Política privatista de Pedro Parente deu ao governo Temer final merecido, diz sociólogo


01/06/2018 - Luciana Araujo

Após 11 dias da greve dos caminhoneiros, que abalou as estruturas do governo ilegítimo de Michel Temer, e na data que entrará para a história como o dia da queda do presidente de uma das maiores empresas do país em razão da força da luta dos trabalhadores, começa a valer nos postos de combustíveis o diesel a R$ 2,03/litro. A direção do Sintrajud comemora a vitória das categorias caminhoneira e petroleira (que também realizou dois dias de paralisação nacional apesar do Tribunal Superior do Trabalho ter criminalizado o movimento antes mesmo de seu início, decretando a ilegalidade da greve convocada por tempo determinado e impondo multas que iniciaram em R$ 500 mil e passaram a ser de pelo menos R$ 2 milhões).

Foram as mobilizações dos últimos dias que colocaram na pauta nacional o debate sobre o avanço da política de privatização da Petrobras, o atrelamento dos preços dos derivados de petróleo ao mercado estrangeiro e a redução a 70% da produção nas refinarias brasileiras, abrindo mão da auto-suficiência conquistada pelo país no setor em benefício dos acionistas internacionais e prejudicando a população – que passou a arcar com reajustes abusivos e quase diários dos combustíveis e gás de cozinha.

Principal alvo da greve petroleira, Pedro Parente,  operador do mercado alçado à presidência da Petrobras não suportou a pressão e pediu demissão neste dia primeiro de junho. Diversos veículos de mídia comercial apontam que teria sido pressionado a pedir as contas na tentativa de amenizar a imagem de “fim de feira” do governo Temer. Agora Parente somou ao título ‘ministro do apagão’ do governo FHC, o de responsável pela crise de abastecimento generalizada no país ao provocar a maior greve da história do setor de transportes de carga rodoviário neste século, e o de primeiro presidente da Petrobras derrubado pelos trabalhadores. Uma derrota importante para o mercado, que mostra sua indignação com alta do dólar e derrubada das ações da petrolífera.

A diretoria do Sindicato apoiou desde o início as greves dos caminhoneiros e petroleiros.

A reportagem do Sintrajud conversou sobre a greve caminhoneira com o sociólogo Ricardo Antunes. Professor do Departamento de Sociologia da Unicamp, Antunes é uma das maiores autoridades em Sociologia do Trabalho no Brasil, tendo publicado seu primeiro estudo sobre o tema em 1988 – a dissertação de mestrado sobre as greves metalúrgicas no ABC Paulista entre os anos de 1978 e 1980. O autor está lançando na próxima semana seu 27º livro – O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços da era digital, pela Boitempo Editorial (capa ao lado). A obra analisa as reconfigurações do trabalho no Brasil desde a redemocratização e o surgimento do que o autor qualifica como proletariado de serviços.

Leia abaixo a entrevista:

Você observou à BBC que a greve começou com fortes características de um misto de movimento reivindicatório de trabalhadores legítimo e locaute. Como a contradição entre ser proprietário do meio de trabalho e ao mesmo tempo ser trabalhador incide sobre o movimento e sua relação com outras categorias?

A categoria dos caminhoneiros e caminhoneiras é, por si só, muito heterogênea. Tem o assalariado das empresas de transporte, que não é proprietário, faz parte desse proletariado de serviços na chamada indústria dos transportes. Há também o proprietário do caminhão que é autônomo, e o que é proprietário e presta serviços a empresas. Essas são as características mais gerais, havendo ainda outras ramificações.

Um trabalhador de uma empresa que não é dono do seu caminhão, naturalmente não está nesta paralisação por iniciativa própria, porque não está lutando por aumento salarial, melhores condições de trabalho. Ele se insere no quadro daquelas empresas que fizeram locaute e disseram aos seus trabalhadores ‘encosta o caminhão lá porque vamos ter que mudar o acordo com o governo, o preço do diesel, etc’. Vários trabalhadores deram depoimentos à imprensa nesse sentido: ‘o dono da empresa me mandou parar’. Esse é o locaute patronal. E o trabalhador não desobedece ao patrão porque também simpatiza com a greve, sabe que o ônus do custo dos combustíveis vem pra ele também [na dificuldade de manter o emprego].

Já o segmento proprietário do caminhão complica um pouco, porque pode vender seu trabalho a uma empresa, numa leitura muito livre é o que o Marx nO Capital chamou de ‘proprietário de si mesmo’. Mas é um proletário também, porque vende o seu trabalho a uma empresa embora tenha o meio de produção.

Essa diversidade cria uma situação complexa. É claro que as condições materiais da realidade objetiva dada pelo desgaste do trabalho – as jornadas se tornaram mais intensas e esse aumento quase diário dos preços – trouxeram o ‘combustível’ da paralisação e do locaute. Com objetivos diferentes em alguns segmentos, mas também com objetivos iguais. Tanto para as empresas como para os donos de caminhões é positiva a redução do preço do diesel e o não pagamento do pedágio pelo eixo suspenso quando o caminhão está vazio, por exemplo.

Há ainda outro aspecto importante: predominantemente, embora nunca exclusivamente, esta categoria de caminhoneiros tem tido um perfil mais conservador enquanto movimento reivindicatório. Em 1972, no Chile, foram mobilizados pela direita para criarem o caos que ajudou na deposição do governo Allende, que não era revolucionário mas de um reformismo muito profundo, por um golpe militar. Nos Estados Unidos, por exemplo, houve greves muito corporativas.

Nos países em que o transporte rodoviário é predominante eles têm uma força muito grande – o Brasil é exemplar. No século XIX, por meio do sistema ferroviário de influência inglesa, nós avançávamos para construir uma expressiva malha ferroviária para atender à produção e distribuição do café, que depois foi completamente destruída, especialmente a partir de 1955, no governo Juscelino Kubitschek, quando o país abriu seu mercado  consumidor para a indústria automotiva.

O resultado é que os caminhões são decisivos na circulação de mercadorias, que tem um papel ainda mais decisivo no capitalismo do nosso tempo do que no passado.

Enquanto categoria são muito coesos em suas reivindicações, ao contrário de outras categorias que são mais diferenciadas. Os caminhoneiros são heterogêneos nas condições de contratação, mas as condições econômicas, os riscos de insegurança nas estradas e acidentes, batem em todos eles de forma muito semelhante. E têm um perfil conservador predominantemente, que tem a ver com a condição de pequeno proprietário que luta pela preservação do que é seu, ainda que não exclusivamente. Em todos os segmentos citados acima há os que estão pedindo desde o início intervenção militar como uma das reivindicações que aparecem como predominantes (embora seja uma greve em curso em relação à qual não há pesquisas) e haja também os que exigem o “Fora, Temer!”, “Eleições diretas”, “Liberdade do Lula” (como vi em cartazes aqui em Paulínia, o que pode ter a haver com a paralisação também dos petroleiros, tendo em vista que aqui há um núcleo muito importante da Petrobras).

Hoje quem está resistindo mais nas estradas são os autônomos que não se vêem representados por nenhuma das federações ou entidades que foram negociar com o governo Temer. Um governo destroçado que não sabe nem com quem negociar. O primeiro acordo gorou e o Temer saiu dizendo que havia uma ‘minoria radical’. Só que esta ‘minoria’ mostrou serem milhares de caminhoneiros, não é minoria coisa nenhuma.

Isso depois que o Pedro Parente afirmou no primeiro dia da greve que não haveria negociação.

O Pedro Parente, das grandes transnacionais e do sistema financeiro, deveria estar comprando a passagem dele para as Filipinas, Bangladesh, porque esse saiu fritado. Ele e sua política privatista na Petrobras deram ao governo Temer o final que ele merecia.

Gostaria que você comentasse também o debate que houve em setores que se reivindicam progressistas sobre apoiar ou não a greve.

De forma ainda muito preliminar, se há, e eu digo que há, um pólo empresarial muito grande, especialmente ligado ao agronegócio, jogando pesado nessa paralisação, usando seus trabalhadores num locaute e pedindo intervenção militar porque o governo Temer não lhes serve mais, é evidente que esse movimento acaba favorecendo o moinho do golpe. Apesar da cobertura ser muito direcionada, é evidente que há uma parcela importante não só das empresas mas também dos caminhoneiros que é parte daquele ódio às esquerdas e que evidencia um profundo desconhecimento ao pedir ditadura militar, que foi profundamente corrupta e assassina. Como vimos recentemente com a comprovação de que o alto comando foi diretamente responsável pelos assassinatos e torturas.

Mesmo entre os setores que pedem “Fora, Temer!” não é pela antecipação das eleições, mas pela volta dos militares.

Por outro lado, o movimento recobrou uma forte simpatia na sociedade pelo instrumento de luta da greve, há anos muito atacado na mídia como coisa de “baderneiros” e que vinha perdendo apoio social, como o movimento sindical de maneira geral.

Certamente. Primeiro, porque qualquer alternativa profunda neste país tem que ser coletiva, ampla e de massas. Os caminhoneiros evidenciaram isso, pela especificidade que tratamos no começo. Porque sem essa categoria não há transporte nem de pessoas, nem de mercadorias, nem de petróleo, gás, mantimentos, medicamentos. Isso dá a ela uma força que poucas categorias têm. Bancários têm, mas foi uma categoria profundamente modificada desde a greve de 1985 – que foi muito importante. Os caminhoneiros não viveram essas alterações [na configuração da organização dos trabalhadores]. Os caminhões são mais modernos, mas a malha rodoviária e a intensidade do trabalho se mantêm, iguais ou piores do que antes, porque hoje num contexto de crise ele tem que trabalhar muito mais para ganhar menos.

Outro ponto importante. A luta deles pela redução do preço dos combustíveis é hoje defendida por todos os setores – das classes populares, passando pelas classes médias até a classe burguesa. Isso faz com que movimento encontre uma simpatia. Eles também não entraram arrebentando, nos primeiros dias parecia que ia ser menor, e depois de quatro, cinco dias, o nível de organização mudou. Certamente com muitos elementos espontâneos, mas também o patronato (que não age espontaneamente).

Ricardo Antunes.

Eu diria que a greve dos caminhoneiros deve ser apoiada. O locaute patronal e o golpe militar por ele sugerido devem ser repudiados, alvo de uma profunda repulsa. Porque a greve é um movimento espontâneo no sentido da explosão que teve nas ruas, mas não foi espontâneo no que diz respeito à sua preparação.

 

 

Inclusive, em outras greves fortes do setor, como em 1999, 2009 e 2015 não houve essa dimensão embora tenham sido mobilizações importantes da categoria.

Sim. Não chegou a essa dimensão porque incidiu o aumento do desmando, a forma comoditizada, servil, subserviente aos interesses internacionais com que a Petrobras foi curvada ao preço internacional do petróleo, parecendo que o Brasil não produz petróleo.

Desde Collor, Fernando Henrique, e mesmo os governos Lula e Dilma, estão arrebentando a Petrobras. Privatizando pelas bordas. Uma hora isso ia ferver. E ferveu pelos caminhoneiros porque aqueles que dependem de encher o tanque todos os dias para trabalhar são eles. Nós podemos pegar ônibus, trem, carona… O caminhoneiro estava saindo de Porto Alegre com o diesel a um preço, chegando em Curitiba com outro preço e em São Paulo com outro. É uma situação impossível, porque eles não têm um preço ou salário móvel, que aumente o valor do frete de acordo com o preço da bomba.

E a simpatia da população é porque ela percebe a forma vergonhosa e acintosa como a política de preços da Petrobras se tornou, especialmente nesses dois anos de governo Temer. Como disse bem o slogan que ele soltou duas semanas atrás, em dois anos o governo Temer destruiu 33 anos [desde as conquistas da deposição da ditadura empresarial militar].

A greve evidenciou também a incapacidade do Estado brasileiro em seu atual estágio lidar com movimentos reivindicatórios de forma republicana. O Exército foi posto de novo nas ruas – o que não víamos desde a greve dos petroleiros de 1995, ainda no governo FHC – contra os caminhoneiros e também os petroleiros que iniciam neste dia 30 sua greve. Quais as consequências disso?

É imprevisível, porque estamos vivendo um período de contra-revolução preventiva, para lembrar o Florestan Fernandes, no Brasil e de amplitude global. Vivemos um terremoto nos últimos 40 anos que foi uma reestruturação permanente do capital. Agora estamos entrando na chamada indústria 4.0, especialmente na Europa, que vai ser devastadora para o conjunto da classe trabalhadora, não só nos países do Sul, vai afetar também os trabalhadores do Norte.

Também estamos vivendo como segunda tendência nesses últimos 40 anos uma intensificação, com uma agressividade ainda maior, da barbárie neoliberal. Não é mais só para privatizar, é para devastar. Estamos na era da devastação.

É o chamado ultraliberalismo?

Isso. Um ultra-neoliberalismo devastador.

E, três, e esse é um dado decisivo que não tínhamos antes de 1970, numa era de hegemonia inquestionável do capital financeiro. Isso quer dizer que os políticos não mandam nada, são fantoches os parlamentos e governos. Estão lá enquanto o mercado completamente hegemonizado pelo capital financeiro quer. E qualquer medida tomada que fira os interesses do mercado financeiro, o governo cai. E chegamos na situação atual. O governo Temer serviu até agora. Em dois anos fez a devastação da seguridade, da educação e da saúde com a Emenda Constitucional 95, conseguiu impor a lei da terceirização total e a contrarreforma trabalhista – profundamente devastadora, com o negociado sobre o legislado, o trabalho intermitente em sintonia com a lei da terceirização generalizada, com as mulheres grávidas jogadas no trabalho insalubre, o corte de uma série de direitos, como o tempo de alimentação.

E a Justiça do Trabalho passa a ser atacada por nasceu para conciliar as relações entre o capital e o trabalho. E a era do capital financeiro não admite conciliação, é de devastar. Foi por isso inclusive que os governos do PT caíram. A era da conciliação só é possível em épocas de bonança, em tempos de crise estrutural é a era da devastação.

E tem ainda o imposto sindical. Eu sou e sempre fui contra o imposto sindical, mas é evidente que o fim dele como está sendo feito arrebenta ainda mais os sindicatos, que já vinham de uma crise de razoável profundidade.

Feito tudo isso, faltou ao Temer fazer a reforma da Previdência, que ele se mostrou incapaz de fazer. Então ele é hoje para as classes dominantes um cachorro morto.

Num quadro em que não se sabe como serão as eleições de outubro, em que os candidatos do centro e da direita, a exceção do Bolsonaro, não conseguem sinalizar uma alternativa para o mercado, tudo isso cria um cenário imprevisível. É preciso mostrar o sentido fascista e brutal da candidatura do Bolsonaro, ter essa coragem para enfrentar o debate da indignação com tudo que está aí.

No caso das esquerdas, temos que construir uma alternativa. Não adianta buscar carona com quem não quer você como companhia.

A greve evidenciou também uma tendência que você disseca em seu novo livro – o proletariado de serviços, cada vez mais precarizado. O que a dinâmica da reestruturação global do capitalismo coloca como perspectiva de futuro para o mundo do trabalho e como os trabalhadores brasileiros, especialmente no setor público, podem enfrentar essa dinâmica?

Só com um movimento de massas. Um pouco como os argentinos tentaram fazer contra a reforma previdenciária do Macri e os franceses estão tentando fazer contra a reforma trabalhista do Macron, mas de modo mais ampliado.

Nós temos três organismos da forças sociais do trabalho – os movimentos sociais, os sindicatos e os partidos. Os movimentos sociais têm sua força maior em serem muito colados às autênticas reivindicações cotidianas, seu enlace com a vida cotidiana. Mas é mais difícil para eles criar um projeto societal de novo tipo.

Os sindicatos têm como elemento mais forte representar as categorias. Mas em geral agem nesse espaço das reivindicações econômicas e muitas vezes não conseguem também visualizar um projeto social mais abrangente, e por isso ficam prisioneiros de uma política mais corporativista. E ainda precisam compreender como é que vão representar esse novo proletariado de  serviços que está nascendo, como os trabalhadores intermitentes.

Por fim, temos os partidos socialistas,  anticapitalistas, de esquerda, que têm a sua força em saber que o mundo do capital não é alternativa, que é preciso uma sociedade do trabalho livre, fora dessas formas de superexploração ilimitada que temos hoje, como a escravidão digital. Mas o vínculos desses partidos com a vida cotidiana é pequeno.

Todos estão debilitados e vivendo crises. Então, não se trata de discutir qual deles é o mais importante, todos têm suas particularidades, especificidades e universalidades. Compreender a nova morfologia da classe trabalhadora em seu desenho ampliado e polissêmico implica entender que não há mais uma hierarquia de representação. Isso já aconteceu no que significou o salto do século XIX para o XX. Temos que estar abertos a que, no século XXI, temos que atuar pensando em outro modo de vida contra essa lógica destrutiva do capital, um novo modo de metabolismo social que seja da humanidade e não do capital, o tema do novo socialismo do século XXI. Esse é o desafio.

Confira abaixo a participação do Sintrajud no último ato na Avenida Paulista em apoio aos petroleiros:

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