Inviabilizar o censo afetará políticas públicas e direitos de toda a população, afirma servidora


03/05/2021 - Luciana Araujo
Pesquisa orienta outros estudos sobre demandas populacionais e gestão de verbas públicas; Sindicato Nacional do IBGE alerta que não é viável realizar a pesquisa censitária sem condições sanitárias e recomposição orçamentária.

Após duas reduções orçamentárias e diante das ações governamentais que contribuem para a expansão do contágio pelo novo coronavírus, a realização de uma das maiores pesquisas demográficas do mundo está ameaçada, o que pode gerar um “apagão de dados” no país. Na queda de braço palaciana entre a cúpula do Judiciário e o governo Jair Bolsonaro, o ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello deferiu na última quarta-feira (28 de abril) liminar pedida pelo governo do Estado do Maranhão determinando a realização do censo demográfico no ano que vem, “observados os parâmetros preconizados pelo IBGE, no âmbito da própria discricionariedade técnica”.

No entanto, embora tenha se referido ao corte de verbas como razão inviabilizadora da pesquisa, o ministro não se manifestou sobre a necessidade de o governo recompor o orçamento necessário ao censo. A decisão foi publicada no Diário Oficial na última sexta-feira. E o atual presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Eduardo Rios, informou já no dia seguinte à Advocacia-Geral da União que não pretende recorrer da decisão monocrática de Mello, o que a AGU fará. Na próxima sexta-feira (7 de maio) o plenário virtual do STF começará a analisar a ação cível originária (ACO) 3508. O julgamento será encerrado no dia 14.

Apagão de dados

O Censo deveria ter acontecido no ano passado, mas acabou sendo adiado em função da pandemia e porque, desde 2019, a dotação orçamentária para o estudo vem sendo espremida pelo atual governo. Na posse da então presidente do IBGE, Susana Guerra, há dois anos, o ministro da Economia, Paulo Guedes, defendeu a redução do questionário e sugeriu que o Instituto vendesse imóveis para bancar a pesquisa. Em sua fala, Guedes declarou ainda que enxugar o questionário do censo era importante porque “se perguntar demais você vai acabar descobrindo coisas que nem queria saber”.

À época, o Sindicato Nacional dos Trabalhadores do IBGE emitiu nota ressaltando que embora, “talvez algumas informações sobre a realidade brasileira lhe sejam inconvenientes. É de interesse público, porém, produzir o retrato mais completo possível do nosso país.”

A reportagem do Sintrajud conversou com a coordenadora do Núcleo São Paulo do ASSIBGE-SN, Bianca Schmid, sobre as repercussões da não realização do censo e as dificuldades para faze-lo sem a necessária dotação orçamentária. Bianca é tecnologista em informações geográficas e estatísticas e trabalha no IBGE desde 2002.

“O censo tem diversos objetivos e funções, como aprofundar informações que são coletadas na PNAD [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios], sobre renda, relações trabalhistas e outras. É o censo também que possibilita a atualização das estimativas de nascidos vivos por ano, o que é fundamental para que as prefeituras, governos estaduais e ministérios planejem quantas vacinas, escolas, creches e outros serviços públicos são necessários”, alerta Bianca.

A servidora explica ainda que o Fundo de Participação dos Municípios também é dividido a partir do quantitativo populacional de cada cidade. Caso esta informação não seja atualizada a cada dez anos pode haver distorções na distribuição das verbas que a União repassa.

Corte orçamentário impacta políticas em todas as áreas

Bianca Schmid alerta também que não basta determinar a realização do censo, como em princípio fez o ministro Marco Aurélio Mello. “O IBGE já vinha sofrendo cortes orçamentários e intervenções desde que Bolsonaro assumiu a Presidência. Quando a ex-presidente Suzana Guerra entrou, já tinha determinado o corte de várias perguntas importantes do censo, que dificultam, por exemplo, calcular o déficit habitacional. Além disso, a retirada de questões compromete a série histórica. E há perguntas que só o censo pode fornecer com o nível de complexidade e abrangência demográfica exigido num país do tamanho do Brasil”, explica.

“Desde 2019 orçamento para o censo já havia sido reduzido de R$ 3,4 bilhões para R$ 2,3 bilhões e ainda veio esse novo corte, restando cerca de 50 milhões. Isso significa inviabilizar a realização do censo. E não haver previsão para 2022 pode prejudicar ainda mais a obtenção de informações que são extremamente necessárias”, destaca, frisando que também não é possível simplesmente agendar a pesquisa.

O ASSIBGE-SN é contra a realização do censo em meio à pandemia sem vacinação em massa para a população e condições sanitárias. Até lá, a única medida efetivamente segura é o distanciamento social, que poderia ser comprometido com o próprio trabalho censitário. “A gente ainda não sabe se vai ser viável devido à pandemia realizar o censo em 2022, e enquanto não houver condições sanitárias a gente não pode ir a campo, porque são 200 mil pessoas batendo nas portas dos domicílios – isso é um enorme vetor de transmissão do vírus. Mas vencida a pandemia o censo vai ser importante inclusive para identificar os efeitos dela na vida da população brasileira. A gente teve uma significativa morte de idosos no início da pandemia e tínhamos vários domicílios que dependiam desses idosos, por exemplo”, afirma.

O Sindicato dos Trabalhadores do IBGE defende que o Instituto tenha autonomia técnica e financeira, com dotação orçamentária adequada, para a realização dos estudos que asseguram as políticas públicas nacionais, estaduais e municipais, além de servirem de base para a composição de índices utilizados nas definições de investimento inclusive do setor privado.

A decisão nas mãos do STF

A preocupação dos servidores do IBGE com a decisão liminar conferida pelo ministro do STF Marco Aurélio  determinando a realização do censo no ano que vem é que isso não é viável sem que ocorra a recomposição do orçamento necessário à pesquisa.

“O problema é que o pessoal quer brigar com o governo Bolsonaro, mas não escuta os trabalhadores do IBGE. O [ministro do] STF mandou o governo fazer, mas mandou liberar verbas? Levou em consideração a pandemia, que está matando 3 mil pessoas por dia? Quem será responsabilizado por um aumento ainda maior de casos e mortes por covid? A decisão mostra total desconhecimento da complexidade de uma operação censitária”, afirma Bianca.

“Fazer um censo é uma operação de guerra. São inúmeras etapas preparatórias, concursos com centenas de milhares de pessoas. Daí a primeira coisa que é preciso pensar é como vai ser colocar pessoas para fazer as provas em salas fechadas. Depois, tem os diversos treinamentos presenciais – para cerca de 200 mil pessoas, que só depois vão a campo. E ainda, no final do processo, será necessário colocar 200 mil pessoas batendo de porta em porta, em plena pandemia. O censo tem que ser realizado, mas sem cortes de orçamento nem de perguntas, e quando houver condições sanitárias para isso”, conclui Bianca.

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