morte de Fernando Santa Cruz.
Jair ainda reconheceu que sua fala não era sua versão, mas que sua “vivência” o fez chegar às conclusões que levaram à declaração.
Pai do atual presidente da OAB Nacional, Fernando sumiu em fevereiro de 1974, aos 24 anos. O jovem era então militante de uma organização opositora da ditadura que reivindicava a doutrina social católica e teorias marxistas: a Ação Popular Marxista Leninista (APML) e a criança tinha dois anos de idade.
Em 1978, um informe oficial do Ministério da Aeronáutica reconheceu Fernando como desaparecido. Outro relatório, do Ministério da Marinha e datado de 1993, admitiu a prisão de Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira no ano de seu desaparecimento.
As declarações, que podem derivar num processo de impedimento do presidente, parecem fruto de autoconfiança na impunidade e descrédito às instituições que constitucionalmente jurou defender ao assumir o cargo. Bolsonaro, na condição de deputado federal, como candidato e já como chefe de governo defende reiteradamente a tortura, tipificada como crime de lesa-humanidade.
Por diversas vezes, o presidente também declarou-se fã do ex-comandante do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna) em São Paulo, Carlos Alberto Brilhante Ustra, declarado torturador pelo judiciário paulista. Na votação do impeachment da então presidente Dilma Rousseff, Bolsonaro chegou a homenagear Ustra no plenário da Câmara dos Deputados.
Jogando às favas a liturgia e a condição constitucional para o exercício da Presidência, de respeitar a constituição, tratados internacionais e as instituições do regime, Bolsonaro nega crimes reconhecidos pelo Estado brasileiro. Em março, Bolsonaro já tinha orientado as forças armadas a promover uma revisão histórica que afeta inclusive decisões judiciais e comemorar os 55 anos do golpe que levou a duas décadas de ditadura empresarial-militar no país.
O tema das rupturas com a tradição que o Brasil consolidou no sistema mundial de Estados nos últimos 30 anos vem crescendo no debate público. Na última Assembleia Geral da ONU, em maio, o governo brasileiro causou espanto ao alinhar-se a ditaduras como a Arábia Saudita, Barhein, Filipinas e Paquistão.
“Fora dos marcos legais estabelecidos é preciso denunciar que o que se coloca é a ruptura autoritária, que vem avançando”, destaca o diretor do Sintrajud e servidor do TRT Marcus Vergne.
Até então, as instituições responsáveis pela garantias democráticas e o respeito à Constituição – o Supremo Tribunal Federal inclusive – silenciaram e se omitiram de suas funções.
As últimas declarações de Bolsonaro vêm sendo repudiadas por amplíssimo leque de entidades e instituições. Emitiram notas públicas a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal, a Anistia Internacional e o Instituto Vladimir Herzog (que homenageia a memória do jornalista assassinado pelo regime empresarial-militar em 1975, pelo qual o Brasil foi condenado no ano passado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos). As instituições cobram que o Congresso Nacional convoque Bolsonaro a explicar o que diz saber. O Conselho Federal da OAB protocolou nesta quarta-feira no Supremo Tribunal Federal interpelação ao presidente da República – o documento é assinado por doze ex-presidentes da Ordem.
O Instituto Vladimir Herzog cobra ainda o indiciamento do presidente por crime de responsabilidade, o que, se aprovado na Câmara dos Deputados, pode resultar em processo de impeachment.
Felipe Santa Cruz informou que a família representará Bolsonaro junto à Procuradoria Geral da República e ex-militantes da APML acusados pelo mandatário de terem assassinado Fernando também prometem ingressar no STF com queixa-crime por calúnia. Partidos de oposição também anunciaram que pretendem acionar o Supremo.
A família Santa Cruz deve acionar ainda a Corte Interamericana, onde já há um processo em curso movido pelos familiares desde a década de 1970. “Vamos a todas as instâncias. Acredito que as instituições não vão poder deixar essa questão só nas mãos da sociedade”, afirmou em entrevista exclusiva ao Sintrajud a professora da PUC-SP e irmã de Fernando, Rosalina Santa Cruz. Embora não alimente expectativas sobre a boa-vontade do Judiciário e do Legislativo brasileiros, Rosalina acredita que a pressão social possa efetivar a luta da família por justiça, verdade é respeito à memória de Fernando “e de todos os mortos e desaparecidos na ditadura”. A matriarca da família, dona Elzita, morreu aos 105 anos em abril passado ainda lutando em busca do filho.
A diretoria do Sintrajud soma-se ao repúdio às declaração presidenciais e exige do Supremo Tribunal Federal que cumpra sua função. “Conheci Felipe Santa Cruz e a mãe dele, viúva do Fernando, Ana Santa Cruz, em 1979. Ano da primeira greve de bancários durante o Regime Militar”, lembra a diretora do Sindicato e servidora aposentada do TRF Ana Luiza de Figueiredo Gomes. “Presto minha total solidariedade a eles, repudiando todas as mentiras ditas por Bolsonaro”, escreveu Ana em suas redes sociais, onde se referiu a Fernando como “um herói de verdade”.
“Exige-se que seja apurada a conduta presidencial. Aliás, que o Judiciário cumpra seu papel na apuração dos crimes da ditadura. Fazemos coro junto às instituições que já se pronunciaram. Está tipificado um crime, além da violência e da agressão em si, que foge totalmente ao decoro da função e configura uma violação coletiva de direitos”, aponta Tarcisio Ferreira também diretor do Sintrajud e servidor do TRT.