Negligência e modelo de ‘desenvolvimento’ são as causas de tragédias como a do RS


20/05/2024 - Luciana Araujo
Medidas permanentes são necessárias, assim como a mudança do padrão de produção e consumo; o negacionismo torna desastres parte da realidade.

Cidades gaúchas ficaram submersas (Foto: Diego Vara/Agência Brasil).

A tragédia gaúcha tem imposto o debate sobre as mudanças e a emergência climáticas, apesar da resistência de prefeitos e  governadores, e da tolerância do governo Lula/Alckmin com o avanço do agronegócio e da exploração de combustíveis fósseis. E quem paga a conta é a população, especialmente as camadas mais pobres, em geral negra e feminina.

Não à toa, além da tragédia em si, o trabalho de solidariedade teve que incluir a criação de abrigos somente para mulheres e seus filhos, após denúncias de crimes sexuais nos espaços mistos. O Observatório das Metrópoles da UFRGS também divulgou mapa mostrando que as áreas mais pobres e negras do estado foram as mais afetadas nesta tragédia. Neste domingo, o jornal ‘Folha de S.Paulo’ divulgou entrevista em vídeo com o governador gaúcho Eduardo Leite (PSDB) que admitiu ter sido alertado sobre os riscos climáticos, mas afirmou que sua gestão tinha “outras agendas”, especialmente o ajuste fiscal.

Apesar dos muitos discursos governamentais, o que se vê, na prática, é a manutenção de padrões de consumo e produção que mantêm armada a bomba relógio das próximas catástrofes, e medidas de enfrentamento insuficientes. Agora mesmo, no Rio Grande do Sul, as medidas anunciadas pelo governo federal vêm sendo criticadas pela Campanha “Auxílio Calamidade Climática”, apoiada e assinada por mais de 100 organizações, entre elas o Jubileu Brasil e a Auditoria Cidadã da Dívida. As entidades apontam que as ações não são suficientes para amparar as vítimas da calamidade, porque são localizadas e temporárias. A Campanha propõe a instituição de um Auxílio Calamidade Climática, como política pública nacional permanente que “poderia ser acionada todas as vezes que um território sofre com impactos causados pelas mudanças climáticas”, afirma a Rede Jubileu. O arcabouço fiscal engessa investimentos necessários.

“Anistiar o pagamento da dívida do estado é fundamental para reconstruir o Rio Grande do Sul. Infelizmente, o Congresso aprovou apenasa suspender os pagamentos por três anos. E ainda querem aproveitar a catástrofe para aumentar os lucros dos bancos. Um absurdo. Temos q denunciar mais esse crime do governo e do Congresso Nacional”, afirma a dirigente do Sindicato Ana Luiza de Figueiredo. Ela se refere a outro alerta da Auditoria Cidadã, de que pode ser votado no plenário da Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Complementar (PLP) 459/2017, que autoriza a antecipação de receitas futuras a bancos privados, com deságio.

Ana também ressalta que a Sabesp, que o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) quer privatizar, foi a única companhia de saneamento a entrar no esforço de envio de água potável e bombas para escoamento de água à população de Porto Alegre. “É momento de debater o problema da reconstrução, discutir como vão ser utilizados os recursos públicos. Se para o povo pobre ou para as grandes empresas. E também discutir as privatizações que acabam com a infraestrutura. Não é à toa que agora é a Sabesp que está mandando bombas para retirar água no Sul, onde tudo foi privatizado”, afirma.

Desastres se alastram pelo país

Embora o Rio Grande do Sul seja no momento o estado mais afetado numa cheia histórica, a crise é nacional e internacional.

No estado do Maranhão, 31 das 217 cidades registraram situação de emergência desde 22 de abril, quando começaram as chuvas, e em Santa Inês foi decretada calamidade pública. A Agência Pública apurou junto à Defesa Civil do estado que, apesar do governador Carlos Orleans (PSB) negar, 1.031 famílias desabrigadas e outras 2.909 desalojadas. Em meio ao caos, Orleans participou da abertura de uma feira do agronegócio, um dos setores mais responsáveis pelos impactos climáticos no país. No ano de 2021, o agro gerou 73,7% das emissões de gases de efeito estufa em razão do desmatamento para pastagens e lavouras, de acordo com o Observatório do Clima.

O Rio de Janeiro, que ainda reconstrói a cidade serrana de Petrópolis após a tragédia que matou 240 pessoas em 2022, novamente registrou alagamentos em janeiro deste ano. O primeiro mês de 2024 foi o mais chuvoso em na capital em 27 anos, segundo o sistema de alertas meteorológicos municipal. No dia 22 de março, a prefeitura de Eduardo Paes (PSD) decretou ponto facultativo por medo das chuvas.

Em Santa Catarina foram registrados alagamentos em Sombrio, Balneário Gaivota e Jacinto Machado, de acordo com levantamento do G1. Mais de 900 pessoas tiveram que deixar suas casas nos três dias anteriores à publicação deste texto.

Em Minas Gerais, palco das tragédias de Mariana (2015) e Brumadinho (2019), e dos alagamentos que em 2022 atingiram 435 municípios, 102 cidades decretaram situação de anormalidade entre 27 de setembro de 2023 e 31 de março de 2024. Apesar da redução de desalojamentos em relação às enchentes de 2022/2023, 2.833 pessoas foram desalojadas, 399 ficaram desabrigadas e seis morreram em decorrência das chuvas no estado — como informou a agência de notícias governamental. Em audiência na Assembleia Legislativa mineira na semana passada, o vice-presidente do Fórum Permanente do São Francisco, Júlio César Dutra Grillo, destacou que muitas das 350 barragens de mineradoras no estado não suportariam o peso de chuvas similares às que ocorrem no Sul do país, podendo romper.

Emergência exige adaptação climática

Entre 2013 e 2022, algum tipo de desastre natural classificado como “emergência” ou “estado de calamidade pública” foi registrado em 93% (5.199) das cidades brasileiras, segundo dados da Confederação Nacional dos Municípios. E 2023 havia sido um ano de recordes de desastres associados a chuvas — foram registrados 716 transbordamentos de rios e 445 deslizamentos de terra ou movimentação de solo (como no caso de Maceió, capital do estado de Alagoas), desalojando 524.863 pessoas, desabringando 74.787 e matando 132. Por outro lado, a onda de calor entre setembro e dezembro levou o país a registrar as mais altas temperaturas histórica.

Mas, evidenciando a emergência climática que alguns teimam e negar, somente nas duas semanas de chuvas no Rio Grande do Sul em 2024 morreram 157 pessoas até a publicação deste texto. Além disso, 618 mil já tinham sido obrigadas a deixar suas casas, 540 mil estavam desalojadas, 78 estavam em abrigos e eram computados mais 2,3 milhões de afetados segundo levantamento produzido pelo G1/RBS TV.

De acordo com a Agência Senado, o desastre gaúcho já exigiu 15,8% dos R$ 76,8 bilhões em recursos extraordinários emergenciais destinados a socorrer populações castigadas por enchentes nos últimos 24 anos.

A recorrência cada vez maior de eventos como os que vêm destruindo o Rio Grande do Sul são previstas por especialistas há anos, mas governos em nível municipal, estadual e federal têm sido diretamente agentes de desmatamento e liberação de empreendimentos que afetam o meio ambiente, assoreiam corpos d’água (rios, lagos, lagoas, açudes etc) e contribuem para a elevação da temperatura global. A única certeza com a manutenção destas políticas é que novos desastres virão de forma cada vez menos espaçada e com novos recordes de desgraças.

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