Nos Jogos Olímpicos deste ano, o Brasil levou a Paris uma delegação majoritariamente feminina pela primeira vez e atletas negras ocuparam o lugar mais alto do pódio por três vezes em um mês (vôlei de praia, judô e ginástica de solo), evidenciando as questões raciais e de gênero no esporte de alto rendimento. Apesar das conquistas, a luta por representatividade social precisa estar associada a políticas públicas de acesso e incentivo ao esporte amador e profissional, com perspectiva de gênero e raça.
As mulheres são maioria no Brasil – 104,5 milhões de habitantes ou 51,5%, conforme o Censo 2022. A mudança pode ser percebida com o número de medalhas: das 20 conquistadas pelo país na Cidade Luz, 13 foram para atletas ou equipes femininas, o que dá 65% do total. As vitórias de Beatriz Souza (judô), Rebeca Andrade (ginástica) e Duda e Ana Patrícia (vôlei de praia) levaram ao centro do debate esportivo, a questão da mulher, o racismo e as desigualdades de classe. Rebeca e Bia se tornaram os maiores destaques da competição.
Constantemente palco de manifestações de combate ao preconceito racial, os esportes profissionais têm visto um crescimento alarmante de casos de racismo. Somente em 2019, os registros de injúria racial no futebol masculino cresceram a ponto de atingir o maior índice em cinco anos.
Nessas Olimpíadas o racismo se manifestou a exemplo do que ocorreu com a boxeadora argelina Imane Khelif, que foi vítima de uma onda de fake news transfóbica, no discurso de ódio contra islâmicos e na lamentável manifestação da seleção de futebol argentina para com os atletas imigrantes da França.
O capitalismo transforma as diferenças em desigualdades e opressão, hierarquizando e subjugando alguns em detrimento de outros. O machismo também está presente nos esportes de alto rendimento, como vem sendo denunciado por atletas não só durante as Olimpíadas, mas também na Copa do Mundo Feminina de 2023. A disparidade salarial entre homens e mulheres, de patrocínio, de uniformes e os casos de assédio enodoam as comemorações.
Pesquisa da CNN revelou que as jogadoras de futebol ganharam 25 centavos para cada dólar na modalidade masculino na última Copa do Mundo. Em 2019, ganhavam menos de oito centavos por cada dólar destinado aos jogadores homens, de acordo dados fornecidos pela FIFA e pelo sindicato global de jogadores (FIFPRO). Segundo o relatório, em geral, as melhores jogadoras recebem por ano o mesmo, ou menos, do que os jogadores de futebol masculino do mesmo nível recebem por mês.
Para além do pódio olímpico
Assistimos eufóricos aos Jogos Olímpicos em Paris. Vimos as medalhas conquistadas também por Rayssa Leal (Skate), Rafaela Silva (judô), Tatiana Weston-Webb (surfe), Bia Ferreira (bronze no boxe), Larissa Pimenta (judô), além do vôlei de quadra e da ginástica em grupo.
Rebeca, é, até o momento, a atleta que detém o recorde de medalhas conquistadas por uma só atleta brasileira. Torcemos e choramos que o futebol difundido por Marta não tenha chegado lá.
Mas, todas as atletas revelaram em entrevistas o racismo, as discriminações e a falta de apoio que sofrem no desenvolvimento de suas carreiras. Do mesmo modo, todas elas celebraram o fato de serem mulheres e negras. Os feitos não foram pouca coisa, ainda mais para um país que continua mantendo os maiores índices de feminicídio, particularmente contra as mulheres negras e de assassinatos de jovens negros.
Das diversas imagens emblemáticas dessas Olimpíadas, uma das cenas que entrou para a história foi o pódio da ginástica formado apenas por mulheres negras. A brasileira Rebeca Andrade reverenciada pelas norte-americanas Simone Biles e Jordan Chiles (então segundo e terceiro lugares, respectivamente) ao receber a medalha de ouro no solo da ginástica artística fará parte de toda documentação dos esportes olímpicos.
Uma mulher negra, de origem pobre e da periferia de Guarulhos (SP), aos 25 anos, é a maior medalhista da história do Brasil nas Olimpíadas. Isso por si só é um marco, mas não pode parar por aí, pois, aliado a esses números, somos um dos países que menos investe em esporte.
Rebeca, em uma das várias entrevistas concedidas, ressaltou a potência negra. “A gente tinha feito isso no Mundial, e poder repetir isso agora em uma Olimpíada, onde o mundo inteiro está vendo a gente, é mostrar a potência dos negros, mostrar que, independente das dificuldades, a gente pode, sim, fazer acontecer. Porque ou as pessoas aplaudem, ou elas engolem”. Uma medalha não é “apenas” uma medalha, é simbolicamente, junto às outras atletas, reescrever a própria história da Olimpíada.
Para Maristela Farias, na direção executiva do Quilombo Raça e Classe, ainda que seja uma grande conquista ver mulheres negras no pódio e isso signifique representatividade, a gente não pode naturalizar trajetórias de precariedade de atletas negros, com narrativas que romantizam a experiência de sofrimento. Para garantir atletas depois de Rebeca, deve haver políticas de esporte. “A inserção de negros e negras nos esportes é uma luta muito grande e desigual, que mesmo representando 56% da população, ainda é uma parcela muito ínfima de negros e pobres que chegam lá”, destacou.
Políticas públicas para o esporte
O sistema público de financiamento esportivo olímpico e paralímpico existente hoje foi desenvolvido entre 2003 e 2010. Os mecanismos que destinam a maioria dos recursos são a Lei de Loterias, que envia dinheiro diretamente para os comitês olímpico e paralímpico brasileiros e também para as confederações de cada esporte; a Lei de Incentivo ao Esporte, um mecanismo semelhante à Lei Rouanet, que permite que empresas façam renúncia fiscal para apoiar projetos esportivos; e o Bolsa Atleta, remuneração mensal de apenas R$ 3.100,00 para atletas que atingirem determinados resultados, começando no esporte juvenil de elite.
Em 2008, um programa sui generis foi criado para apoiar a carreira dos atletas de alto rendimento, o Programa Atletas de Alto Rendimento (PAAR) das Forças Armadas. Ele prevê que esportistas com chance de medalhas podem pleitear o ingresso no Exército, Marinha ou Aeronáutica para participar de competições militares. Para o atleta, isso garante soldo, aposentadoria e uso das instalações das Forças para treinos.
Todos esses incentivos, de forma geral, dizem os atletas, são insuficientes para o desenvolvimento do esporte.
Em 2016, o então presidente Michel Temer e o ministro da educação, José Mendonça Filho, apresentaram a Medida Provisória n.º 746/2016, que acabou com a obrigatoriedade das aulas de Educação Física no Ensino Médio, além das disciplinas de Artes, Filosofia e Sociologia. Criando mais um obstáculo para jovens da periferia e de baixa renda praticarem esportes de forma gratuita e com supervisão.
Para o instrutor de Capoeira Angola e servidor do TRT-2 Eduardo Galindo, o esporte precisa estar numa outra lógica que não a capitalista, que diz para as comunidades negras que essa é a chance de se “salvar”. “O papel do desporto, antes de tudo, é de propiciar sociabilização, trazendo um referencial de pertencimento, mas isso o esporte amador oferece”, disse, reforçando a necessidade de pensar as atividades físicas para além das práticas de alto rendimento.
Corroborando com a crítica, Maristela salientou que o ideal olímpico foi forjado como um instrumento do colonialismo, que determinou e segue determinando quais práticas corporais são aceitáveis e quais devem ser perseguidas e deslegitimadas, sendo também utilizado para proteger ideologicamente as potências globais e abrir novos mercados para a exploração. “Não por acaso, as imagens que mais nos emocionaram foram as de mulheres negras empunhando suas medalhas com lágrimas nos olhos, uma história de superação e resistência”, disse, lembrando que são as imagens de esperança em um país que não investe de forma suficiente no esporte. Essas atletas são a exceção que confirmam a regra.