Mandantes da execução de Marielle Franco seguem impunes um ano depois


14/03/2019 - Luciana Araujo

Desde hoje cedo diversas cidades têm realizado manifestações que marcam o primeiro ano da execução da vereadora carioca Marielle Franco. Às 17 horas, na capital paulista acontece um ato unificado, com início na Praça Oswaldo Cruz (começo da Avenida Paulista). A diretoria do Sintrajud e o Coletivo de Mulheres do Sindicato estarão presentes e convidam a categoria.

A noite do dia 14 de março de 2018 é daquelas em que as pessoas recordam por muitos anos o que estavam fazendo quando receberam uma notícia traumática. Às 21 horas começaram a ser publicadas as reportagens que informavam que Marielle Franco fora vítima fatal de uma emboscada.

O carro onde estavam Marielle, a assessora Fernanda Chaves e o motorista Anderson Gomes foi alvejado por diversos tiros numa rua do bairro do Estácio, no Centro do Rio. Marielle, atingida na cabeça por quatro disparos feitos a partir de outro carro que seguia a parlamentar depois que ela saiu de uma atividade com mulheres negras, em sua maioria “crias da favela”, como ela própria, morreu no local. Uma das balas feriu também mortalmente o condutor do veículo da vereadora, Anderson Gomes, marido de Ágatha Reis e pai do pequeno Arthur, à época com apenas um ano de idade. Fernanda sobreviveu, mas teve de sair do Brasil por longo tempo, temerosa por sua própria vida e de seus familiares.

Ao longo dos últimos 365 dias foram centenas as manifestações em todo o mundo, que reuniram milhões de pessoas, cobrando resposta às perguntas “Quem matou?”, “Quem mandou matar?” “Por que Marielle foi executada?”, dentre outras.

Até sua morte, a parlamentar era pouco conhecida fora dos círculos de defensores de direitos humanos, ativistas e militantes políticos. Ao que se sabia, Marielle era seguida apenas por pessoas que conheciam seu trabalho de mais de uma década junto a movimentos sociais de favelas, mulheres, comunidade LGBT e população negra. Além dos 46 mil cariocas que tornaram a mulher negra, favelada, bissexual, mestra, mãe e ativista de direitos humanos de 38 anos a quinta vereadora mais votada na capital do Rio de Janeiro nas eleições de 2016, na primeira vez em que foi candidata.

Do último dia 12 para cá, no entanto, o Brasil e o mundo ficaram sabendo que por pelo menos três meses os passos, a agenda, amigos e pessoas próximas a Marielle foram seguidos de perto pelos homens que a polícia civil fluminense apresentou como executores da vereadora. Dois ex-policiais militares associados às milícias cariocas: Ronnie Lessa e Élcio Vieira Queiroz.

Versão oficial não convence

Reportagem do jornal ‘O Globo’ lembrou, no dia da prisão, que o avô do atual secretário estadual de Educação do Rio de Janeiro, Pedro Fernandes (PSD), homenageara Ronnie Lessa em 1998 na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O pistoleiro profissional também já recebera elogios quando integrava o 9º Batalhão da PMRJ (Rocha Miranda) – famoso pela alta letalidade nas ações de rua. O jornal lembrou também que um dos comandantes de Lessa, elogiado junto com ele no Boletim Interno 034/1997 do 9º BPM, cumpre pena hoje como um dos mandantes da execução da juíza Patrícia Acioli, ocorrido em 2011 em meio a uma investigação sobre a corrupção na força policial daquele Estado. ‘O Globo’ trouxe ainda, neste dia 14, outra reportagem informando que foi verificado que após o crime os acusados passaram quatro horas num restaurante no bairro da Barra da Tijuca, área nobre do Rio.

O governador do Rio, Wilson Witzel (PSC) tratou as prisões tardias como uma proeza do poder público.
As promotoras que atuam no caso não aceitaram participar da coletiva nesse tom. Preferiram guardar a sobriedade do cargo e manifestaram-se em outra coletiva, na sede do Ministério Público Estadual, onde apresentaram a denúncia que resultou na prisão dos acusados. O MP afirma textualmente que é incontestável que Marielle foi executada por sua ação política em razão das causas que defendia.

Witzel, fotografado num ato de campanha ao lado de dois candidatos aos parlamentos estadual e federal pelo Estado do Rio que vandalizaram uma placa em homenagem à vereadora, pediu desculpas à família da vereadora no dia de ontem.

O delegado responsável pelo caso, que durante a coletiva confirmou um relacionamento havido entre um dos filhos do presidente Jair Bolsonaro (PSL) e a filha do acusado Élcio Queiroz, foi afastado das investigações no dia seguinte às prisões.

Cobrança internacional

Na coletiva de imprensa convocada pelo Governo do Estado, apontou-se também que o crime poderia ter sido uma ação individual de ódio, e não de mando. Mas a versão não convenceu.

A Anistia Internacional emitiu posicionamento afirmando que “essas pessoas [acusadas] devem ser levadas à justiça para que, em um devido processo, a eventual responsabilidade criminal seja determinada”. A organização ainda cobra que, “como já foi feito em outros países, um grupo externo e independente de especialistas para acompanhar as investigações e o processo”.

A Anistia Internacional reitera ainda que “ainda há muitas perguntas não respondidas e que as investigações devem continuar até que os autores e os mandantes do assassinato sejam levados à justiça”. O compilado dos questionamentos feitos pela organização foram publicados em fevereiro e podem ser lidos aqui.

O eurodeputado Miguel Urbán também pronunciou-se no Parlamento Europeu pedindo justiça no caso. No ano passado, chegou a ser apresentada moção pedindo a suspensão das negociações da União Europeia com o Mercosul em decorrência da violência política que a morte de Marielle expressa.

Na 63ª sessão da Comissão sobre a Situação das Mulheres da ONU, que acontece de 11 a 22 deste mês na sede das Nações Unidas, a cobrança para que o crime seja investigado também será pauta. No ano passado, o assassinato aconteceu durante o encontro, que reúne governantes e ativistas dos países que integram o sistema ONU, e foi destaque nos debates, com pronunciamento oficial pela apuração do caso.

Um coletivo de 11 relatores para direitos humanos das Nações Unidas e três especialistas da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos publicou nota no dia de hoje afirmando que “o Estado tem a obrigação de garantir uma investigação completa, independente e imparcial sobre esses assassinatos. Instamos o Brasil a concluir a investigação o quanto antes, levando os responsáveis intelectuais e materiais à justiça e oferecendo reparação e indenização às famílias.”

O Brasil deve respostas ao mundo

Num país onde a violência urbana e policial atinge níveis altíssimos, algumas pessoas ainda questionam porque a morte de Marielle gera tamanha comoção. Assim como no caso da juíza Patrícia Acioli, a execução de agentes do Estado que denunciam ou apuram crimes cometidos por outros agentes públicos atingem o próprio estado democrático. Passam a mensagem de que é efetivamente o crime que controla o Estado, e não o contrário. Nos casos de ativistas de direitos humanos, como Marielle, são ainda expressão de que defender vidas violadas é um risco. Ou seja, um estímulo à barbárie. Por isso é fundamental que a população não trate como um fato comum à vida social urbana violenta.

E no Brasil esses crimes são cada vez mais comuns e precisam ser freados, mas o Estado brasileiro não tem se mostrado capaz de faze-lo.

No dia 10 de maio de 2018, o então ministro da Segurança do governo Michel Temer, Raul Jungmann, convocou coletiva de imprensa para afirmar que as investigações estariam chegando à fase final. Em novembro do ano passado, Jungmann anunciou uma investigação federal paralela ao inquérito do crimes, para apurar a existência de um “complô” envolvendo “políticos poderosos”para dificultar a identificação dos responsáveis pelas duas execuções.

Sementes

Anielle, a filha de Marielle, Luyara, dona Marinete e Marielle (arquivo pessoal).

Para a família de Marielle a vida virou do avesso. Além da perda trágica, a tarefa de lutar por justiça mudou a rotina de todos. Dona Marinete, dona de casa recém formada em Direito, tornou-se uma militante, como outras mães cariocas que perderam filhos de forma violenta. A filha de Marielle, Luyara, já era uma ativista e segue atuando, repetindo sempre que agora o faz também pela memória da mãe. Seu Antônio, o pai, é parte da força familiar que se torna apoio na busca por explicações e responsabilização dos culpados pela morte da vereadora que neste ano foi homenageada de Norte a Sul do país no Carnaval e no 8 de março.

“Mari se tornou algo gigante. Algo que nunca jamais imaginávamos. Virou realmente semente e trouxe de volta sentimentos que estavam dormindo. Cada homenagem pra mim só mostra o quanto ela fez historia”, afirma Anielle Franco. “O principal foco nosso hoje nesse pedido de justiça é também poder fazer algo para manter a memória dela viva. E saber que temos que tocar nosso Instituto Marielle Franco, nosso ‘Papo Franco’, que são projetos nossos. Seguir a linha de Mari e lutar contra tudo que nos amedronta”, completa a irmã mais nova da vereadora.

O instituto que Anielle busca consolidar com o nome da irmã visa seguir o trabalho de defesa dos direitos humanos, o projeto ‘Papo Franco’ promove encontros de mulheres negras para discutir formas de enfrentamento à violência política, de gênero e raça. Foi criado quando Marielle ainda estava viva, como atividade do mandato de vereança.

A viúva de Marielle, Mônica Benício, também tornou o esclarecimento da execução uma causa de vida. Ela e Anielle enfrentam ainda a violência política que se voltou também contra as familiares que lutam por justiça. Mônica já solicitou proteção internacional diante das ameaças sofridas. Anielle não estica muito a conversa ao falar sobre as intimidações frequentes. “Acho que depois que eu assumi essa linha incomodei também.”

Nas mobilizações por justiça para Marielle é comum as pessoas se remeterem ao ditado que remete à frase que teria sido pronunciada por um trabalhador durante uma greve na Catalunha: “Tentaram nos matar, mas não sabiam que éramos sementes”. As sementes de Marielle seguem fazendo história, tal como a própria.

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