SINDICATO DOS TRABALHADORES DO JUDICIÁRIO FEDERAL NO ESTADO DE SÃO PAULO
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25/8/2016

2ª Caravana Tekoha-Guarani Kaiowa visita retomadas e promete fortalecer luta de povos indígenas

Sintrajud integrou novamente a caravana a Mato Grosso do Sul e levou solidariedade e apoio político aos povos indígenas da região

A 2ª Caravana Tekoha – Guarani Kaiowá da CSP-Conlutas, realizada nos dias 9 a 11 de agosto, em apoio e solidariedade aos povos indígenas de Mato Grosso do Sul, visitou duas aldeias: Ñandeva e Takuara. Dois dias intensos de estreitamento de relações de confiança, conhecimento de culturas e fortalecimento da luta em defesa da demarcação e homologação imediata das terras indígenas.

Integraram a caravana representantes do Sintrajud, Sintusp (Sindicato dos Trabalhadores da USP), Andes-SN (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior), ANEL (Assembleia Nacional dos Estudantes Livres), Movimento Luta Popular e PSTU.

Retomada Ñandeva recebe caravana com canto, danças e agradecimento pela solidariedade

A Ñandeva, retomada há 60 dias, passa por sérias e graves dificuldades. São cerca de 200 famílias sem o mínimo necessário para subsistência. 

Homens, mulheres, idosos e crianças enfrentam a escassez de alimentos, água, saneamento básico, precariedade de moradia e com o perigo constante de ataques de jagunços e pistoleiros contratados para tirá-los do local.

A retomada, para os indígenas, é a única maneira de reaver as terras que lhes foram tomadas. O cacique Natalino falou em português precário, num esforço para que os caravaneiros entendessem a situação do seu povo, que “está marcado para morrer e isso pode acontecer a qualquer momento, pois os pistoleiros não têm hora para atacar”.

Ele acrescentou que não pode sair da aldeia e ir para a cidade em busca de recursos, pois sabe que “os pistoleiros do fazendeiro” estão de tocaia à sua espera. “Estou refém, sem o direto de ir e vir”, diz.

Com ajuda da líder indígena Valdelice Veron na tradução de sua saudação, ele revelou que esses profissionais não poupam mulheres e crianças nos ataques.

Valdelice complementou que essa é uma realidade vivenciada por todos os povos indígenas que brigam pela terra e lutam pelo direito de viver com dignidade e em conformidade com suas crenças, cultura e forma de produção e trabalho. Ela explica que, em 1919, foram criadas as oito reservas indígenas do Mato Grosso do Sul para onde todas as nações indígenas da região foram levadas, sem consulta prévia.

Esses locais são considerados verdadeiros confinamentos pelos indígenas, porque não permitem a cada etnia praticar a sua forma peculiar de produção e trabalho ou prática singular da espiritualidade.

A reserva onde está o povo da Ñandeva é datada de 1928. “Não foi perguntado ao povo da Ñandeva se queriam ir para a reserva, eles foram jogados ali. E isso aconteceu em várias terras indígenas. Aconteceu também com o povo da (aldeia) Takuara. Os indígenas que se negavam a ir para as reservas eram considerados selvagens e hostis e eram torturados na prisão Krenak”.

Reformatório Krenak

A prisão a que Valdelice se refere é o Reformatório Krenak, mantido pelo Regime Militar na terra dos índios Krenak, em Minas Gerais, de 1969 a 1972, para receber indígenas considerados criminosos ou de mau comportamento. Em documento elaborado pelo MPF (Ministério Público Federal) de MG, há depoimentos de indígenas que passaram pelo local e sofreram maus tratos, torturas e foram submetidos a trabalho escravo.

O reformatório foi originado de um convênio da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), que dava à Polícia Militar de Minas Gerais a tarefa de cuidar das aldeias da região, no Vale do Rio Doce, área cobiçada já à época por fazendeiros e mineradores. Era destinado aos krenaks desobedientes, mas, de acordo com documento do MPF, pelo menos 94 indígenas de 15 diferentes etnias de 11 estados brasileiros conheceram o local e os métodos de “correição” utilizados.

“A nossa história é sangrenta. O nosso rastro é só sangue. O estado do Mato Grosso do Sul é uma terra de sangue kaiowá”, disse Valdelice. “O cacique está dizendo, que não sabe até quando vai viver, porque nós, lideranças indígenas, estamos sempre passando por emboscadas, enfrentando tiros - quando não é tiro de pistoleiro é tiro da Justiça, da FUNAI, é tiro de todos os lados para tentar calar a nossa voz, mas nós não vamos calar porque somos o povo originário dessa terra”, desabafa a líder.

O cacique Natalino agradeceu a visita dos caravaneiros e complementou que a visita tem um “tom” especial, pois, a partir do contato com as dificuldades e dores do povo indígena, todos passam a sentir o que cada índio sente. “Agradeço a vocês que vieram para sentir o que estamos passando. E agora nós vamos passar a sentir juntos. Vamos sentir muita coisa juntos ainda e vamos lutar juntos”.

Apesar da escassez em que vivem os Ñandeva não deixaram de preparar uma emocionante recepção para a 2ª Caravana tekoha – Guarani Kaiowá da CSP-Conlutas. Corpos pintados, adereços, cantos e danças, simulação de lutas, as boas vindas pela matriarca da aldeia, Thereza, e os olhares de contentamento ao receber os que ali chegavam.

 Em nome da CSP-Conlutas e do Movimento Luta Popular, os ativistas Avanilson Araújo e Irene Maestro destacaram a semelhança das mobilizações dos indígenas em luta por terra e das que ocorrem nas ocupações por direito à moradia nas cidades. Avanilson também reafirmou que “estamos juntos na luta pela demarcação das terras indígenas”.

 

Os caravaneiros, por sua vez, selavam solidariedade, apoio político e levaram alimentos, roupas e medicamentos para distribuir entre as famílias Ñandeva. Logo depois da distribuição, seguiram para a aldeia Takuara.

A Tekoha Ñandeva 

O tekoha (terra) retomado pelos Ñandeva está situado na atual fazenda Yvu, em Caarapó, a 273 km da capital Campo Grande. A área retomada, os arredores da fazenda, tem cerca de 490 hectares e são dedicados à monocultura da soja e da pecuária.

A atual proprietária é Silvana Amado Buainain. Seu pai, o produtor rural Sylvio Mendes Amado, foi um dos fundadores da Federação da Agricultura e Pecuária do Mato Grosso do Sul (Famasul), uma das principais associações de pecuaristas do país.

Segundo dia: caravaneiros conhecem a nova retomada da Takuara

O segundo dia da Caravana Tekoha II – Guarani Kaiowá, em Mato Grosso do Sul, os caravaneiros conheceram a terceira retomada nas terras da Takuara, aldeia onde acampou a primeira caravana, em dezembro de 2015. Com mais 496 hectares retomados, e rios passando em volta, os Guarani Kaiowas da família Veron estão felizes com esta conquista. Já foram retomados 1.800 hectares dos 9.755 hectares que têm as terras indígenas naquele território. Desta vez, a retomada, que aconteceu em janeiro deste ano, foi no entorno da sede da fazenda Brasília do Sul, que está sob a posse do fazendeiro Jacinto Honório, em Juti, região sul do Estado.

 

Uma caminhada pelas fronteiras e pelo marco zero do projeto foi o programa principal na aldeia Takuara. O cacique Ládio Veron fez questão de levar os caravaneiros para mostrar como estão se “assentando” nas terras. 

Em pontos importantes há parentes morando em barracos e alguns já estão com uma pequena horta de subsistência ou criando porcos. “Eles vieram pra cá para protegermos as fronteiras da retomada, mas depois querem trazer as famílias pra morar também”, diz Veron. 

Um deles, primo do cacique, Catalino José, montou um barraco em meio a um bosque e ali passa solitário. “Queria trazer meu filho pra cá, mas ainda não tenho condições”. As instalações são precárias. Uma lona de plástico preta, sustentada por madeiras, alguns utensílios de cozinha, um pequeno colchão para noites frias, que durante o inverno podem atingir menos de 5 graus.

O marco zero está num descampado com apenas uma árvore de tronco alto no meio de um morro pouco íngreme. Ali, o cacique faz questão de sentar e explicar os planos para a terra. Em um desenho de formato circular, ele mostrou que a ideia é construir no centro da aldeia uma infraestrutura que permita a vida em comunidade: casa de rezas, escola, posto de saúde, um espaço para a realização de reuniões e, no entorno, acompanhando o traçado, as casas do povo da aldeia. “Têm muitos parentes que querem vir pra cá, mas a terra ainda não tem condições de receber”, comenta Verón.

 

Realmente não há a nenhuma estrutura, apesar de haver eletricidade e água encanada na sede da fazenda que está localizada há poucos metros da tenda onde se instalou a família.


O cotidiano de quem cuida da terra


A matriarca conhecida como Mama Júlia é uma das guardiãs do local e quase não sai dali. “Eu acordo de manhã, faço o café, arrumo aqui a casa, faço o almoço e depois pinto essas roupas”, explicou mostrando as vestimentas típicas dos indígenas que confecciona para as netas, durante suas tardes.

Na caravana passada, Mama Júlia estava triste porque que tudo o que plantava não vingava, em razão do envenenamento do solo naquela parte da aldeia. O local era alvo de pulverização sistemática e demasiada feita pelo fazendeiro Jacinto Honório quando lançava agrotóxicos na soja cultivada na fazenda. A matriarca dizia que a mandioca demorava a cozinhar e o milho não se desenvolvia e secava antes de maturar, assim como as hortaliças.

“Aqui é muito melhor, dá gosto de plantar, porque as coisas dão”, nos diz Mama Julia com um sorriso estampado no rosto. Neste mesmo dia, ela fez um almoço com arroz e feijão levados pela caravana, mas uma abobrinha plantada por ela e colhida naquele momento, realmente saborosa. 

À noite, a família costuma se sentar à fogueira para espantar o frio e contar as histórias do dia ou organizar a luta cotidiana.

E assim são os dias da matriarca, zelando pela terra retomada.

Luta pelo coletivo 

Uma das observações do cacique Veron chama atenção pelo pensamento coletivo e também estratégia de luta. “Sabemos que não adianta retomar só as nossas terras, temos de pensar nos oito povos indígenas dessa região, por isso, além das terras temos de fortalecer com todo mundo junto o Aty Guasu”, frisa. O Aty Guasu é uma assembleia realizada pelos caciques e lideranças Guarani Kaiowas periodicamente, mas contam com os Ñandevas e outras etnias.

Nessas assembleias, que podem durar um, dois ou mais dias, eles decidem a organização e estratégias de luta nas retomadas das terras, na defesa das demarcações, as ações frente ao governo federal, iniciativas internacionais e outros aspectos, como questões cotidianas que envolvem saúde e educação, tão precárias na vida dos povos indígenas de Mato Grosso do Sul.

A ideia de Veron é ampliar o Aty Guasu para a participação de movimentos sociais que atuam nas cidades por moradia, quilombolas e outros. “Se a gente ampliar para esses movimentos, fortalecemos as nossas lutas e isso é muito importante, porque sofremos as mesmas injustiças”, afirma.

O cacique tem o projeto de realizar uma grande Aty Guasu assim que a aldeia já estivar com mais estrutura para receber um número expressivo de pessoas.

A luta dos Veron

A família Veron é conhecida pela persistência na luta para reconquistar suas terras. Enfrenta há anos a violência de jagunços e pistoleiros e, nesses embates, já perdeu lideranças políticas e espirituais barbaramente assassinadas.

Em 1997, os Guarani Kaiowá da Takuara fizeram a primeira retomada, ainda sob orientação do cacique Marcos Veron. Uma execução violenta de ação de reintegração de posse, conquistada por fazendeiros em 2001, os retirou das terras. Segundo indígenas, havia mais de cem policiais armados que os expulsaram para a beira da rodovia, a viver embaixo de lonas de plástico.

Marcos Veron foi assassinado em 2003, durante uma nova tentativa de retomadas das terras, quando foi violentamente espancado pelos capangas do fazendeiro local.

Coragem e persistência

A vida dos povos indígenas do Mato Grosso do Sul é marcada por essa escassez, essa violência cotidiana que promove centenas de assassinatos e suicídios. Mas também são marcas desse povo a coragem, a persistência, a disposição para a luta e a inteligência para estratégias.

Exemplo disso é o resultado obtido com a visita da relatora especial da ONU (Organização das Nações Unidas), Vitória Tauli-Corpuz, à aldeia Takuara em um momento de forte conflito, o que permitiu a ela não apenas verificar in loco, mas vivenciar as agressões, violência e tentativas de intimidação às quais esse povo está submetido.

Valdelice Veron, liderança indígena da aldeia, conta em suas entrevistas que, desavisados da presença da relatora da ONU, pistoleiros atacaram a aldeia durante a sua visita. E para não ser ferida ou morta, foi obrigada a deitar-se no chão com os demais indígenas com quem conversava sobre a situação local.

A relatora esteve no Brasil, no período de 7 a 17 de março de 2016, especificamente para verificar a situação dos povos indígenas. Em seu relatório, dentre outros pontos, Vitória destaca que os desafios das nações indígenas brasileiras são enormes. Entre eles, enfatiza “a violência, assassinatos, ameaças e intimidações contra os povos indígenas perpetuados pela impunidade”.

Suposta calmaria

Esse momento de suposta calmaria é proporcionado por um acordo judicial selado entre os indígenas da aldeia Takuara e o latifundiário da fazenda Brasília do Sul em final de junho de 2016. O acordo impede o fazendeiro ou qualquer pessoa a mando dele se aproximar da área retomada. Já os indígenas ficam impedidos de avançar com novas retomadas.

O objetivo do acerto é estancar o sangue indígena que corre no nas terras daquela região em decorrência do conflito agrário, que já mancha o governo estadual do MS e o governo federal e os expõe negativamente no Brasil e no Mundo. Apesar desses esforços, três dias após a saída da caravana, o líder indígena Araldo Veron foi pego numa emboscada e sofreu traumatismo craniano ao ser atacado com correntes, paus e facas. Os agressores foram denunciados pelos indígenas como jagunços de fazendeiros da região.

 

Fotos: Edna Pinson e Cláudia Costa




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