SINDICATO DOS TRABALHADORES DO JUDICIÁRIO FEDERAL NO ESTADO DE SÃO PAULO
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JJ - Edição 72 - 19/10/2001 - Página 8

ENTREVISTA - RILMA APARECIDA HEMETÉRIO

Uma juíza negra no TRT
Primeira juíza negra a chegar à 2ª instância do TRT da 2ª Região, Rilma Hemetério critica o neoliberalismo, os ataques à legislação trabalhista e diz que a sociedade precisa discutir o preconceito racial

O Jornal do Judiciário entrevistou Rilma Aparecida Hemetério, primeira juíza negra a assumir uma vaga na 2ª instância do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Ela está entre os convidados da "Noite da Consciência Negra", 23 de novembro, quando o sindicato promoverá debate sobre a questão racial e o mercado de trabalho.
Formada em Direito pela USP em 1976, a juíza já foi servidora da Justiça do Trabalho, promotora da Justiça em Minas Gerais e advogada trabalhista. Desde dezembro de 1981 é juíza na 2ª Região.
Na solenidade de posse, no dia 8 de outubro, Rilma destacou aspectos da conjuntura atual e criticou o neoliberalismo. "O desmantelamento do bloco soviético e a histórica queda do Muro de Berlim ensejaram a perda da principal causa de preocupação do mundo capitalista. O sistema de proteção do trabalho passou a ser desmantelado de forma exacerbada, impondo-se um retorno aos tempos do liberalismo com afrontas às conquistas de séculos de sofrimento e luta.", disse. Ela citou os ataques à Justiça do Trabalho.
Leia trechos da entrevista concedida à jornalista Luciana Araújo. A íntegra da entrevista poderá ser lida na versão digital do Jornal do Judiciário na internet (www.sintrajud.org.br).



Jornal do Judiciário - A senhora tem uma história de vida muito ligada à Justiça do Trabalho, já foi servidora inclusive, entre 1978 e 1981. Quais as principais mudanças observadas nesses treze anos?
Rilma Aparecida Hemetério - O grande impacto com relação à parte estrutural foi a informatização. Foi como passar da idade da pedra para os tempos atuais. Quando eu entrei, tudo era artesanal. Até as guias de custas eram feitas pelo atendente judiciário que ficava no balcão. O volume de serviço já era muito grande e, às vezes, quando estava no final da datilografia de uma sentença, tinha que rasgar e começar tudo de novo porque não podia ter erro. O resto não mudou muito. Houve uma expectativa de mudança quando da Constituição de 88, mas ela também dificultou muito a aplicação do Direito porque colocou no âmbito constitucional normas que deveriam ser ordinárias. Além disso, para muitas coisas deveriam ter leis que complementassem a Constituição, e isso não aconteceu. A produção legislativa foi muito pequena, o que faz com que no dia-a-dia o juiz e o advogado tenham que se valer de outros meios, como a jurisprudência e a aplicação do direito doutrinário, para conseguir aplicar a justiça. Essas mudanças mais recentes, esse neoliberalismo, a desregulamentação têm dificultado muito também porque dentro de um mesmo pacote é colocado tudo. Sem qualquer discussão. Não dá nem para assimilar. Coisas muito importantes, direitos que são colocados à margem numa penada. Isso é preocupante, porque em nome de uma globalização, de uma desregulamentação, de uma privatização de poderes que são inerentes à própria Justiça tudo isso está sendo deixado de lado.

A senhora é a primeira juíza togada negra na 2ª região. Como a senhora mesmo falou, SP é um termômtero para o resto do Brasil. Como observa isso?
Vejo como um fato circunstancial. A próxima juíza que está para ser nomeada, por acaso também é negra, muito eficiente, muito diligente. Os negros estão chegando, fruto de esforço pessoal. Embora haja uma movimentação desde várias décadas em busca da valorização do negro, ele é um solitário nesta busca de conquistas. Normalmente, você [negro] olha ao redor e não vê ninguém. Você chega numa universidade e vê todas as caras, mas igual à sua são poucas. Então, você não tem um modelo. Hoje você vê o negro conquistando espaços: na televisão, no jornalismo, mesmo no mundo jurídico, na cultura e no legislativo. Não tanto no Poder Executivo. No Judiciário também há uma grande leva.

Avança o processo de consolidação do espaço do negro na sociedade?
Nós estamos deixando de ser os cantores de pagode bem-sucedidos, a mulata rebolativa, os da escola de samba. Nessas áreas, inclusive, a partir do momento que começaram a ter uma projeção, nós acabamos perdendo nosso espaço porque, se está na mídia e é para dar dinheiro, a tendência é nos deixar de fora. Mas eu acho que cabe a nós também conquistar um espaço nosso. É difícil, porque você tem que estar a todo momento provando a quê veio e também mantendo uma certa discrição porque a nossa sociedade é preconceituosa e não aceita que é. Fica difícil modificar o que está sedimentado. A única forma que você tem é mostrar o seu trabalho, que você está num determinado lugar que não foi gratuito, você conquistou a duras penas. Sem necessidade também de choramingo. Não tem mais cabimento para qualquer pessoa que pensa na projeção do negro, enquanto movimento, ficar chorando o leite derramado. Agora é arregaçar as mangas e seguir em frente. Passamos da situação mais difícil, que era a escravidão humana. O espírito é livre. A inteligência, o pensamento ninguém aprisiona. Mesmo quando quiseram aprisionar, mostramos que não era esse o caminho. Nossa marca está aí, não tem mais como tirar. Sem rancor, sem ressentimento, porque não há como nós termos ressentimento dentro desse caldeirão de mistura em que vivemos. Não somos só nós a sermos colocados na marginalidade por questões raciais. Temos que cuidar dos nossos, mas olhar em volta para não cairmos no mesmo erro. Temos o exemplo das etnias que vieram da Ásia, que também são marginalizadas. Acho que a partir do momento que se sente que eu tenho a minha auto-estima, que não preciso mais provar nada para ninguém, nem para você mesmo, as coisas começam a fluir. Agora estamos começando a trazer esses temas também em discussão. O que é muito importante, porque a sociedade tem que discutir, para concordar ou não, mas tem que discutir para sabermos qual o caminho a ser tomado.

Os movimentos em busca do espaço do negro foram uma alavanca para o avanço, ainda que pequeno, da legislação?
Nós saímos de lá... Dissemos: 'não temos que ficar aqui'. Não ficamos nos sentindo coitadinhos. Se estão nos discriminando, vamos lá e falamos. Normalmente as pessoas pensam: 'o que é que tem eu chamar de negão?' Em primeiro lugar, perguntaram para a pessoa se ela gosta de ser chamada de negão? Não, se dão a liberdade de chamar de negão "como uma forma carinhosa". Negar isso, massificando uma característica da pessoa (negão, perneta, beiçudo), é discriminar pela característica que é a exceção. Toda pessoa tem que ser vista como ser humano e está na Constituição que todo ser humano tem direito a um nome, um prenome, etc., que é o que o identifica. Fazer as pessoas entenderem isso é muito difícil. É parte da cultura, que precisa mudar.

No Judiciário, como a senhora vê o avanço disso dentro da legislação específica e na própria mobilização do movimento organizado contra a discriminação?
São poucas as ações envolvendo pessoas negras. Quando tem, elas estão sempre na condição de empregados. Já cheguei a perceber ranços de preconceito em certos processos, mas não dá para ter um termômetro porque são poucos os processos colocados por negros. Mas já cheguei a uma situação onde o advogado fazia menção de que aquele procedimento em julgamento tinha origem no fato de a chefia não gostar do funcionário porque ele era negro. E o processo caiu exatamente na minha mão. Minha chefe de audiências e o juiz classista também eram negros, dentro de uma minoria de negros que existe na categoria. A pessoa que estava sendo representada na ação acabou tendo que fazer um acordo com o funcionário. Se ela não gostava de um negro, acabou tendo que passar a gostar de quatro, porque até o advogado da parte interessada era negro.