O que o Ato 353/2018 do TST evidencia sobre o Judiciário?


07/08/2018 - Luciana Araujo

Enquanto o país voltava suas atenções ao debate sobre a descriminalização da interrupção voluntária de gravidezes até a 12ª semana, acompanhando a audiência pública convocada pelo Supremo Tribunal Federal para embasar o julgamento da ADPF 442, um Ato do presidente do Tribunal Superior do Trabalho, ministro Brito Pereira, expedido na sexta-feira (04 de agosto), virou notícia nos principais veículos de comunicação. A normativa foi apontada como ‘polêmica’, ‘machista’, ‘elitista’ e ‘retrógrada’ por exigir “decoro e asseio” aos frequentadores do Tribunal, e proibir expressamente o uso de blusas “decotadas”, roupas com transparências, calças jeans claras, camisetas tipo t-shirt, tênis e sandálias “rasteiras”.

Embora mencione homens e mulheres, o texto é evidentemente voltado ao controle do que seria considerado ‘decoroso’ no comportamento e vestimenta delas. No que se refere ao padrão de trajes masculinos, o Ato TST/GP 353 evidencia ainda uma perspectiva elitista ao ressaltar que as normas atenderiam a um padrão de limpeza, e proibir até mesmo o uso de tênis, inclusive para estagiários, adolescentes aprendizes e visitantes do Tribunal.

Diante do escândalo causado, a normativa durou pouco mais de 72 horas. Nesta segunda-feira (6) foi encaminhado para publicação o ato revogatório da norma. De acordo com a assessoria de comunicação do TST, o próprio presidente teria reconhecido que “a revogação é necessária para evitar equívocos e constrangimentos”.

“Ao usar termos como “decoro”, “asseio”, associando estes conceitos ao respeito à instituição, o Judiciário dissemina preconceitos e discriminação. Só faltou dizer que as mulheres têm que voltar a dormir de touca. E os estagiários, que são obrigados a assistirem sessões de plenário para sua formação? E os aprendizes? Nem todo mundo tem dinheiro para compra de traje completo social. Em relação às roupas femininas, a concepção do Ato justifica todo um discurso de culpabilização da mulher. Os homens no Judiciário não podem se controlar ao ver os pés de uma mulher ‘expostos’ numa sandália? É uma visão extremamente machista. No momento em que o Judiciário está debatendo sobre o limite da autonomia do corpo das mulheres, este tipo de ato reafirma a ideia de que ‘vocês não são donas de seus corpos, nós é quem ditamos as regras'”, aponta a diretora do Sintrajud e servidora do TRF Luciana Carneiro.

“É impressionante que, com todo o avanço pregado, de que a sociedade se abriu e a mulher não seria mais oprimida, a gente tenha o presidente de um Tribunal que está ameaçado de extinção mais preocupado com as vestimentas, especialmente as das mulheres, do que com essas questões”, avalia a também diretora do Sindicato e servidora aposentada da JF Fausta Fernandes.

Para Larissa Chryssafidis, servidora do TRT-2 e integrante do Coletivo de Mulheres do Sintrajud, o ato “é um absurdo! Imaginemos as orientações, por exemplo, à segurança, sobre o que seriam as condições necessárias de “asseio”! O mundo e a sociedade o tempo inteiro tentam falar para a gente que têm o controle sobre nós [mulheres]. Toda vez que andamos nas ruas não estamos seguras. Os homens se sentem à vontade para mexer, passar a mão. A gente vive com medo de ser estuprada. Nem em casa a gente está segura, como mostram os dados da violência doméstica. Outra situação muito importante de ser destacada [e que ocorre no âmbito do sistema de justiça] é a revista vexatória, a que são submetidas as mulheres e que é um procedimento completamente desnecessário, mas que mais uma vez é o Estado nos dizendo que o nosso corpo não importa, que ele pode determinar o que ele quiser. Esse ato tem muito esse sentido. Um presidente de um tribunal, da mais alta Corte da Justiça do Trabalho no Brasil, falando o que seria adequado ou não sem nenhum argumento jurídico para isso. E sem nenhuma razão”.

Conservadorismo e machismo: temas necessários de serem enfrentados no Judiciário

Apesar recuo de Pereira, salta aos olhos que a norma editada pela Presidência da mais alta corte trabalhista nacional não configura mero equívoco ou conservadorismo individual. Embora hoje o STF, a Procuradoria Geral da República, o Superior Tribunal de Justiça e a Advocacia Geral da União sejam comandados por mulheres, também pela primeira vez na história do Brasil, o machismo nas instituições jurídicas vem sendo cada vez mais apontado por elas.

De acordo com os dados do Conselho Nacional de Justiça, 82% dos ministros de tribunais superiores são homens. E o Judiciário Federal brasileiro é pródigo exemplos de machismo. Estudo apresentado em 2014 pela então conselheira do CNJ Deborah Ciocci em seminário realizado pela Escola Paulista da Magistratura estadual, ressaltava que o Brasil conheceu a primeira juíza em 1939. Nos Estados Unidos, a primeira magistrada foi nomeada no ano de 1870.

Só em 1999 o Superior Tribunal de Justiça viu tomar lugar em seus quadros uma representante de mais de metade da população, a ministra Eliana Calmon. No ano 2000 uma mulher ascendeu pela primeira vez à composição dos ministros do Supremo Tribunal Federal, com a nomeação de Ellen Gracie Northfleet. Passados 18 anos, o plenário da Suprema Corte conta apenas duas ministras.

E elas encaram cotidianamente situações inimagináveis para os integrantes homens. Em 2007, uma notícia inusitada chamou a atenção nos principais veículos de comunicação do país. Em 15 de fevereiro, pela primeira vez em 200 anos de existência, uma mulher compareceu à sessão do STF vestindo calça comprida. Coube à ministra Cármen Lúcia o ineditismo da aplicação de um procedimento autorizado em 1997 (até então mulheres só entravam no plenário do STF se trajassem saia ou vestido).

Em maio de 2017, Cármen Lúcia voltou a constranger a maioria masculina no plenário ressaltando o quanto ela e Rosa Weber são muito mais interrompidas que os ministros. Na oportunidade, Cármen destacou que pesquisa feita à época pela Northwestern Pritzker School of Law, sediada em Chicago, apontava que nos Estados Unidos em todas as cortes constitucionais onde há mulheres elas são 18 vezes mais aparteadas que os ministros. Corrigindo o ministro Luiz Fux, que afirmara que “concederia” o tempo a Rosa Weber quando na verdade era a vez da ministra proferir seu voto no julgamento em questão, Cármen Lúcia ressaltou que a diferença no Supremo brasileiro é que aqui “não nos deixam falar”. No Dia Internacional da Mulher do ano passado, novamente a atual ocupante da Presidência do STF rebateu uma felicitação do ministro Roberto Barroso dirigida a ela e a Rosa Weber lembrando que as mulheres têm um só dia em sua homenagem enquanto os homens têm “todos os outros”.

Em fevereiro deste ano, quando do lançamento da pesquisa sobre o perfil das associadas à Ajufe (Associação dos Juízes Federais), o site noticioso ‘Poder 360’ destacou que o TRF-5 (que tem jurisdição sobre os estados de Alagoas, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe) jamais admitiu uma magistrada de carreira.

No Ministério Público também há exemplos gritantes do machismo num ambiente onde deveria primar a garantia do respeito às leis e ao Direito. Em 2016, o promotor Alexandre Joppert escandalizou o país ao comentar, na condição de examinador durante a aplicação de prova oral num concurso para ingresso no Ministério Público do Rio de Janeiro, que num caso de estupro coletivo o autor que efetivamente perpetrava o ato “ficou com a melhor parte, dependendo da vítima”. O episódio ocorreu enquanto ainda repercutia na mídia o caso da adolescente violentada por 33 homens numa favela da capital fluminense. Joppert chegou a sofrer processo administrativo e teria sido punido. A sanção, no entanto, não foi publicizada porque o processo correu em segredo de justiça.

Apesar dos avanços conquistados pelas mulheres na sociedade brasileira, os exemplos demonstram a importância de debater a questão do machismo, do racismo e do elitismo que norteiam a concepção do Judiciário brasileiro. O Sintrajud vem buscando avançar neste debate com a organização do Coletivo de Mulheres do sindicato, que realiza reuniões bimestrais abertas a todas as mulheres da categoria e terceirizadas. O próximo encontro do Coletivo, que também impulsiona uma campanha contra o assédio sexual no Judiciário Federal em São Paulo, acontece no dia 18 de agosto.

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