“Meta é sairmos vivos dessa crise”, afirma sociólogo contra metas do teletrabalho na pandemia


22/04/2020 - Luciana Araujo
Bate-papo virtual com o sociólogo abordou pandemia, trabalho remoto e contratado por plataformas, além de debate sobre perspectivas para os trabalhadores. 

“Nossa meta hoje é sairmos vivos dessa crise, não só eu, você, nós, mas a classe que vive do trabalho.” Assim o sociólogo e professor Ricardo Antunes, titular do departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, encerrou sua participação na décima transmissão ao vivo realizada pelo Sintrajud desde que teve início a quarentena de distanciamento social imposta pela pandemia do novo coronavírus.

A postura incisiva do professor reflete a necessidade de resposta que uma das maiores autoridades nos estudos sobre o mundo do trabalho avalia que os trabalhadores dos setores público e privado colocados forçosamente em regime remoto de exercício funcional durante a pandemia do novo coronavírus precisam formular.

Autor de mais de 30 livros, editados em mais de uma dezena de países, Ricardo Antunes estuda as relações de trabalho no Brasil e no mundo desde a década de 1970. O sociólogo já atuou como docente na Universidade de Sussex, na Inglaterra, e ainda leciona como visitante regularmente nas universidades de Coimbra, em Portugal, e Ca’ Foscari, na Itália.

O debate sobre as metas impostas pelas administrações sob a nova realidade do teletrabalho em massa no Judiciário Federal durante a suspensão do expediente e dos prazos processuais permeou toda a conversa, realizada no meio do feriadão da Semana Santa, que atingiu cerca de 1.500 visualizações no Facebook e no YouTube do Sindicato.

“As metas [sempre] foram utilizadas como instrumento de aferição da produtividade, mas ocorre que neste momento a gente tem praticamente a totalidade da categoria colocada em regime de teletrabalho, muitos sem a adequada estrutura”, lembrou o diretor do Sindicato e servidor do TRT-2 Fabiano dos Santos.

Ricardo Antunes ressaltou que as metas de teletrabalho em voga na atualidade “são o cronômetro do [Frederick] Taylor piorado, porque a gente tem que interiorizar”. Taylor foi o desenvolvedor do chamado modelo taylorista  de produção, que organizou o trabalho no fim do século XIX eliminando os poros de tempo ocioso, aumentando a produtividade e a superexploração extraída do processo produtivo.

Antunes ressaltou que a realização do trabalho remoto em si não é o problema, ressaltando que sua polêmica não é com o desenvolvimento tecnológico, a serviço de quê a modernização é instrumentalizada. “A bomba atômica foi um “avanço” tecnológico destrutivo para a humanidade. A forma como o capitalismo organiza essa forma de trabalho de visando inviabilizar a organização coletiva, reduzir os custos para o empregador e precarizar direitos é a preocupação que o especialista considera fundamental pautar.

“Para os capitais é o melhor dos mundos”, porque “joga o trabalhador ou a trabalhadora na sua casa, isolado, não paga a ele transporte, alimentação, não paga nem a ele nem a ela nada dos gastos que ele tem dos equipamentos nas fábricas, nos escritórios, nas escolas, o que for, e mais, separa os trabalhadores e trabalhadoras dos seus companheiros de trabalho, individualiza o trabalho”, destacou.

Outra ponderação apontada por Ricardo Antunes sobre o teletrabalho são os impactos negativos para serviços que visam assegurar direitos, como a educação – que a distância perde a necessária interação professor-aluno -, a tendência à mecanização e padronização de processos que deveriam individualizados – como a prestação jurisdicional.

Ricardo Antunes lembrou ainda que o setor público brasileiro sofre também as consequências de um liberalismo “de tipo fascistizante, degradado, brutalizado – e que a rés pública, a coisa pública, está sendo profundamente vilipendiada. Mas não fosse o que existe de trabalho público no país, estaríamos numa indigência brutal, como estamos vendo no Equador e na região mais avançada da Itália”, disse.

A “servidão” imposta plataformas ameaça vidas

O sociólogo também abordou como o capitalismo ilude o trabalhador neste processo de retirada de direitos pregando a ideia do “empreendedorismo”. Para ele, essa é uma forma de jogar para os indivíduos que dependem do trabalho para sobreviver a responsabilidade pela ausência de emprego para todos e, assim, ir rebaixando os patamares salariais e direitos.

A pandemia em meio ao avanço do modelo das plataformas de aplicativos escancarou os problemas dessa forma de trabalho. Muitos trabalhadores dessas empresas têm sido forçados a continuar trabalhando em meio à quarentena parcial, arriscando a própria vida, de suas famílias e das pessoas a quem fazem as entregas porque não recebem salários fixos, mas apenas pequenas porcentagens das entregas e transportes de pessoas que realizam.

“De um dia para o outro o desempregado passou a ser “empreendedor”. Agora ele está vendo a mentira”, afirmou Antunes.

No estado de São Paulo, o próprio governo estadual já expressou preocupação com o fato de que o isolamento social deveria estar no patamar de 70% para assegurar o achatamento da curva de contágio, mas apenas 49% da população está de fato em casa. Ao invés de propor medidas de garantia de renda e preservação do emprego para evitar que as pessoas sejam obrigadas a sair de casa para trabalhar, o governador João Doria já ameaçou utilizar a PM contra pessoas nas ruas – o que tradicionalmente só ocorre nas periferias e regiões onde o contingente populacional pobre e negro é maior. Como evidenciou a manifestação pela retomada integral das atividades econômicas realizada por empresários e grupos bolsonaristas no sábado (18 de abril), com direito a “buzinaço” em frente ao Hospital das Clínicas e ao Instituto Emílio Ribas.

Auto-organização

Durante a live, muitas foram as perguntas sobre as perspectivas pós pandemia, papel dos sindicatos e alternativas.

Para Ricardo Antunes, “as periferias emparedadas entre as milícias, imbricadas com o governo, e o narcotráfico, estão fazendo auto-organização. É única forma de sobreviver, e o embrião de uma sociedade de novo tipo. É um papel muito importante o dos movimentos sociais na periferia. Movimento negro, movimento feminista, movimento de juventude, movimento LGBT.”

Também diretora do Sindicato e servidora do TRT, Inês Leal, que participou também da live concordou. “Está colocada a tarefa da auto-organização da classe, porque a burguesia não oferece uma saída para a gente. A burguesia oferece nesse momento mais ataques, mais retirada de direitos e nos coloca numa situação que ameaça as nossas vidas, em nome do lucro, afirmou.

O sociólogo afirmou ainda que “temos um conjunto muito grande de desafios do movimento sindical também.”

Entre esses desafios estão: pensar um projeto coletivo solidário e de classe, que só seria possível a partir da compreensão das questões cruciais do nosso tempo pela maioria da população.

Na opinião de Antunes, essas questões cruciais são: um trabalho dotado de sentido; a preservação da natureza; o reconhecimento da dimensões de gênero, de raça, etnia, direito em plenitude à liberdade sexual, direito de organização e atividade da juventude. Em resumo “a vida contra o lucro.”

Sobre as dificuldades de mudanças estruturais e transformação social de grande porte, Ricardo Antunes lembrou que “30 anos atrás, se falasse para vocês que a União Soviética ia acabar alguém ia acreditar? Pois bem, a segunda potência do mundo desmanchou. O capitalismo não é eterno”, disse.

E ele lembrou ainda que o que está salvando a população mundial de um desastre ainda maior na pandemia são os Estados Nacionais, a estrutura pública. “Se não fosse o SUS, não fosse o que existe de trabalho público no país, estaríamos numa indigência brutal, como estamos vendo no Equador [país em que corpos têm sido abandonados nas ruas porque não há estrutura pública de sepultamentos e o sistema privado colapsou] e na região mais avançada da Itália”, frisou.

Para Ricardo Antunes, não é por acaso que mesmo economistas neoliberais têm defendido a injeção maciça de investimentos públicos neste momento. “Também estão preocupados com o capital. Tudo que parece sólido está derretendo”, afirmou. O sociólogo defendeu que os recursos para enfrentamento ao coronavírus deveriam vir da taxação dos lucros, dos lucros dos bancos e heranças, mas a conta vem sendo cobrada majoritariamente aos trabalhadores e trabalhadoras.

Serviço

As transmissões ao vivo realizadas pelo Sintrajud acontecem sempre às segundas-feiras (17h30) e às quintas-feiras (11 horas) pelo Facebook, YouTube e o site. Assista abaixo o vídeo da conversa com Ricardo Antunes. Todos os vídeos estão a disposição para quem quiser rever e para quem perdeu.

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