“Se a Globo mostrasse que temos R$ 4 tri em caixa, como o STF ia aprovar privatizar tudo em troca de R$ 100 milhões?”, questiona auditora


11/06/2019 - Luciana Araujo

Crédito: Cláudio Cammarota

 

Na fria manhã do sábado (8 de junho), cerca de 100 representantes de 15 categorias e alguns movimentos sociais, como a Educafro – curso pré-vestibular para população negra e carente – participaram do ato-debate ‘A quem interessa a reforma da Previdência?’, no Sindicato dos Metroviários.

A atividade foi organizada pelo Fórum dos Trabalhadores do Setor Público, integrado pelo Sintrajud e outros sindicatos de trabalhadores de órgãos públicos, estatais e empresas de economia mista.

A auditora fiscal aposentada Maria Lúcia Fattorelli explicou a composição orçamentária da seguridade social, que constitucionalmente inclui a Previdência, e porque afirma que é uma “farsa” a argumentação de que existiria um déficit nas contas públicas a exigir a ‘reforma’ do sistema de aposentadorias. Para Maria Lúcia, alguns aspectos precisam ser melhor explorados no diálogo com a população sobre o suposto “rombo das contas públicas” e sobre os mecanismos que beneficiam quem detém o capital às custas do recorrente discurso da necessidade de supressão de direitos dos trabalhadores para salvar o país – o que ela chama de “fabricação da crise”.

“Temos um potencial de arrecadação tributária por cobrar, porque no Brasil distribuição de lucros é isenta, remessa de lucros para o exterior é isenta, grandes fortunas não pagam [tributação], grandes heranças não pagam quase nada”, lembrou Maria Lúcia.

Além dos mecanismos de arrecadação previstos na Constituição Federal de 1988 e nunca regulamentados, como os impostos sobre grandes fortunas e heranças, a auditora defendeu também que não se pode desconsiderar as reservas e outros ativos no debater a saúde da economia nacional. “Temos R$ 4 trilhões em caixa. Nós temos R$ 1 trilhão, 270 bilhões no caixa único do Tesouro Nacional. Temos R$ 1 trilhão e 2oo bilhões no caixa do Banco Central, remunerando a sobra de caixa dos bancos, e temos mais de R$ 1,5 trilhão em reservas internacionais, agora mais do que isso porque o dólar subiu, na gaveta, dinheiro parado. Um país que tem toda a riqueza que temos e ainda R$ 4 trilhões em caixa está quebrado? Não. Essa crise foi fabricada, porque se ela não fosse fabricada não haveria espaço para uma contrarreforma trabalhista, não haveria espaço para uma contrarreforma da Previdência, não haveria espaço para essa privatização em massa do nosso patrimônio público”, afirmou.

“Se a Globo, a Band, a Record, [ao invés dessa] campanha que estão fazendo contra a Previdência, estivessem fazendo uma campanha “nós temos R$ 4 trilhões em caixa”, como o Supremo ia aprovar privatizar tudo para receber R$ 100 bilhões?”, questionou, referindo-se à recente decisão da Corte de autorizar a privatização de empresas subsidiárias de estatais sem autorização do Congresso Nacional.

O caixa único do Tesouro é composto basicamente da reserva de arrecadação e emissão de títulos públicos, que gera despesa com o pagamento de juros. Com as limitações impostas pela Emenda Constitucional 96/2016, parte do que é arrecadado não pode ser reinvestido no orçamento primário, sendo reservado ao custeio do endividamento público. O problema é que essa política gera um círculo vicioso de desinvestimento na economia real para proteger o mercado financeiro e especulativo.

Já a sobra de caixa dos banco é o dinheiro não emprestado – Maria Lúcia ressalta que em razão das altas taxas de juros – depositada no Banco Central e remunerada diariamente com títulos da dívida pública ou por meio das operações compromissadas (empréstimos recomprados em futuro definido com preço pré-fixado).

As reservas internacionais são ativos em moeda estrangeira que funcionam como uma espécie de seguro, caso o país precise fazer frente a obrigações no exterior, choques cambiais, redução ou interrupção de fluxos de capital externo. Hoje no Brasil considera-se que há um sobre-acúmulo de reservas que poderia ser utilizado sem prejuízo ao país na retomada do crescimento econômico ou no financiamento a investimentos por meio de crédito. O ministério da Economia advoga que esse dinheiro seja empregado unicamente na redução de estoque da dívida. O problema é que, de acordo com estudo publicado pela Instituição Fiscal Independente, vinculada ao Senado, mostra que entre 2006 e 2012 as reservas cresceram 6,6 vezes basicamente a custo de endividamento e, de lá até 2016, pela desvalorização cambial.

“O déficit primário foi produzido pela política monetária do BC, porque a principal causa de quebra de empresas foi a falta de acesso a crédito e o fato de que para aquelas que tinham dívida esta dobrou, porque a taxa de juros dobrou. A crise foi porque esse trilhão ficou esterilizado, parado no banco rendendo 200% ao dia”, afirmou.

O dreno da DRU

Outro mecanismo denunciado por Maria Lúcia Fattorelli para a criação do déficit previdenciário é a desvinculação de receitas da União (DRU). Até 2015 – feitas as contas da seguridade de acordo com o que determina a Constituição Federal, levando em conta arrecadação e despesas carimbadas da saúde, Previdência e assistência social – era verificável o superávit contínuo. A partir de 2016, com a elevação da DRU, de 20% para 30%, autorizando o Estado a desviar mais recursos constitucionalmente destinados às áreas sociais para a composição do superávit primário visando a remuneração dos juros e serviços do endividamento público, o superávit “desapareceu” das contas da Seguridade. Maria Lúcia, no entanto, alerta que esse sumiço decorre de uma operação contábil. “Se não havia dinheiro sobrando como foi possível elevar a DRU?”

A auditora ressalta ainda que neste período as despesas com assistência também aumentaram, com o crescimento do desemprego e pagamento do auxílio-desemprego. Por outro lado, a receita previdenciária encolheu porque o governo desonerou 56 setores econômicos, desobrigando-os de contribuir sobre a folha de pagamentos para o INSS.

Custo da capitalização

Maria Lúcia também alertou para o fato de que o próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, admitiu em audiência na Comissão Especial que discute a ‘reforma’ da Previdência no Congresso Nacional que o custo de transição do modelo atual da Previdência no Brasil (no qual os trabalhadores na ativa sustentam as aposentadorias de quem deixou o mercado sucessivamente ao longo das gerações) para a capitalização (espécie de poupança individual) foi estimado em R$ 1 trilhão, em 20 anos. Exatamente o que o ministro afirma que a ‘Nova previdência’ vai trazer de economia.

Pela fórmula de Guedes, alerta Fattorelli, “R$ 870 bilhões vão sair dos mais pobres e outros R$ 200 bilhões serão tirados dos servidores, que já têm alíquota [de contribuição previdenciária] de 11% ou 14% e poderão ainda ter uma taxação extra”, afirmou. “Precisamos mostrar de onde vem o trilhão e para onde vai, que não tem nada de longevidade, privilégios, estão cortando direitos para pagar a capitalização”, frisou Maria Lúcia.

E para a economista esse seria apenas o custo inicial. Segundo ela, o governo coloca todo esse debate para leis complementares que seriam discutidas somente depois da aprovação da ‘reforma’ para não ser obrigado a detalhar custo do aporte do Estado no processo de cobertura do buraco aberto pelas contribuições que deixarão de entrar para o fundo público pela via das alíquotas de trabalhadores e empregadores. Assim como não explica o que será feito com o dinheiro já investido por anos pelos trabalhadores vinculados ao sistema atual de contribuição, nem o que será necessário que o Estado aporte para garantir a vigência do sistema de capitalização. “O governo só menciona uma parte do custo que é o que vai deixar de arrecadar do INSS”, afirmou.

A auditora destacou que no Chile, modelo do sistema proposto pelo governo de Jair Bolsonaro, o custo de transição do sistema foi de 136% do PIB (produto interno bruto ou a soma de todas as riquezas produzidas em um ano). “Comparando com o nosso PIB e tamanho do mercado de trabalho seria o equivalente a quase R$ 10 trilhões”, disse.

Guedes também chegou a sugerir que o custo da transição poderia ser coberto com mais endividamento público. “O mercado já não está satisfeito com os 40% do orçamento que leva todos os anos, o que ele quer agora é o dinheiro da Previdência”, frisou.

Gráfico da execução orçamentária de 2018 (Fonte: Auditoria Cidadã)

Ela explicou ainda a história da composição da dívida pública brasileira e como desde o início do processo de endividamento nacional diversas manobras encobrem negociações não republicanas. A Auditoria Cidadã da Dívida atua para que se efetive o dispositivo constitucional que prevê a análise técnica e independente dos contratos. Maria Lúcia coordenou esse trabalho no Equador e na Grécia. E durante o debate a auditora explicou os dados do estudo O rombo nas contas públicas está no sistema da dívida, e não na Previdência Social (que pode ser lido aqui).

Ações judiciais e interpelação a parlamentares

Maria Lúcia defendeu ainda o ingresso de ações judiciais questionando o uso de dinheiro público para financiar propagandas que em favor da ‘reforma’. O Sintrajud move uma ação contra a União questionando o uso do fundo público e os ataques promovidos pelo governo brasileiro, ainda na gestão de Michel Temer, contra os servidores públicos.

A auditora comentou o exemplo da interpelação judicial feita pela Auditoria Cidadã da Dívida a todos os líderes de bancadas no Congresso Nacional “para não alegarem desconhecimento” sobre os efeitos da PEC. “Foram 34 interpelações judiciais para que tenhamos provas de que cada um deles foi notificado dos danos sociais, econômicos e jurídicos dessa PEC, tanto para as pessoas como para as finanças públicas”, afirmou. “Gastamos quase R$ 20 mil, porque cartório cobra por página de documento”, completou ela.

Emendas

Questionada, Maria Lúcia Fattorelli também avaliou negativamente a busca por emendar a Proposta de Emenda Constitucional que pretende reformar a Previdência (PEC 6-A). “Tem muito sindicato iludido, a gente vê isso pelas emendas. Muita gente achando que pode salvar uma coisinha aqui, outra ali”, afirmou, ressaltando que mesmo que se o conteúdo principal da ‘reforma’ for aprovado “ninguém vai ficar de fora”.

TALVEZ VOCÊ GOSTE TAMBÉM