Pandemia acelera ajuste forçado do Judiciário e pressiona servidores


12/03/2021 - helio batista
Com trabalhadores em home office, tribunais “passam a boiada” da reestruturação e da automação, que podem tornar definitiva a redução de pessoal.

Foto: TJAP

 

Trabalho remoto, teletrabalho ou home office: qualquer que seja o nome, a realidade é a mesma, de profunda transformação no funcionamento do Judiciário, acelerada pela pandemia.

Enquanto os servidores trabalham em casa, os tribunais executam reformas, “readequações” e “reestruturações”, ao mesmo tempo em que apressam a automação. As mudanças apontam para a diminuição não apenas do trabalho presencial como também do próprio quadro de pessoal, num ajuste forçado aos limites orçamentários impostos pelo governo e referendados pela cúpula do Judiciário.

Para os servidores, isso se traduz em uso intensivo da tecnologia e aumento da pressão por metas de “produtividade”, além da necessidade de conciliar o trabalho com a rotina doméstica. Como tudo segue a lógica do “fazer mais com menos”, eles também sofrem com a deterioração das condições de trabalho.

O “produtivismo” impera justamente quando são apresentadas leis que congelam salários, reduzem benefícios e proíbem concursos, começando pelo teto de gastos (Emenda Constitucional 95/2016) aprovado ainda no governo Temer, passando pela reforma da Previdência e chegando às PECs do governo Bolsonaro, como a PEC Emergencial que está em tramitação na Câmara dos Deputados.

Produtividade

É nesse contexto que antigas e novas decisões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e dos tribunais superiores são aplicadas nos tribunais regionais. As normas buscam reorganizar o serviço e adaptá-lo a um cenário com menos concursos e menos postos de trabalho.

Foto: Arquivo Sintrajud

“O trabalho está relacionado muitas vezes não à quantidade de pessoas que o realiza, mas à forma de trabalho, ao método de gestão, à maneira de organização e de planejamento”, disse o presidente do TRF-3, desembargador Mairan Maia. “Temos de nos espelhar muito em como a iniciativa privada trabalha para aumentar a produtividade”, acrescentou.

As declarações foram dadas no mês passado, em um webinário do Comitê Gestor da Política de Atenção Prioritária ao Primeiro Grau, criado em cada tribunal por determinação do CNJ (Resolução 194/2014). O evento teve por objetivo apresentar os resultados de um levantamento sobre qual seria o impacto da aplicação de outra Resolução do CNJ, a 219/2016, na atual distribuição de servidores da 3ª região.

A norma estabelece critérios para definir a quantidade de servidores, funções comissionadas e cargos em comissão nos órgãos do Judiciário. Para isso, foram utilizados indicadores de produtividade que resultaram de um estudo da Fundação Getulio Vargas.

Dali surgiram conceitos como “lotação paradigma” e “índice de produtividade dos servidores – IPS”.  A lotação paradigma é a quantidade mínima de servidores de cada unidade e o IPS é calculado a partir da divisão do total de processos baixados no ano anterior pelo número de servidores.

Foto: Arquivo Sintrajud

Já em 2014 a Fenajufe se manifestou contra essa avaliação meramente quantitativa da carga de trabalho. Na consulta pública aberta pelo CNJ sobre o texto da Resolução, a Federação procurou mostrar que a frieza dos números não traduz a rotina dos tribunais.

“O número de processos novos distribuídos a cada grau de jurisdição, apenas, é insuficiente para a definição de uma correta proporção de servidores em cada um deles”, disse a entidade. “A natureza, a matéria e a complexidade das causas são elementos que interferem direta e substancialmente na definição da quantidade, da qualidade e do tempo de trabalho necessário (de servidores e juízes)”, acrescentou

E-varas na JF

“A posição do Sintrajud sempre foi contrária à implementação da Resolução 219, porque os servidores teriam de produzir mais com menos”, diz a diretora do Sindicato Maria Ires Graciano, servidora do JEF e uma das representantes sindicais no Comitê.

De acordo com o levantamento do TRF-3, para se adequar aos critérios da Resolução, o Tribunal teria de ceder 120 servidores para a primeira instância (JF). Além disso, seria necessário diminuir em cerca de R$ 589 milhões o gasto do Tribunal com cargos em comissão e funções comissionadas, redirecionando a despesa também para a JF.

Segundo a diretora do Sintrajud Anna Karenina, outra representante do Sindicato no Comitê, o impacto nas subseções também seria grande. Uma das varas da JF Presidente Prudente, onde ela trabalha, perderia sete dos seus 12 servidores.

“Estudos feitos pelo Comitê de Gestão Orçamentária explicitaram que temos subseções com IPS muito acima das demais localidades”, diz a diretora do Sindicato. “A administração atribui o alto desempenho a uma boa gestão, mas sabemos que esse índice é reflexo do trabalho excessivo e de jornadas exaustivas para quem desempenha atividades remotamente.”

A administração acabou recuando da aplicação imediata da Resolução 219, entre outros motivos porque considera a norma desatualizada diante da expansão do teletrabalho nos últimos anos.

“Mas o estudo não será inutilizado e servirá para a redistribuição, porque a administração quer enxugar o número de servidores, até por conta da questão orçamentária”, informa Karenina. “O desenho que está se mostrando é o do avanço das e-varas.”

O modelo das e-varas e das Centrais de Processamento Eletrônico (CPEs) já está em pleno funcionamento na JF Santos e desde a gestão anterior do Tribunal existe o projeto de expandi-lo para o restante da 3ª região. O Sindicato condena a forma como esse modelo é implantado: a partir do aproveitamento de servidores de outras unidades, sem a necessária reposição de quadros. “Não há critério objetivo sobre quem vai para e-vara e quem vai pra CPE, o que gera ainda mais casos de assédio moral, e o número de funções comissionadas nas CPEs é reduzido em relação à estrutura da e-vara”, acrescenta a diretora.

Justiça 4.0 e Juízo 100% Digital

As iniciativas de automação do Judiciário devem tornar ainda mais anacrônica a atual estrutura de carreiras do Judiciário, que a Fenajufe há anos tenta discutir com o CNJ, buscando reativar um grupo de trabalho sobre o tema.

Segundo Anna Karenina, nas e-varas “técnicos e analistas vão desempenhar atividades iguais, dificultando ainda mais estabelecer as atribuições de cada cargo”.

Outro diretor do Sintrajud, o servidor da JF Caraguatatuba Luiz Paiva, prevê um enxugamento do quadro de servidores, principalmente nas chamadas áreas “meio” ou não judicantes. “Atividades que envolvam repetição tendem a ser o foco do desenvolvimento de ferramentas automatizadas”, afirma. Grande parte da categoria vê nisso também uma porta aberta para a terceirização, pavimentando o terreno para a reforma administrativa que o governo Bolsonaro quer implementar.

No final de fevereiro, Paiva acompanhou o lançamento do Programa Justiça 4.0, uma parceria entre o Conselho Nacional de Justiça e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). No centro do Justiça 4.0 está o projeto Juízo 100% Digital, que visa transferir para o meio virtual procedimentos atualmente realizados nos fóruns, inclusive audiências e sessões de julgamento.

Outro componente é a Plataforma Digital do Poder Judiciário (PDPJ) que tem por objetivo colocar na nuvem os 47 sistemas de tramitação processual eletrônica desenvolvidos em todo o país de forma paralela ao PJe. A ideia é promover a colaboração entre os tribunais para continuar a desenvolver os sistemas e convergir para um sistema único, o que de certa forma corrobora críticas que juízes, advogados e servidores sempre fizeram à falta de uniformidade do PJe, entre outros problemas.

A previsão é que a plataforma esteja disponível na nuvem em agosto, incluindo ferramentas que possibilitam a leitura de documentos e a análise de textos em PDF e em outros formatos.

“A inteligência artificial é capaz de varrer e classificar um bloco de dados de petições iniciais, por exemplo, separando pedidos de justiça gratuita e pedidos de liminar, verificando se falta alguma peça processual, etc.”, explica Paiva. “A robotização, por sua vez, pode criar procedimentos automáticos que vão impactar muito áreas como protocolo, distribuição, contadoria, parte das atividades de secretaria e até dos oficiais de justiça”, acrescenta.

O diretor do Sintrajud adverte que os sistemas de inteligência artificial têm o risco de apresentar viés. São conhecidos os casos em que sistemas desse tipo, utilizados na segurança pública, mostraram a tendência de apontar indivíduos como suspeitos apenas pelo tipo físico ou pela cor da pele. “Não preciso nem dizer o que poderia acontecer em um sistema do Judiciário”, diz Paiva.

Robô no TRT-9 e Balcão Virtual no TRT-2

“Investir na automação de tarefas é uma forma de recuperar a força de trabalho perdida”, diz o juiz Bráulio Gabriel Gusmão, coordenador de projetos que desenvolvem robôs e outras tecnologias para o TRT-9 (Paraná).

Foto: TRT-9

Na última semana de janeiro, o Tribunal apresentou o Robô Judiciário 1, ou RJ-1, algoritmo capaz de agendar videoconferências, emitir certidões, enviar e-mail para os advogados e publicar intimações no Diário Eletrônico da Justiça. Com 204 cargos vagos e apenas cinco provimentos liberados pelo Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), o Tribunal espera que o robô possa suprir pelo menos parte da demanda de mão de obra.

No entanto, com a falta de concursos e o congelamento orçamentário dos tribunais (imposto pela Emenda Constitucional 95/2016), o enxugamento do quadro acaba sendo mais do que proporcional ao avanço da tecnologia.

Foi o que aconteceu no TRT-2, por exemplo, com a recente regulamentação do Balcão Virtual (plataforma de videoconferência para atendimento ao público). Alegando que não há dinheiro para equipar todas as secretarias de vara, a presidência do Tribunal decidiu que haverá um único Balcão Virtual, com apenas cinco servidores para fazer todo o atendimento da 2ª Região. “É mais uma política de precarização e de desmonte do órgão, que também abre a possibilidade de uma futura terceirização”, afirmou Ismael Souza, servidor do TRT-2 e diretor do Sintrajud.

O Tribunal está desocupando 11 andares do Edifício Millenium, como parte de um conjunto de obras que, segundo o diretor-geral de Administração, Rômulo Borges Araújo, leva em conta o “cenário de incertezas provocado pela pandemia e de expansão do trabalho remoto”.

Risco de colapso no TRE-SP

Os servidores do TRE-SP também estão preocupados com o grande esvaziamento que a Justiça Eleitoral no estado pode sofrer a partir da “devolução” dos servidores requisitados de outros órgãos, cedidos principalmente por prefeituras e pelo governo estadual. A medida atende a uma Resolução do TSE, depois que o Tribunal de Contas da União questionou a cessão prolongada desses servidores à Justiça Eleitoral.

Com o quadro de servidores ainda menor do que o da Justiça Trabalhista e o da Federal, o TRE-SP se vê diante da ameaça de falta de mão de obra para manter o funcionamento de muitos cartórios eleitorais. Grande parte dos servidores devolvidos nem terá a quem repassar o conhecimento das rotinas da Justiça Eleitoral que acumulou ao longo do tempo.

Reunião de diretores do Sintrajud e servidores de cartórios com o diretor-geral do TSE, Rui Oliveira, em 11 de março.

Embora sempre tenha criticado o uso de servidores requisitados em detrimento da realização de concursos, o Sintrajud vem chamando a atenção para o risco de colapso, que ameaça até a realização das eleições do próximo ano. Com representantes dos cartórios, o Sindicato levou essa preocupação a uma reunião com o diretor-geral do TSE nesta quinta-feira, 11.

O TRE, por sua vez, criou uma comissão para reorganizar a distribuição de cartórios eleitorais no interior, prevendo que vários deles serão extintos. Assim como nas reestruturações em andamento nos outros tribunais, o Regional não abriu espaço à participação dos servidores nas decisões sobre a mudança. Mais uma vez, a aposta parece ser de que a reestruturação e a tecnologia poderão compensar a falta de pessoal. A propósito, o TRE-DF anunciou no final do ano passado a adoção de um projeto piloto do Juízo 100% Digital.

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