SINDICATO DOS TRABALHADORES DO JUDICIÁRIO FEDERAL NO ESTADO DE SÃO PAULO
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JJ - Edição 155 - 23/09/2003 - Página 7

ENTREVISTA COM O SERVIDOR - Waldo Mermelstein


Recordações do exílio

Trinta anos depois, servidor do TRF-3 conta a experiência que viveu no Chile durante o governo Allende e após o golpe militar que levou o ditador Pinochet ao poder

Palácio La Moneda, sendo bombardeado em 11 de setembro de 1973

O servidor Waldo Mermelstein, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, estava no Chile quando as forças armadas do general Pinochet bombardearam o Palácio La Moneda e depuseram o presidente socialista Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973. Passados 30 anos do início da sangrenta ditadura, que destruiu o sonho de socialismo chileno e levou à morte ou desaparecimento mais de três mil pessoas, Waldo contou à jornalista Luciana Araujo, do Jornal do Judiciário, as recordações do período de exílio e como vê o que aconteceu no país que, sob a ditadura de Pinochet e o patrocínio dos Estados Unidos, é também considerado o primeiro a introduzir o modelo neoliberal na América Latina.

Jornal do Judiciário - O que o levou ao Chile?
Waldo - O Chile era um pólo para quem combatia a ditadura ou se considerava socialista na época. Cheguei lá no dia da comemoração de dois anos do governo Allende [04 de setembro de 1972]. Havia cerca de 800 mil pessoas, numa cidade com quatro milhões de habitantes. Nunca tinha visto nada parecido. Deixei as malas no hotel e corri para a manifestação. Dia 16 de dezembro voltei, sem conhecer praticamente ninguém. Fui para lá mais para conhecer o processo do que propriamente para estudar, embora o estudo fosse muito bom. Mas já havia uma divisão muito grande e uma articulação para derrubar o governo. A escola de Economia, onde fui estudar, tinha sido dividida em duas pela extrema direita.

Já era possível perceber a preparação do golpe?
Sem dúvida. Entre as minhas idas para lá em setembro e em dezembro houve o acontecimento talvez mais significativo de preparação do golpe, o ‘paro de outubro’, em que o Partido Nacional, a Democracia Cristã e grupos fascistas como o ‘Patria y Libertad’ tentaram paralisar o país. Ao contrário do que estamos acostumados aqui, que somos nós os trabalhadores que paramos as atividades para reivindicar, naquele momento a classe trabalhadora chilena resolveu não deixar parar a produção e fez esforços tremendos para garantir o abastecimento, o transporte. O país não parou e o golpe foi derrotado. Houve a partir dali várias tentativas. Em 29 de junho [de 1973], um regimento de tanques de Santiago tentou dar o golpe. O plano era que fosse o conjunto das forças armadas, mas não havia unidade entre os oficiais e houve um movimento de resistência na sub-oficialidade e nos soldados. Os marinheiros entraram em greve de fome impedindo que a Marinha saísse para o golpe.

Um dos medos dos golpistas era essa divisão. Qual a sua avaliação sobre o papel da ditadura brasileira no processo?
A embaixada brasileira era um dos agentes fundamentais para a organização do golpe. Em primeiro lugar, estiveram os americanos, que financiaram os caminhoneiros para entrarem em greve, deram muito dinheiro aos partidos chilenos, etc. Embora os golpistas não precisassem de mais que a ajuda norte-americana. Mas agentes brasileiros estavam no dia do golpe, e nos dias imediatamente posteriores, nas prisões e no Estádio Nacional interrogando brasileiros. Toda a imprensa brasileira também falava em guerra civil bastante tempo antes. Davam muito destaque e praticamente ecoavam a imprensa chilena, quase toda controlada pelos grandes capitais.

Você estava lá no dia do golpe, certo?
Sim, estudando, como podia, com o país completamente dividido. Todo mundo sabia que haveria um golpe, até porque não se faz um golpe militar desta envergadura e violência secretamente. Houve todo um clima depois de outubro. A reação popular foi tremenda e isso, digamos, freou os setores mais golpistas. A Democracia Cristã hesitou após o ‘paro de outubro’, por exemplo. Mas a resposta do governo foi fraca, cedendo às demandas da burguesia. No início do ano o governo se preparava para devolver boa parte das empresas então estatizadas aos antigos donos. Pouco tempo antes do golpe, numa atitude simbólica, devolveu o canal de televisão da Universidade do Chile, que estava ocupado pelos seus trabalhadores e a esquerda havia dois anos. Aquilo era um símbolo para todo mundo que acreditava no governo e estava contra o golpe. Acho que faltou uma estratégia de defesa mais clara. Foi muito parecido, neste sentido, à atitude de João Goulart frente ao golpe de 64. Dias antes, todos os dirigentes do governo ou próximos, como o Prestes, diziam que havia todo um dispositivo de militares leais que impediria o golpe.

Na sua opinião, o que mais marcou a mudança na situação que abriu a possibilidade do golpe além desse avanço da classe trabalhadora?
O primeiro fator é que os americanos decidiram não tolerar uma experiência deste tipo porque era um exemplo para o conjunto da América Latina. O segundo, é que, evidentemente, quem teve melhorias despertou. Por exemplo, com toda a campanha, a fome e o desabastecimento, em março de 1973 a Unidade Popular teve mais votos do que quando foi eleita. Obteve 43% nas eleições municipais. A manifestação de 1º de maio de 73 foi grandiosa, assim como a resposta ao golpe de 29 de junho. Todas as fábricas e os principais campos foram ocupados. Não havia como, sem um derramamento de sangue violento e feroz, “colocar ordem na casa”. Os senhores queriam manter a ordem, como fizeram em Canudos, no Quilombo dos Palmares e em escala nacional. A diferença é que lá foi de uma violência inicial tremenda.

Que comparação você faz entre o esquema de promoção de golpes pelo governo dos Estados Unidos naquela época e a postura de “xerife do mundo” assumida por eles hoje?
São momentos distintos. Há uma tentativa americana de reagir violentamente contra os que saem um pouco da sua órbita, combinada com uma grande pressão para que não saiam. Nem naquela época, a política americana era só de golpes militares, que são a pior coisa para os interesses dos poderosos porque numa ditadura sempre existe um inimigo claro e fácil de identificar. Talvez hoje estejam dispostos a ir até mais longe devido aos seus problemas. Na época do golpe chileno, estavam terminando os 25 anos de boom econômico norte-americano. Eles que, em 1945, detinham 40% da produção mundial, hoje detêm 20%, apesar da sua força. Talvez a decadência relativa americana os torne ainda mais sanguinários. O que não quer dizer que tenham sucesso. Basta ver o Iraque. Derrotaram um pobre país, compraram seus generais para que não houvesse resistência na principal cidade, mas agora a vida para eles está cada vez pior. Os principais jornais americanos já falam que têm que se retirar. O problema é que a retirada agora vai significar sair com o rabo entre as pernas.


PERFIL


Waldo Mermelstein

Técnico judiciário do TRF-3 há 8 anos, Waldo, 50, trabalha no setor de Informática. Morou 10 meses no Chile. Militante socialista, participou da resistência à ditadura militar no Brasil – o que o levou à prisão por quatro meses em 1978, acusado de reorganizar partido político proscrito. Foi anistiado em 1979.

Muitas pessoas quando olham o passado e vêem processos como o chileno, chegam à conclusão de que por mais corretas e necessárias que sejam as mudanças estruturais para melhorar a vida de um povo, os conservadores vão usar a força para interromper o processo. Que ensinamentos a luta do povo chileno lhe trouxe?
Às vezes as pessoas acham que não vale a pena. Mas, para mim ensinou o enorme poder que o povo tem de mobilização. Vi vários momentos de heroísmo do povo chileno, um altíssimo nível de consciência vindo do processo de mudanças e da polarização. Em todo processo como este, todo mundo pensa o que vai ganhar e o que vai perder. Por exemplo, estou no tribunal há oito anos. Fizemos três ou quatro grandes greves e diversas paralisações e todo momento anterior as pessoas pensam nisso, é natural. Mas aprendi que a força do povo é praticamente invencível, mas não eterna. Aquela energia toda que se renovou durante anos poderia ter evitado o golpe, mantido algumas conquistas. Não sei se poderia ter avançado mais, mas isso é outra discussão. Acho que esse raciocínio é vencido pela vida prática, quando as pessoas percebem que ou embarcam na canoa ou morrem de fome ou ficam numa situação muito difícil.

Como o processo chileno lhe atingiu pessoalmente?
Um colega de faculdade morreu numa manifestação por causa de balas disparadas do edifício da Democracia Cristã. Um amigo que fiz depois esteve preso no Estádio Nacional, Ênio Buchionni. Um amigo dele, exilado, chamado Túlio Quintilhano, foi assassinado nas ruas de Santiago dias depois do golpe. No dia do golpe, passei na frente do Palácio [La Moneda], por volta das 10 horas, pouco antes do bombardeio, para ir à faculdade. Da outra vez, tínhamos organizado ali uma manifestação, mas naquele dia os carabineiros mandaram a gente sair em meia hora. Morava num edifício no centro da cidade, perto do hospital. Por três dias a gente via chegar as ambulâncias. Estavam comigo um sueco e um chileno que tinha perdido a família – assassinada no sul do país, dominado antes do golpe pelos militares que se utilizaram de uma lei de controle de armas, editada durante a Unidade Popular. Sob o pretexto de revistar lugares que tinham armas, os militares tomaram conta e invadiram fábricas e bastiões da possível resistência. Tínhamos que dormir no chão porque volta e meia balas entravam pela janela, no 18º andar. Uma amiga perdeu o marido, preso.

O governo Lula, como Allende, é classificado politicamente como de esquerda. Até que ponto se pode fazer comparações entre os dois?
A coalisão de forças é semelhante; o PT é o maior partido de esquerda no país, socialista até ontem; Allende também levou 20 anos para ser eleito. Mas o programa dele era ao socialismo, independente da proposta de transição pacífica e da possibilidade ou não de sucesso. Incluía a nacionalização das principais indústrias, reforma agrária extensa, controle sobre os bancos. Não tem comparação deste ponto de vista. Quem votou no Lula e não se desiludiu ainda acha que o governo tem boas intenções. No Chile, não eram boas intenções só. Houve um aumento de 100% dos salários no primeiro ano, frente uma inflação de 60%. Não sei se os governantes brasileiros, numa situação como aquela, teriam a mesma altivez que teve o Allende no primeiro momento. Mas também espero que no Brasil não aconteça o que houve lá.

Veja aqui a íntegra da entrevista.

PARA VER


Filmes históricos

Missing - 116min. Costa Gravas, 1982. Mostra os primeiros dias da repressão e o horror da ditadura chilena. Chove sobre Santiago - 110min. Helio Souto, 1975. Relata o final do governo Allende e implantação da ditadura de Pinochet.