Nos 50 anos do AI-5, servidores contam lembranças do “golpe dentro do golpe”


14/12/2018 - helio batista

Foto: Jesus Carlos

Considerado como o “golpe dentro do golpe” e marco inicial do período mais violento da ditadura, o AI-5 acaba de completar meio século. Foi numa sexta-feira, 13 de dezembro de 1968, que 16 ministros e o então presidente da República, Arthur da Costa e Silva, assinaram o Ato Institucional para dar ao Executivo o poder de cassar mandatos parlamentares, suspender direitos políticos, proibir reuniões, fechar o Congresso e aposentar compulsoriamente ministros do STF.

Em seus 12 artigos, o Ato deu sequência à eliminação das liberdades individuais iniciada em 1964, retirando o habeas corpus “nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”. Além disso, determinou que as ações do Executivo baseadas no próprio AI-5 ficariam isentas de “apreciação judicial” – ou seja, o regime se desatava das últimas rédeas para cometer as maiores atrocidades.

E elas foram cometidas: até ser revogado pelo presidente Ernesto Geisel, em dezembro de 1978, o AI-5 deu “legalidade” a prisões arbitrárias, torturas, assassinatos, cassações, aposentadorias e remoções compulsórias, demissões, censura, fechamento de sindicatos e de órgãos de imprensa, entre outras medidas.

STF: aposentadorias e renúncias

“Nesse longo período, esse instrumento de dominação/coerção puniu milhares de funcionários públicos (civis e militares), professores, membros do Poder Judiciário, profissionais liberais, cassou centenas de mandatos populares (30 prefeitos, 113 deputados federais e senadores, 190 deputados estaduais e 38 vereadores), censurou 200 livros, mais de 500 filmes e mais de 450 peças teatrais”, contabilizou o cientista político Milton Pinheiro, pesquisador da Universidade do Estado da Bahia, em artigo para o blog da Editora Boitempo.

No STF, os ministros Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva foram aposentados em janeiro de 1969. Receberam a solidariedade dos ministros Lafayette de Andrade e Gonçalves de Oliveira, que estava há pouco mais de um mês na presidência da Corte. Ambos renunciaram, deixando o Supremo de volta à formação com 11 ministros, que seria mantida pelo Ato Institucional nº 6, também de 1969.

Os militares haviam aumentado o número de ministros do STF de 11 para 16 em 1965, com o Ato Institucional nº 2, a fim de dar maioria para o governo na composição da Corte, em manobra semelhante à que o futuro presidente Jair Bolsonaro chegou a propor durante a campanha eleitoral.

“Cadeira do dragão”

Quanto aos mortos e desaparecidos, o número exato talvez nunca seja conhecido. Mesmo assim, o grau  de sofisticação e crueldade da violência do Estado pode ser medido pelo relato dos sobreviventes.

Joel de Andrade Teixeira. Foto: Jesus Carlos.

Por volta de 6 horas do dia 16 de abril de 1975, agentes da repressão chegaram à casa de Joel de Andrade Teixeira, então funcionário da companhia aérea Transbrasil e militante do PCB. Delatado por um aeronauta que havia sido preso, Joel foi levado ao DOI-Codi, conhecido centro de torturas que funcionava na rua Tutóia, então sob a chefia do coronel José de Barros Paes.

Até o ano anterior, quem comandava o DOI-Codi era o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, primeiro militar reconhecido pela Justiça como torturador, mas que Bolsonaro considera um “herói”.

No DOI-Codi, Joel Teixeira foi submetido ao pau-de-arara e à “cadeira do dragão”, uma espécie de cadeira elétrica rudimentar, onde o preso recebia choques. Também sofreu com os “telefones”: por causa desses tapas na orelha, perdeu parte da audição.

Joel hoje é servidor aposentado da Justiça Federal.

“Eu usava o nome de guerra de ‘João’, que era também o nome de um secretário do [Luís Carlos] Prestes”, conta o servidor aposentado. “Acharam que eu era esse secretário ou talvez quisessem que eu me passasse por ele. As torturas eram todos os dias e o dia todo: depois que uma equipe terminava, vinha outra.”

O “tranquilo” Vlado

Joel ficou preso por cerca de um mês. Ao sair, perdeu o emprego na Transbrasil. Em outubro daquele ano, outro militante do PCB também esteve no DOI-Codi e teve destino ainda pior: o jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, apresentou-se para depor e foi encontrado morto na cela, no dia seguinte. A famosa foto do preso pendurado pelo pescoço no próprio cinto, amarrado nas grades da cela, foi como uma “fake news” da época, sendo divulgada para sustentar a versão oficial de que ele cometera suicídio.

O servidor aposentado do TRE Márcio Lóis conviveu com Vlado no Colégio Estadual Presidente Roosevelt, na rua São Joaquim, onde cursaram em turmas diferentes o antigo curso “Científico” (equivalente ao ensino médio). Embora preocupado com o país, era um rapaz tranquilo, segundo o colega.

Márcio Lóis. Foto: Jesus Carlos

“Ele procurou encontrar alguma forma de chamar a atenção dos indiferentes, dos apáticos, dos passivos, mas não me lembro de nenhuma atitude mais radical”, diz o servidor. “Os que partiram para a luta armada, como o [Carlos] Marighella, eram pouquíssimos.”

Joel Teixeira concorda com essa avaliação. “Quem estava na luta armada eram os que seguiam a linha do Marighella; eu fiquei com a linha do Prestes. Só fazíamos reuniões e pichávamos muros com a frase ‘Abaixo a ditadura’, mas a repressão veio para todo mundo”, recorda o ex-militante do PCB.

Os dias de Erasmo

“Os militares só ficaram tanto tempo no poder porque a população, se não dava apoio explícito, também não fazia muita oposição, até porque a repressão fazia as pessoas se retraírem”, opina Márcio Lóis.

Quem tentou furar o bloqueio foi severamente punido. Em setembro de 1977, por exemplo, um então funcionário da Pontifícia Universidade Católica (PUC), nas Perdizes, viu uma assembleia de estudantes, colegas trabalhadores da Universidade e professores ser interrompida pelas bombas de gás lacrimogêneo da Polícia Militar. Eram ordens do coronel Erasmo Dias, secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo.

Milton Cordoni.

“Ele mandou apagar as luzes do bairro”, lembra Milton Cordoni, que hoje é servidor do TRF-3 e diretor de base do Sintrajud. “Prenderam todos como se fossem criminosos, encheram caminhões com folhas de sulfite em branco, apreendidas como se fosse material subversivo. As bombas de gás lacrimogêneo queimavam e tem gente fazendo tratamento até hoje”, relata.

Essa escalada de violência faz parte de uma história que continua sendo escrita e reescrita. Na última terça-feira (12 de dezembro), o general do Exército Augusto Heleno, futuro ministro do Gabinete de Segurança Institucional, disse numa entrevista ao programa Conversa com Bial, da Rede Globo: “é a primeira vez, nos últimos 50 anos, que se tem uma sensação de mudança”.  O marco temporal sugere que, para o general, a mudança mais importante no país antes do governo Jair Bolsonaro foi a edição do Ato Institucional nº 5.

Íntegra do AI-5

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