SINDICATO DOS TRABALHADORES DO JUDICIÁRIO FEDERAL NO ESTADO DE SÃO PAULO
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19/11/2015

No Judiciário, só é negra a toga dos magistrados

Cota racial em concursos começou neste ano, mas ainda falta muito para superar a exclusão dos afrodescendentes

No sábado que antecedeu o Dia da Consciência Negra, o servidor Francisco Antero Mendes Andrade, diretor de base no TRF-3, visitou as butiques da rua Oscar Freire com uma equipe da TV francesa. O objetivo não era fazer compras, mas produzir um documentário sobre o “teste do pescoço” – uma forma simples de comprovar a segregação racial no país. Ele também estava acompanhado da professora de História Luh Souza, com quem criou o teste há dois anos.

Antero e Luh “esticaram o pescoço” para dentro das lojas e ao longo das calçadas da região. O resultado foi o esperado: os poucos afrodescendentes que eles viram eram trabalhadores de ocupações bem simples, como no serviço de limpeza das lojas. Viram também babás negras de uniforme branco, cuidando de crianças loiras enquanto as mães faziam compras.

“Se o teste do pescoço fosse feito no Judiciário, o resultado seria o mesmo”, avalia Antero, que se formou em Direito e concluiu seu curso há sete anos com uma monografia sobre as cotas raciais no serviço público. “Muitas vezes, o negro é o estagiário, a moça terceirizada que executa a limpeza e, raramente, um técnico judiciário”, confirma seu colega Jorge Henrique Aristóteles, diretor do Sintrajud. “O mais triste é que essa situação já é considerada normal por grande parte dos colegas: ninguém se choca com essa distorção.”

“Embranquecimento”

De fato, o Censo do Judiciário divulgado no ano passado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostrou que menos de 30% dos servidores são negros, num país em que mais da metade da população é afrodescendente. Entre os magistrados, o percentual de negros não chega a 16%.

“O ‘embranquecimento’ do Judiciário é notório”, afirma Flávio Conrado Júnior, diretor do Sintrajud e servidor aposentado da Justiça Militar. Ele conta que, desde o final dos anos 90, quando prestou concurso, notou um declínio no acesso dos negros aos cargos públicos.

“À medida que as provas ficavam mais difíceis, menos afrodescendentes conseguiam a pontuação necessária para serem aprovados”, observa. “Conforme a escolaridade aumenta, menor a possibilidade de que eles ingressem no serviço público.”

Os números do Censo motivaram o CNJ a estabelecer a reserva de vagas para afrodescendentes nos concursos do Judiciário, por meio de uma resolução aprovada em 9 de junho. Outra motivação foi a Lei 12.990/14, que já havia criado as cotas nos concursos para o Executivo, vindo na esteira de leis estaduais e mudanças no vestibular de universidades públicas.

“Por trás de tudo isso sempre existia a pressão do Movimento Negro; se fôssemos esperar a boa vontade do Estado, as ações afirmativas não andariam”, destaca Antero.

Dez anos

De acordo com a resolução do CNJ, pelo menos 20% das vagas oferecidas nos concursos do Judiciário são reservadas aos negros, inclusive para o ingresso na magistratura. O texto ainda abre a possibilidade de que os órgãos adotem também outros tipos de ação afirmativa.

A Lei 12.990 tem vigência até 2024, fixando um prazo de dez anos para a verificação dos seus efeitos. Como a resolução do CNJ só entrou em vigor em 2015, o Judiciário terá um ano a menos do que os demais poderes para testar a eficácia das cotas.

Tanto o prazo como o percentual poderão ser revistos daqui a cinco anos, quando o CNJ realizará um novo Censo do Judiciário, mas a suspensão de muitos concursos provocada pelo ajuste fiscal pode retardar ainda mais os efeitos da medida.

“Esse prazo foi colocado para facilitar a aprovação da lei diante dos grupos mais conservadores”, avalia Francisco Antero. “É impossível empatar em apenas dez anos um jogo de 400 anos de desigualdade”, afirma. “As cotas deveriam ter um prazo mais longo, até não serem mais necessárias, e sem essa implementação modorrenta que estamos vendo”, acrescenta Flávio Conrado.

Meritocracia relativa

Mais do que a lei de cotas, porém, é preciso conscientizar a própria categoria sobre a importância desse instrumento no combate à segregação. Essa é a opinião unânime entre os servidores ouvidos pelo Jornal do Judiciário – afrodescendentes ou que militam na causa da igualdade racial.

A grande barreira para isso, dizem eles, é a fé cega na ideia de meritocracia. “Se o negro precisou trabalhar desde cedo, não teve tempo para estudar e tirou nota 7 em uma prova, tem tanto mérito quanto o branco que nunca trabalhou e tirou 8”, explica Francisco Antero, buscando relativizar o conceito.

Jorge Henrique segue o mesmo raciocínio: “um país que cresceu mais de 300 anos com base no trabalho escravo dos negros e que os jogou na marginalidade após a abolição, não pode simplesmente virar as costas e exigir que eles concorram, em igualdade de condições, em uma prova que avaliará seu ‘mérito’".

Para o servidor Dalmo Duarte, também do TRF-3, “o argumento da meritocracia é retrógrado”. Ele considera que as cotas raciais estão longe de remover os obstáculos à presença do negro no serviço público. “O que se fez foi apenas diminuir a cota dos brancos, que era muito alta”, ironiza. “A burguesia precisa criar desigualdades artificiais para aumentar a exploração.”

A nomeação de negros para os altos escalões do Judiciário também pode contribuir para mudar a mentalidade dominante, acredita Francisco Antero. Para isso, diz o servidor, quem ocupa a Presidência da República deve assumir a responsabilidade de indicar negros aos tribunais superiores.

Depois de Pedro Lessa, que foi ministro do STF entre 1907 e 1921, e Hermenegildo de Barros, entre 1917 e 1931, passaram-se oito décadas para que outro negro, Joaquim Barbosa, chegasse à mais alta corte do país. “Precisamos acreditar que podemos estar lá”, diz Francisco Antero. “Quando você nomeia pessoas negras para altos postos, você cria uma referência, e o presidente da República é responsável por isso.”

Saiba o que é o teste do pescoço.

Veja a Resolução do CNJ sobre as cotas raciais em concursos.

Veja aqui e aqui gráficos sobre a proporção de negros entre os servidores do Judiciário. (Fonte: CNJ - Censo do Judiciário)




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