Oficialas de justiça denunciam cotidiano de violência no trabalho


25/11/2019 - helio batista

O Sintrajud iniciou nesta semana a programação dos “21 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres”, com eventos na Justiça Federal, na Justiça Trabalhista, na sede do Sindicato e na subsede, em Santos. As atividades reforçam o compromisso do Sindicato com a luta para combater esse tipo de violência e o machismo, na sociedade em geral e no Judiciário.

Entre as servidoras do Judiciário Federal, as oficialas de justiça estão entre as mais expostas à violência em seu trabalho cotidiano, num contexto de agressões verbais e físicas dirigidas a esse segmento da categoria.

O problema vem se agravando nos últimos anos, com a deterioração da segurança pública, o crescimento da violência machista e a disseminação da retórica de ataque ao funcionalismo. Os oficiais e as oficialas da Justiça Trabalhista passaram a se ver atingidos também por conta do discurso do atual governo contra esse ramo do Judiciário.

“A violência contra o oficial de justiça passa pela sensação que as pessoas têm da falta de presença do Estado, da ausência de punibilidade e da mensagem que o governo Bolsonaro envia quando fomenta a violência como modo de solução de conflitos”, aponta a diretora do Sintrajud Lynira Sardinha, oficiala aposentada da JT Cubatão.

“Quando um Presidente da República e um ministro da Economia dizem que a Justiça do Trabalho só atrapalha a economia, passamos a ouvir com mais frequência na rua que essa Justiça não merece respeito e que precisa mesmo acabar”, observa Cláudia Barros, oficiala do TRT-2.

“Desrespeito”

Dinah Noleto. (Foto: Joca Duarte)

Embora enfrentem as mesmas situações de violência que afetam a rotina de seus colegas, as oficialas são ainda mais visadas e vulneráveis. “Os homens atacam mais as mulheres, só por serem mulheres”, afirma Ana Sílvia Poço, da Ceuni/JF e diretora de base.

“Desde que entrei na JF, em 1994, observei que o respeito maior era sempre direcionado aos homens”, conta a oficiala Dinah Noleto.

“Com homem, também há violência e tentativa de intimidação, mas acredito que seja menor”, observa Cláudia Leal, outra oficiala do TRT-2. “Quando algo acontece, a gente pede para um colega ir junto, normalmente homem. Trabalhei por quatro anos e meio no Depósito Judicial, em dupla com um oficial; toda vez que tentavam nos intimidar, as pessoas se direcionavam primeiro a mim.”

Além das agressões, as oficialas se deparam com o assédio sexual, mas as servidoras entrevistadas pelo Sintrajud disseram ter conseguido se desvencilhar mais facilmente dessa situação. “Já encontrei pessoas inconvenientes, que passam do limite, mas nesse caso o fato de podermos usar certa ‘autoridade’ como servidoras públicas nos ajuda”, relata Cláudia Barros.

Ana Sílvia Poço

Com 20 anos de atividade na JF, Ana Sílvia ouviu de jurisdicionados várias frases e expressões ofensivas, aludindo diretamente à condição feminina. “Isso acontece muito com as mulheres”, aponta a servidora. Um homem disse que ela era “muito rodada” e outro a qualificou de “bonitinha” em um comentário para o oficial que a acompanhava. “Já aconteceu de ficarem me ligando para passar cantadas”, acrescenta.

“Situações tensas”

O maior perigo, no entanto, resulta de quem quer confrontar a Justiça e vê nas oficialas uma representação frágil do aparato estatal. Servidoras que cumprem diligências em áreas com altos índices de criminalidade enfrentam esse risco de forma constante.

Cláudia Morais

“Vivi situações tensas; por exemplo: pessoas que pareciam ser ‘olheiras’ do tráfico na comunidade só saíram do local onde eu estava depois de eu passar e a esposa do reclamado dar sinal de ‘ok’ para elas”, relata a oficiala do TRT-2 Cláudia Morais, diretora do Sintrajud.

Histórias semelhantes fazem parte da rotina de Cláudia Leal, que desde 2016 cobre o distrito da Brasilândia, um dos mais violentos da capital paulista. “No começo, durante cerca de três meses, fui ‘entrevistada’: era comum chegar a algum lugar das favelas e alguém perguntar quem eu era e o que eu estava fazendo ali”, lembra.

Em tais situações, Cláudia Leal prefere dizer a verdade, mas ela conta que alguns colegas se sentem mais seguros mentindo, para esconder que são oficiais de justiça. “Acredito que não vai dar muito certo quando eu tiver de voltar lá, se eu mentir e as pessoas descobrirem.”

Estratégias

As violências, ressalte-se, não acontecem apenas nas áreas mais pobres das cidades. O Sintrajud já recebeu relatos de ataques a oficiais – homens e mulheres – em áreas de alto padrão financeiro.  Não há uma relação direta entre as áreas de risco para as oficialas e os locais da cidade considerados violentos. “Há regiões que são abandonadas pelo estado, mas a violência não vem só dessas regiões, e sim dos executados”, ressalva Cláudia Barros.

“Por incrível que pareça, acho que é mais fácil eu ser assaltada numa área rica”, afirma Cláudia Leal, que também já trabalhou no Morumbi. “Todas as casas que visitei lá tinham sido assaltadas”, recorda.

A servidora lembra casos de violência contra oficialas que ocorreram em áreas nobres da cidade, como aconteceu com a oficiala do TRT-2 Júlia Cristina Santos Fonseca, agredida em julho ao cumprir mandado no Pacaembu. Já na Brasilândia, Cláudia Leal nunca mais foi interrogada e hoje em dia circula com mais tranquilidade pelo distrito. “Vamos aprendendo a lidar com as pessoas e a reconhecer sinais de perigo”, afirma.

Outras oficialas também desenvolveram suas próprias estratégias para enfrentar os riscos da atividade. Ana Sílvia, por exemplo, diz que evita entrar em apartamentos. Nas diligências que considera perigosas, ela procura ir acompanhada de algum colega, homem ou mulher. A servidora da Ceuni/JF reconhece, porém, que está se tornando cada vez mais difícil adotar essa medida diante do déficit de pessoal nos tribunais.

“Eu sempre trabalhava em dupla, mas há dois anos estou sozinha, o que sempre achei mais difícil”, conta a oficiala do TRT-2 Rita de Cássia Carrillo.

Medidas preventivas

Sem orçamento para realizar concursos, preencher cargos vagos e ampliar o número de oficiais, tanto a Justiça Federal como a Trabalhista veem esses servidores e servidoras cada vez mais sobrecarregados, em meio a um número crescente de aposentadorias e licenças médicas. Neste ano, para amenizar o problema, o TRF-3 teve de aproveitar oficiais aprovados em um concurso do TRT-2, após pressão dos próprios servidores, das entidades de oficiais de justiça e do Sintrajud.

Diretores do Sintrajud e coordenador da Assojaf-SP (à esq.) em reunião na Ceuni/JF (Foto: Joca Duarte)

O Sindicato e as demais entidades também estão intensificando a mobilização para convencer as administrações a adotar medidas preventivas.

“Os oficiais mais novos não têm consciência do risco que correm; por isso a nossa preocupação (do Sintrajud e da Assojaf) de que os tribunais tenham um banco de dados”, afirma Dinah Noleto, da JF.

Segundo a oficiala do TRT-2 Rita de Cássia Carrillo, são justamente os oficiais mais novos que acabam ficando com as áreas mais difíceis. “Os mais antigos é que nos ensinavam como ir a esses locais”, conta. Há dois anos, entretanto, uma medida tomada pela presidência do Tribunal (Ato GP 05/2017) deslocou oficiais da Central de Mandados para as varas. “Muitos começaram a trabalhar diretamente nas varas e quando pegam esses mandados não sabem como fazer”, afirma Rita.

Para orientar os oficiais e oficialas, Ana Sílvia e Dinah Noleto consideram que o mapeamento das áreas com maior número de ocorrências seria uma boa providência. “Quando um oficial tivesse de ir a uma área perigosa, ele poderia consultar o banco de dados, recusar a diligência ou pedir reforço policial”, sugere Dinah.

Na avaliação de Cláudia Leal, porém, o mapeamento só terá efetividade se vier acompanhado de outras medidas. “Se eu não tiver ajuda, prefiro nem saber que se trata de uma área perigosa”, diz. Para a oficiala do TRT-2, o ideal seria o acompanhamento por agentes de segurança, que até já saberiam quais são os locais mais arriscados.

Outra medida proposta pelos servidores é a citação por meio de edital ou pelos correios, especialmente em áreas de difícil acesso. “Em inúmeras vezes, fui a lugares quase inacessíveis e a pessoa já tinha recebido a citação pelos correios”, diz Cláudia Leal.

Audiência no Senado discutiu atividade de risco das oficialas

Os riscos enfrentados pelas oficialas foram tema de audiência pública realizada no dia 12 de novembro pela Comissão Permanente Mista de Combate à Violência contra a Mulher do Senado Federal.

Proposta pela senadora Zenaide Maia (Pros/RN), a audiência foi acompanhada por representantes do segmento em São Paulo, como a oficiala do TRT-2 Matilde Gouveia, o coordenador da Fenajufe Erlon Sampaio (oficial da Ceuni/JF) e o coordenador jurídico da associação dos oficiais de justiça de São Paulo (Assojaf-SP), Marcos Trombeta.

A mesa de debates foi composta pelas oficialas Mariana Líria, diretora da federação nacional dos oficiais de justiça (Fenassojaf); Fernanda Garcia Gomes, representante da Federação das Entidades Sindicais de Oficiais de Justiça do Brasil (Fesojus) e Renata Dornelles, do TJDFT. A advogada Cristina Alves Tubino falou em nome da Comissão Nacional da Mulher Advogada do Conselho Federal da OAB e o CNJ foi representado pela conselheira Ivana Farina.

A íntegra da audiência pública pode ser vista aqui.

O que são os “21 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres”

O período entre 25 de novembro, Dia Internacional de Combate à Violência contra a Mulher, e 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos, é reconhecido pela ONU como sendo de mobilização para erradicar as diversas formas de violência de gênero.

No Brasil, o início da agenda foi antecipado para 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, formando os 21 dias de ativismo, já que as mulheres negras são as mais atingidas. O calendário inclui ainda o 6 de dezembro, Dia Nacional de Mobilização dos Homens pelo Fim da Violência contra as Mulheres, criado a partir do movimento internacional Campanha do Laço Branco, que visa fomentar a igualdade de gênero e uma nova visão sobre a masculinidade.

O Sindicato vem desenvolvendo ações para alertar a sociedade e combater a violência contra as mulheres em geral, particularmente as que trabalham no Judiciário. Nesse sentido, a entidade realizou campanhas e lançou cartilhas contra o assédio sexual, criou o Coletivo de Mulheres e luta por melhores condições de trabalho para as servidoras.

Histórias de risco das oficialas

“Fui citar um homem e ele me tratou muito mal. Tive que voltar para penhorar e pedi ajuda aos colegas homens. Por sorte, nem precisei: um dia, passando na frente da casa dele, vi a esposa no portão. Desci do carro e ela me atendeu muito bem. Fiz a diligência sozinha e tranquila.“ (Cláudia Leal)

“Fui citar uma jornalista e ela me levou para um lugar fora das câmeras de vigilância. Um grampo caiu do mandado e ela disse ‘faça o favor de pegar agora, porque você não está na sua casa’. Fiquei com medo de me abaixar e sofrer uma agressão […]. Depois de assinar o mandado, ela não quis me devolver. Ameacei chamar a polícia e ela jogou o documento no meu rosto.” (Dinah Noleto)

“As mulheres normalmente só brigam com mulheres. No Depósito Judicial, eu tinha essa percepção bem clara. Sempre que dava confusão, as mulheres vinham para cima de mim. Os homens também. Mas homem briga com homem também.” (Cláudia Leal)

“Um homem, muito bravo, gravou no celular toda a intimação. Depois me mandou a gravação. Achei que foi uma ameaça e que não teria acontecido se eu fosse homem.” (Ana Sílvia Poço)

“Há cerca de dois meses, na Avenida Paulista, incomodada com a demora na recepção de um edifício, uma pessoa que estava atrás de mim na fila passou a me ofender pelo fato de eu ser mulher e ser funcionária pública.” (Cláudia Barros)

“Fui trancada em um imóvel comercial junto com a reclamante. O oficial que me acompanhava ficou do lado de fora. A pessoa que baixou a porta do imóvel disse para a reclamante: ‘se você continuar com isso, vai acabar como seu irmão’. O irmão dela tinha sido assassinado. Levei quatro horas para contornar a situação.” (Rita de Cássia Carrillo)

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