“Devolução” de requisitados é nova ameaça à Justiça Eleitoral em São Paulo


23/12/2020 - Luciana Araujo
Servidores do quadro fazem campanha para sensibilizar o TSE sobre os riscos de inviabilização da Justiça Eleitoral paulista.

Após um ano extremamente difícil e um processo eleitoral extenuante em meio à pandemia do novo coronavírus, os servidores da Justiça Eleitoral, especialmente os chefes de cartórios, têm mais um elemento de stress neste fim de 2020 e início do ano que vem. O Tribunal Regional Eleitoral comunicou que, em virtude de questionamentos do Tribunal de Contas da União, e da Resolução do Tribunal Superior Eleitoral 23.523, de 29 de junho de 2017, que determinou como prazo máximo para permanência dos servidores requisitados, no TRE paulista esses servidores poderão ficar até, no máximo, 4 de julho de 2021.

De acordo com dados do próprio Tribunal, 1.264 requisitados estão ameaçados de “devolução” a seus órgãos ou empregadores de origem (nos casos em que os órgãos aos quais estavam diretamente vinculados tenham sido extintos) neste prazo. E, pelo que relatam chefes de cartórios, os trabalhadores afetados sequer tiveram acesso ao inteiro teor do processo SEI 0032971-67.2020.6.26.8000, que discute a questão. A “dispensa” foi conhecida por meio de lista nominal com os prazos limite para cada trabalhador ou trabalhadora continuar a serviço do TRE. Muitos desses colegas atuam há mais de 15 anos na Justiça Eleitoral.

Aos que iniciaram os trabalhos na Justiça Eleitoral entre 5 de julho de 2016 e 31 de dezembro daquele ano, o prazo limite de quatro prorrogações de permanência será contado a partir da data de exercício no Judiciário. Para quem foi requisitado ao TRE/SP entre 1º de janeiro de 2017 até 16 de dezembro deste ano, oriundo de prefeituras, câmaras de vereadores e demais órgãos municipais, a prorrogação do afastamento será pelo período de um ano.

A determinação do TSE também não levou em conta o fato de que não há perspectiva de realização de novos concursos públicos e que a rotina de atividades desenvolvida na Justiça Eleitoral exige um grau de especialização. Para este ano, foi autorizado o provimento de 104 dos 134 cargos vagos no Tribunal. O efetivo total, no entanto, ainda é muito baixo proporcionalmente ao eleitorado atendido.

Ainda que os requisitados devolvidos a seus órgãos de origem sejam substituídos por outros, e não haja mera redução de um quadro de pessoal que já é um dos menores do Poder Judiciário da União, o conhecimento de todos os processos de prestação de serviços na Justiça Eleitoral leva em média dois anos.

A diretora do Sintrajud e ex-chefe de cartório Cláudia Sperb destaca que “o Sindicato defende que as funções no TRE sejam providas por pessoal do quadro, como questão de princípio. No entanto, essa anomalia que é a existência de requisitados em tão grande número por tantos e tantos anos não pode ser resolvida com canetadas, sem levar em conta que são pessoas que dedicaram boa parte de suas vidas ao Eleitoral e que os cartórios ficarão inviabilizados sem esses servidores”. Cláudia critica ainda o fato de que a decisão pode abrir mais portas à terceirização de mais serviços.

Rotina inviável e campanha

Organizadora de uma petição em defesa da permanência dos colegas requisitados diante da ausência de quadros próprios da Justiça Eleitoral paulista e do impacto no trabalho, a servidora Adriana Nunes Munhoz falou à reportagem que foi “o desespero” que a moveu a iniciar a coleta de assinaturas de colegas e juízes ao documento que esclarece como a devolução dos requisitados vai inviabilizar o funcionamento dos cartórios. Adriana é chefe da 340ª Zona Eleitoral, em São Vicente, na Baixada Santista.

“O cartório tem atividades cada vez mais complexas. Dois ou três servidores do quadro apenas não conseguem dar conta de fazer tudo que é exigido por TRE, o TSE, o CNJ. E contamos com servidores [requisitados] que já trabalham há muitos anos e estão super eficientes nas atividades que fazem”, explica.

Lutemberg Souza, chefe da 326ª Zona Eleitoral (Ermelino Matarazzo, na capital) destaca que “na maioria das unidades cartorárias do estado os requisitados são a principal força de trabalho. Treiná-los demora tempo, pelo menos dois anos. Não é uma coisa simples trocar um requisitado treinado há anos por outro que vai começar a entender como funciona um cartório eleitoral”, ressalta.

O modelo da petição contra a devolução dos requisitados está disponível aqui — o documento pode ser subscrito por servidores e juízes eleitorais.

Esvaziamento

Adriana ressalta que “os colegas podem ajudar conversando e colocando para os juízes eleitorais a importância dos servidores requisitados para que a eficiência dos cartórios continue exemplar, e que servidores e juízes assinem o ofício conjunto, e mandem individualmente ofício para o Ministro Barroso, por meio de processo formalizado no PJe”, orienta.

Para a servidora, pelo fato de não haver perspectiva de substituição dos requisitados por servidores de quadro efetivo, os aprovados do último concurso (2016), por exemplo, a medida só trará prejuízos. A Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2021, como a dos dois últimos anos, veda nomeações que gerem novas despesas e a realização de novos concursos. E a Emenda Constitucional 95 impacta na compressão das possibilidades de nomeações porque considera a evolução da despesa de pessoal limitada ao teto de gastos.

Outros colegas ouvidos pela reportagem concordam com a avaliação de Adriana. “O impacto nos cartórios é desastroso. Eu perco 100% da minha força de trabalho, pessoas que estão sabem aqui há 15, 16 anos, sabem tudo de Justiça Eleitoral. Essa atitude é contrária a todos os objetivos e missões do TSE e do TRE”, afirmou à reportagem um chefe de cartório do interior do estado.

Os chefes de cartórios estão apreensivos ainda com o fato de que não será possível requisitar novos servidores antes da devolução dos atuais colegas que atuam na Justiça Eleitoral. Com isso, não haverá oportunidade de que o servidor que vai sair ensine a rotina de trabalho e funcionalidades dos programas à pessoa que o substituirá. Ou seja, haverá descontinuidade do fluxo de trabalho e sobrecarga para as chefias, que terão de realizar suas próprias funções e reservar tempo na jornada de trabalho para ensinar as rotinas aos novos requisitados.

Desrespeito

O aspecto humano também preocupa os servidores que chefiam cartórios. Muitos dos requisitados conhecem mais hoje a rotina da Justiça Eleitoral do que a de seus órgãos de origem e dedicaram anos à consolidação de um processo de trabalho considerado de excelência.

Há três anos, por iniciativa do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, houve uma redução do número de cartórios eleitorais em todo o país que levou ao fechamento de 32 unidades no estado de São Paulo. À época o Sintrajud denunciou tal política de “reorganização” como um esvaziamento da própria Justiça Eleitoral.

Agora, em meio aos debates no Congresso Nacional sobre uma ‘reforma’ administrativa, fim da estabilidade dos servidores e atuação subsidiária do Estado (somente nas áreas não gerenciadas pelo setor privado), a devolução dos  requisitados com experiência de atuação no ramo do Judiciário que assegura o exercício democrático do voto é mais uma ameaça à Justiça Eleitoral como instituição pública.

“Se a reforma administrativa é a redução dos quadros e do estado, a Justiça Eleitoral, que sempre foi muito reduzida, se vê frente a uma necessidade premente de ampliar seus quadros. E como se faz isso num cenário no qual estamos indo com muita força para o lado contrário?”, questiona Lutemberg Souza.

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