Sem transparência, governo move R$ 606 bi do orçamento e gera desconfiança e confusão


15/02/2019 - Luciana Araujo

Um decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro gerou preocupação e críticas nas redes sociais e em alguns setores da mídia quando veio à tona. Trata-se do Decreto 9.699/2019, publicado no Diário Oficial da União (DOU) do dia 8 de fevereiro, sexta-feira.

O texto diz, no seu primeiro artigo, que “ficam transferidas, para diversos órgãos do Poder Executivo federal, para encargos financeiros da União e para transferências a Estados, Distrito Federal e Municípios, dotações orçamentárias constantes dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União (Lei nº 13.808, de 15 de janeiro de 2019), no valor de R$ 606.056.926.691,00”.

A reportagem apurou com profissionais e ativistas que atuam na área orçamentária que, numa análise preliminar, o decreto refere-se a remanejamento entre órgãos. Está relacionado à adequação da Lei Orçamentária Anual, aprovada pelo Congresso Nacional no ano passado, à reestruturação administrativa e ministerial que consta na Medida Provisória 870, de 1° de janeiro de 2019. As finalidades das destinações orçamentárias ficariam preservadas.

A princípio, não haveria, neste decreto, remanejamento de recursos da seguridade social para outras áreas. No entanto, a somatória de valores movimentados para, segundo o governo, adequação à nova estrutura chamou a atenção – e o mecanismo usado, um decreto, recebeu críticas.

O decreto

O servidor Matheus Magalhães, mestre em Políticas Sociais pela Universidade de Brasília, que tem atuação militante na defesa das demandas sociais nos orçamentos públicos, diz que o decreto remaneja valores entre órgãos e envolve ambos os orçamentos, fiscal e seguridade social, mas não é um remanejamento de R$ 606 bilhões da seguridade para o orçamento fiscal, como a primeira vista muita gente imaginou.

Para ele, a movimentação de valores tão altos expressa o tamanho das mudanças, alvo também de muitas críticas, na estrutura ministerial e administrativa. “Estamos falando de uma dimensão enorme de recursos, é mais do que todo gasto com a Previdência Social no ano, é mais de cinco vezes o orçamento da saúde em um ano”, diz.

Observando que a análise do material é complexa e envolve um documento muito extenso, “talvez produzido assim para dificultar mesmo a leitura”, ressalta que não descarta a possibilidade de que haja deslocamento, de certo modo indireto e em alguma medida, de recursos da seguridade. “A meu ver, é um decreto de ordenamento financeiro da reestruturação ministerial do governo federal, a maior pelo menos dos últimos 15 anos. Mas não quer dizer que não tenha relação nenhuma com a  desvinculação de receitas da seguridade, isso só uma análise mais detalhada vai poder nos dizer”, avalia. Por outro lado, lembra que a desconfiança de que estariam mais uma vez metendo a mão nos recursos da Previdência se justifica – diante da rotina anual de desvios de finalidade das verbas da seguridade social, baseados na DRU (Desvinculação das Receitas da União).

‘Sem transparência’

Para o servidor Tarcisio Ferreira, da direção do Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal no Estado de São Paulo (Sintrajud), chama a atenção a falta de transparência do governo e a ausência de diálogo com a sociedade – o que dificulta a compreensão de um decreto dessa magnitude, envolvendo mais de 600 bilhões de reais. “Toda a repercussão e a inquietação que esse decreto causou é mais um sintoma da falta de transparência e debate dos governos em relação à efetiva composição e distribuição do orçamento público. A discussão que se faz em geral, tanto nos meios de comunicação do governo quanto da grande mídia comercial, é uma abordagem extremamente superficial, na qual não se discute questões fundamentais como, por exemplo, a dívida pública”, disse.

O dirigente sindical assinala que isso acaba sendo usado para manipular o orçamento e não permitir um debate real sobre prioridades. “É um tema tratado como tabu e inacessível à maioria da população, ao contrário do que se prega nos discursos dos palanques. E não é para ser assim, pois se refere basicamente ao que se arrecada e como é usado”, observa.

A pouca transparência também gerou dúvidas, entre especialistas, sobre até que ponto o decreto respeita a lei orçamentária aprovada pelo legislativo. A LOA para 2019 traz um artigo que prevê a possibilidade de o governo remanejar verbas orçamentárias em razão da extinção ou reformulação de órgãos. No entanto, o uso do decreto para mover recursos públicos desta monta não escapou de críticas. “É um absurdo uma movimentação orçamentária desse porte no começo do ano, e por decreto, sendo que o Congresso Nacional acabou de votar o Orçamento. É como se não existissem a separação dos poderes, o Judiciário, o Legislativo, nada. Isso precisa ser debatido do ponto de vista do funcionamento da democracia”, questiona o economista Washington Lima, que assessora entidades sindicais, entre elas o Sintrajud, e possui larga experiência em análises orçamentárias.

Ministérios e prioridades

A reestruturação ministerial a qual o decreto está relacionado foi marcada por polêmicas e recuos. Mas, ao final, foram mantidas alterações de forte significado histórico e político, como a extinção do Ministério do Trabalho – cujas atribuições foram deslocadas de forma fatiada para os ministérios da Economia, da Justiça e da Cidadania. Ou a transferência do INSS, que cuida da Previdência Social, também para a Economia. As maiores cifras que constam no decreto. aliás, referem-se ao deslocamento deste instituto previdenciário do extinto Ministério do Desenvolvimento para a pasta da Economia, que seriam superiores a R$ 400 bilhões.

As mudanças são alvos de críticas dos setores que defendem os direitos sociais. “Com a MP 870,  Bolsonaro extingue o Ministério do Trabalho para reduzir a proteção social ao trabalhador e ataca comunidades tradicionais ao colocar, sob responsabilidade do Ministério da Agricultura,  a  reforma agrária, regularização fundiária de áreas rurais, a Amazônia Legal, terras indígenas e quilombolas”, critica o servidor do MPU Saulo Arcangeli, da coordenação da Fenajufe.

O resultado da reestruturação ministerial também preocupa Tarcísio, que teme que o passo seguinte seja esvaziar as atribuições institucionais deslocadas de ministérios e mantidas em secretarias. O governo alega, explica, que serviços como a fiscalização do trabalho será mantida, apenas agora sob a guarda do Ministério da Economia. “O problema é que a desestruturação do ministério já é representativa das prioridades políticas do governo e o passo seguinte é esvaziar muitas dessas atribuições que consideramos fundamentais, numa estrutura que não tem mais essas prioridades”, finaliza Tarcisio.

*Colaborou: Luciana Araujo

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