ENTREVISTA – José Afonso da Silva: “Quem pleiteia nova constituinte ou não entende nada ou age de má-fé”


27/11/2018 - helio batista

Aos 93 anos de idade e 61 de prática jurídica, ele é considerado um dos maiores constitucionalistas do país. O jurista José Afonso da Silva está aposentado da Procuradoria do Estado de São Paulo e da Faculdade de Direito da USP, mas segue ativo em seu escritório e realizando palestras.

30 anos da CF/88

Dando continuidade à cobertura sobre os 30 anos da Constituição, a reportagem do Jornal do Judiciário entrevistou o jurista, que teve papel destacado no desenho da Carta Magna, como assessor jurídico da Assembleia Nacional Constituinte. José Afonso respondeu por e-mail. Trechos da entrevista foram publicados na edição de número 580.

Para o professor, ainda é possível continuar chamando a Constituição de ‘cidadã’ porque “apesar do grande número de emendas, não foi atingido o núcleo que lhe dá o conceito de Constituição, que são os direitos fundamentais”.

O constitucionalista considera que as mudanças mais importantes produzidas ao texto foram as emendas 5 a 7, “porque eliminaram da Constituição diversas normas de proteção à economia nacional”. Além das ECs 16 (reeleição), 19 (que modificou o regime jurídico dos servidores públicos e diversos princípios da administração pública), 20 (que alterou o sistema de previdência social), 41 (sobre o regimento previdenciário e remuneratório dos servidores públicos) e 45 (a reforma do Judiciário).

Mesmo diante da crise aberta no país a partir de 2015, discorda da análise de que esta resultou no fim do ciclo de validade do pacto da Nova República. “Esta é a análise das elites conservadoras que saíram derrotadas do processo constituinte de que resultou a Constituição de 1988, e que pleiteiam sua mudança para retirar dela as conquistas dos direitos fundamentais, especialmente dos direitos sociais que beneficiam a população mais carente”, afirma.

Na visão de José Afonso, “quem pleiteia uma nova constituinte ou não entende nada de teoria constitucional e política ou age de má-fé. Uma constituinte só se convoca para que se refaça o pacto social, mediante a elaboração de uma nova Constituição, quando – por um golpe de Estado ou outro motivo – rompe-se com a ordem constitucional vigente. Jamais, em tempo algum, em lugar algum, quando existe uma Constituição regendo plenamente os destinos do país, garantindo eleições livres, superando crises de vários tipos”.

O professor avalia que “as crises que ainda perduram são crises éticas, com reflexo na ordem econômica e social”, mas que “não existe, sequer, uma crise constitucional. Simplesmente por que a Constituição vigora e oferece os meios adequados à solução dessas crises”. E ele ressalta a ilegalidade da proposta de refazer o vértice do ordenamento jurídico em vigor. “Às vezes, leio propostas de convocar constituinte exclusiva para fazer as reformas políticas, ou para refazer o pacto federativo. Mas não se convoca constituinte para isso ou para aquilo. Só para fazer nova Constituição”.

Direitos fundamentais

Em relação às críticas que têm sido difundidas na sociedade brasileira – e pelo presidente eleito – aos direitos fundamentais previstos na Constituição, José Afonso é direto. “Só uma elite conservadora questiona os direitos de igualdade entre homem e mulher, a dignidade da pessoa humana e o combate ao racismo, e o fazem porque, sendo classe privilegiada, esses direitos não lhes interessam”. O professor afirmou à reportagem que “será inconstitucional qualquer tentativa de extinguí-los”.

A mesma análise o jurista faz das propostas apresentadas pelo futuro presidente da República em relação aos direitos e à regulação trabalhista. “As propostas de extinção da Justiça do Trabalho e do Ministério do Trabalho, e de reforma do sistema de seguridade social, estão na linha do pensamento do presidente eleito de implementar uma política pública em benefício do empresariado e das elites em geral. Os pobres e as minorias terão dias difíceis com o governo que vem aí”.

O constitucionalista enfatiza que o próximo governante mira nos direitos da população mais pobre. “O presidente eleito fez uma campanha agressiva em face não de todos os direitos fundamentais, porque o direito de propriedade, por exemplo, ele promete proteger com todas as forças, inclusive com a promessa de tipificar como terrorismo atos de invasão de imóveis rurais improdutivos e imóveis urbanos longamente vazios. Isso porque este é um direito de interesses especialmente dos ricos. Os direitos fundamentais visados pelo presidente eleito são aqueles de interesses dos pobres: os direitos sociais, sobretudo os direitos trabalhistas e previdenciários”.

Confira abaixo a íntegra da entrevista

Jornal do Judiciário – O senhor avalia que ainda é possível continuar chamando a Constituição Federal de 1988 de ‘cidadã’ após as 95 emendas havidas?
José Afonso da Silva – Sim, porque, apesar do grande número de Emendas, não foi atingido o núcleo que
lhe dá o conceito de Constituição que são os direitos fundamentais.

Em sua opinião, quais foram as mudanças mais importantes produzidas à Constituição nesses 30 anos?
Sem entrar no mérito, eu poria as seguinte mudanças, por causa de sua repercussão política, econômica ou social: a Emenda Constitucional 16/1997, que autorizou a reeleição de chefes de Poder Executivo nos três níveis da Federação; a Emenda 19/1998, que modificou o Regime Jurídico dos servidores públicos, alterando diversas normas e diversos princípios relativos à administração pública; a Emenda 20/1998, que modificou o sistema de Previdência Social e a 4/2003, sobre o regimento previdenciário e remuneratório dos servidores públicos; e a EC-45/2004, sobre a reforma do Poder Judiciário. Assim como as Emendas de número 5, 6 e 7 de 15/8/1995, porque
eliminaram da Constituição diversas normas de proteção à economia nacional. No mais a grande maioria das emendas se referem, repetitivamente, ao regime do pagamento de precatórios.

Frente a análises de que a crise econômica, política e social aberta no Brasil em 2015 resultou do fim do ciclo de validade do pacto da Nova República, têm surgido no debate público propostas de convocação de uma nova Constituinte e até de uma revisão constitucional por um “conselho de notáveis”. Qual a sua avaliação do momento em que estamos vivendo e da necessidade e possibilidade de uma nova Constituinte no próximo período?
Essa afirmativa de que a crise de 2015 resultou no fim do ciclo de validade do pacto da Nova República é das elites conservadoras que saíram derrotadas do processo constituinte do qual resultou a Constituição de 1988, e que pleiteiam sua mudança para retirar dela as conquistas dos direitos fundamentais, especialmente dos direitos sociais que beneficiam a população mais carente. Quem pleiteia a convocação de uma nova Constituinte ou não entende nada de teoria constitucional e política ou age de má-fé.

Uma constituinte só se convoca para que se refaça o pacto social, mediante a elaboração de uma nova Constituição, quando – por um golpe de Estado ou outro motivo – rompe-se com a ordem constitucional vigente. Jamais, em tempo algum, em lugar algum, quando existe uma Constituição regendo plenamente os destinos do país, garantindo eleições livres, superando crises de vários tipos. As crises que ainda perduram são crises éticas, com reflexo na ordem econômica e social. Não existe, sequer, uma crise constitucional. Simplesmente por que a Constituição vigora e oferece os meios adequados à solução dessas crises. Às vezes, leio propostas de convocar constituinte exclusiva para fazer as reformas políticas, ou para refazer o pacto federativo, mas não se convoca constituinte para isso ou para aquilo, porque só se convoca constituinte quando existe ruptura da ordem existente, para fazer nova Constituição. Não havendo ruptura, não há os pressupostos para constituinte. Uma nova constituinte só servirá para retirar da Constituição as conquistas populares. Enfim, existindo Constituição em vigor, será inconstitucional a convocação de constituinte, qualquer que seja.

Na cerimônia de comemoração dos 30 anos da CF88, o ministro Marco Aurélio destacou que os direitos fundamentais são o centro da Carta Magna. No entanto, setores no Brasil vêm questionando fortemente tais direitos. Como o senhor avalia a permanência da validade da nossa carta constitucional neste cenário?
O ministro Marco Aurélio tem toda razão. O questionamento se faz pela direita. É o que temos visto. Só uma elite conservadora questiona os direitos de igualdade entre homem e mulher, a dignidade da pessoa humana e o combate ao racismo, e o fazem porque, sendo classe privilegiada, esses direitos não lhes interessam.

Mas o novo presidente eleito já deu declarações prometendo mexer em todos eles, desde o direito de manifestação (chamado por ele de “ativismo” a ser “eliminado”) até as políticas de promoção da igualdade de gênero, raça e direitos humanos que se tornaram leis por previsão constitucional. Mexer em tais conquistas não seria ferir de morte a nossa Constituição, mesmo o presidente eleito tendo prometido respeitá-la?
Você tem razão. De fato, o presidente eleito fez uma campanha agressiva em face não de todos os direitos fundamentais, porque o direito de propriedade, por exemplo, ele promete proteger com todas as forças, inclusive com a promessa de tipificar como terrorismo atos de invasão de imóveis rurais improdutivos e imóveis urbanos longamente vazios. Isso porque este é um direito de interesses especialmente dos ricos.

Os direitos fundamentais visado pelo presidente eleito são aqueles de interesses dos pobres: os direitos sociais, sobretudo os direitos trabalhistas e previdenciários. Mas os direitos e garantias individuais estão protegidos pelas chamadas cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, inc. IV, da Constituição), que vedam sua abolição por emenda constitucional. A igualdade de gênero e de raça está protegida, porque são direitos individuais. Logo, será inconstitucional qualquer tentativa de extingui-los, ainda que sejam frequentemente desrespeitados.

Os direitos sociais não têm essa cobertura, mas têm a proteção de tratados internacionais de que o Brasil faz parte. Mas pelo fato de as cláusulas pétreas não os protegerem, tal como protegem os direitos individuais, dificilmente o Judiciário vai considerar inconstitucional eventuais emendas constitucionais que os modifiquem.

Sua geração defendia um Judiciário mais “discreto”, como parte das responsabilidades institucionais. Hoje, o anseio de juízes, procuradores, desembargadores e ministros por holofotes é comum. E há um debate sobre o que chamam de “ativismo” (muitas vezes confundido de forma proposital com eventuais posicionamentos divergentes do Poder em relação à “opinião pública” ou à opinião dos grupos de mídia). O senhor avalia que essa realidade afeta o papel institucional do Poder enquanto provedor de Justiça?
Não sei se a minha geração defendia um Judiciário mais “discreto”. Era mais discreto porque não tinha televisão para televisar as sessões do plenário. A televisão desperta sempre a vaidade de se mostrar. Quanto ao ativismo, não me parece que exista. Hipóteses de construções constitucionais, eventualmente ocorridas, ainda têm estado no âmbito da interpretação jurisdicional das normas constitucionais. Quanto ao holofote, ele realmente existe. E isto, se é humano, não deveria ocorrer em relação aos magistrados. A minha avaliação é a de que isso pode interferir com o papel institucional do poder enquanto provedor de Justiça, na medida em que gera conflitos ostensivos no seio do Tribunal.

Queria sua opinião sobre a necessidade de maior controle social do Judiciário (eleição de ministros, possibilidade de a sociedade ter mecanismos de opinar sobre a composição dos colegiados)?
Não sou a favor de eleição de ministros de nenhum tribunal superior. Não sou a favor eleição de membros do Poder Judiciário. Isso existe em alguns estados dos Estados Unidos, mas é fonte de corrupção dos juízes, pela politização da magistratura. Eleição é um mecanismo adequado e próprio para a escolha de candidatos às funções políticas. A meu ver, adotá-la para o provimento de cargos da magistratura em qualquer nível consistirá em transformar as instituições judiciais em instituições políticas, sem nenhuma vantagem para o bom desempenho da função jurisdicional. Não vislumbro qualquer tipo de mecanismo que poderia ser utilizado pela sociedade para opinar sobre a composição dos colegiados judiciais.

Pleiteou-se durante a Constituinte a criação de um órgão externo de controle do Judiciário, mas não passou. Só se conseguiu a forma do Conselho Nacional de Justiça que, embora não seja propriamente um mecanismo da sociedade, tem produzido bons resultados. Um modo de controle foi dado ao Senado Federal para aprovar ou não os nomes que o Presidente da República indica para o Supremo Tribunal Federal, mas o Senado cumpre mal essa atribuição, limitando-se a uma mera audiência pública com o candidato, depois do quê sempre os aprova. Os membros das Cortes Constitucionais europeias (Portugal, Espanha, Itália, Alemanha entre outras) e da América Latina (Colômbia, Peru, Chile) são investidos nos cargos para tempo certo (8 ou 12 anos) e são escolhidos não só pelo chefe de Estado, mas também pelo parlamento ou outras instituições.

Por último, gostaria que o senhor comentasse as ameaças de extinção da Justiça do Trabalho e do Ministério do Trabalho e de reforma do sistema de seguridade social.
A extinção da Justiça do Trabalho e do Ministério do Trabalho e reforma do sistema de seguridade social está na linha do pensamento do presidente eleito de implementar uma política pública em benefício do empresariado e das elites em geral. Os pobres e as minorias terão dias difíceis com o governo que vem aí.

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