Caramela Amendola, ex-diretora de base e militante social, morre aos 82 anos


25/02/2022 - Luciana Araujo
Servidora da JF aposentada faleceu em decorrência de uma estenose da válvula mitral; diretoria e funcionários do Sintrajud manifestam pesar à família e amigos.

Carmen na capa do ‘The Guardian’, em 2018 (reprodução).

Neste dia 24 de fevereiro, ironicamente nos 90 anos da conquista das brasileiras ao direito legal de participar da vida política institucional, a categoria judiciária perdeu uma guerreira das lutas em defesa dos direitos trabalhistas, sociais, das mulheres e do conjunto dos oprimidos e explorados. Como disse o colega Elizaldo Veríssimo (o Ely), do TRE, Carmen Sampaio Amendola “foi encantar outras plagas, outros mundos, deixar encantados todos os que dela souberem. E saibam, os que ainda não sabem, que a Carmen sempre foi imortal, mas agora é eterna”.

Servidora da Justiça Federal aposentada, ex-diretora de base do Sintrajud (de 2003 a 2006, representando os colegas do fórum Criminal), participante de todas as greves e mobilizações da categoria enquanto esteve na ativa, Carmen era conhecida como “Caramela”. E fazia justiça ao apelido doce, com sua aparente fragilidade, carinho e respeito nas mais duras polêmicas e desprendimento das qualidades de intelectual militante.

As postagens em sua homenagem na página que mantinha no Facebook (que a filha, Maria, abriu para tornar-se um mural virtual de homenagens à mãe), centenas de depoimentos são unânimes em lembrar que aquela senhora marcou momentos de luta nas vidas de todas as pessoas que manifestam pesar à família.

“Ela é exemplo, porque não deixava espaço vazio no meio da multidão, por menor que fosse a massa dos que se manifestavam contra as nossas injustiças cotidianas. Lá estava a Carmen, carregando a bandeira da Palestina Livre, dos LGBTQIA+, dos negros, das mulheres e, sobretudo, a bandeira da sua classe, a classe trabalhadora” resumiu Ely.

“Anarquista militante das antigas. Anarquista raiz. Talhada nas lutas, que nunca deixou de travar, mesmo as menores delas. Para Caramela, tratava-se de lutas vitais… ‘Toda luta que se preze é uma luta de classe’, me alertou certa vez. Sempre agitada e inquieta, nos confundia com a serenidade e o respeito que impunha quando opinava. E tinha opinião para tudo, sempre lastreada nas suas convicções anarquistas. ‘Entre os reformistas e os comunistas, estou sempre com vocês’, me disse numa das eleições do Sindicato. Levava tudo a sério. ‘Nunca diga ‘atitude nobre’ como algo positivo, porque a nobreza foi a escória do mundo!’, ressaltou em outra oportunidade. Era a simpatia em pessoa. Feliz, sorridente, otimista com a vida. Pessoas como Caramela quase não se vê mais. Aquela pessoa que em qualquer luta você pode contar, sem temer que ela vá dar para trás. É um privilégio realmente poder ter compartilhado um pouquinho da vida com ela”, escreveu Cláudio Klein, servidor do TRF-3.

“Dona Caramela, muitíssimo obrigado por inspirar a mim e tant@s outr@s camaradas a lutar pela construção do socialismo! Venceremos! Caramela, presente!”, saudou o servidor Marcelo Penna Kagaya, do TRT-2.

“Caramela tinha um sorriso cativante, sempre acolhedora. A última vez que falei rapidamente com ela foi num ato na Paulista durante a pandemia. Essa guerreira exemplar já está fazendo falta”, lamentou o diretor do Sindicato Antônio Melquíades.

Caramela foi acometida por uma estenose da válvula mitral, enfermidade que dificulta o fluxo sanguíneo pulmonar para o coração, associada à longevidade. Na terça-feira, 22, teve de ser encaminhada à unidade de terapia intensiva no Instituto do Coração. Mas seu companheiro de vida, Albérico Martins, com quem foi casada por 51 anos, informou prontamente aos amigos que ela estava ” lúcida, tranquila, feliz, com aquela vontade de sempre de continuar na luta para que todos sejam felizes!”

Aos 82 anos, Carmen deixou, além de Al — como carinhosamente chamava o marido —, os filhos, Maria e Paulo, as irmãs Dina e Ana Luiza, e uma multidão de admiradores. Seu corpo foi cremado sem cerimônias fúnebres e a família planeja um ato em homenagem a sua trajetória de vida, para breve. “Ela não queria velório, de jeito nenhum. A comemoração que ela quer é a da luta. Em homenagem a ela, vamos organizar uma ato de homenagem póstumo”, explica Albérico.

Sobre a passagem de Caramela pela vida sindical, Al fez questão de registrar: “Ela teve uma vida de militância no Sindicato, que nunca deixou, sempre quis manter. Desde que ela se filiou ao Sindicato, foi uma militante. Nunca foi alguém que se filiou só para ter a carteirinha. Filiou-se para a luta, e é preciso dizer isso [às novas gerações]. Sempre participou ativamente do Sindicato e da escolha das direções do Sindicato, inclusive nessa última eleição. O Sintrajud foi uma parte da vida dela”, disse.

Maria complementou, emocionada: “Mas quando ela recebeu as coisinhas do Sindicato ficou tão feliz, achou tudo tão bonito”, referindo-se ao kit enviado aos sindicalizados no início deste ano.

Um amor alimentado por ideais

Albérico também lembrou à reportagem que a trajetória de vida de Caramela foi combustível para um casamento de meio século que passou por vários episódios marcantes da história do Brasil. “O que nos uniu mais e manteve nossa união até a morte dela é que partilhávamos ideais comuns, queríamos o bem um do outro, mas acima de tudo o bem da luta pelo comunismo, contra o capitalismo e pelo socialismo. Era uma anarquista de verdade, não suportava a dominação, era fundamentalmente libertária. E parecia fragilzinha, mas tinha muito clara a necessidade do fim do capitalismo e a mudança pelo comunismo, e a necessidade de lutar por isso. Sempre teve muito definido que ou é socialismo ou é a barbárie”, relatou.

E a trajetória de vida confirma a avaliação apaixonada do viúvo. Os dois foram juntos militantes contra a ditadura militar. Atuaram na Juventude Universitária Católica, na Ação Popular – organização clandestina de estudantes que lutaram contra o regime dos quartéis – e no Partido Comunista do Brasil (PCdoB), por um curto período.

Na época da ditadura, antes mesmo de ser uma integrante de grupos contrários ao regime, Caramela chegou a ser detida em uma batida policial em sua casa devido a manter muitos livros, alguns deles “subversivos”. Ela era filha de um livreiro, e essa era outra paixão de sua vida: a literatura. Nesse episódio de detenção, chegou a ser torturada, mas contava a história como parte de uma missão que escolheu trilhar.

Em manifestação organizada pelo Sintrajud, em Brasília, contra a ‘reforma’ da Previdência do governo Lula, em 2003 (Arquivo pessoal).

Após viver um tempo fora do Brasil, em exílio, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, onde militou até 2003. Pouco depois da primeira eleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, apoiado na chamada “Carta aos Brasileiros” e com a proposta de ‘reforma’ da Previdência que instituiu a taxação das aposentadorias dos servidores públicos, migrou para o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). “Fomos filiados ao PT por muito tempo, mas com as mudanças de rumo do partido entendemos que o PSOL estava mais de acordo com os princípios que sempre defendemos na luta”, relatou Albérico.

Nunca abandonou, no entanto, a perspectiva anarquista e o reconhecimento dos parceiros de luta, independente de filiações partidárias. “Ela nunca se filiou ao PSTU, mas era grata aos militantes do PSTU na categoria por se dedicarem a fazer do Sintrajud uma ferramenta de luta”, completou Al.

Em 2018, foi às ruas contra a eleição de Jair Bolsonaro e estampou a capa do jornal inglês ‘The Guardian’ em reportagem sobre a mobilização das mulheres brasileiras para tentar evitar que o capitão da reserva que chamou a filha de “fraquejada” e sempre teve discursos em defesa da tortura, misóginos e racistas fosse alçado ao Palácio do Planalto. Apesar das críticas ao PT, fez campanha para o então candidato Fernando Haddad no segundo turno daquele pleito.

E assim Caramela seguiu até o fim de sua vida. Mesmo ostomizada, participava de passeatas, atos de rua, assembleias. Professora da rede pública aposentada, manteve-se também filiada ao Sindicato dos Profissionais da Rede Oficial de Ensino de São Paulo (Apeoesp). No Sintrajud, onde sindicalizou-se em 1997, permaneceu filiada até o dia de sua morte também.

Feminista, antirracista, antiLGBTfóbica

Pós-graduada em Teoria Literária pela USP em 1970, onde depois tornou-se mestra, escolheu dedicar sua vida acadêmica ao estudo do poder patriarcal na obra de Machado de Assis, especialmente em Dom Casmurro. Sobre a longeva polêmica se Capitu traiu ou não Bentinho, ela não tinha dúvidas: “traiu sim”.

Carmen em ato por respeito à diversidade sexual e de gênero, em 2014 (arquivo pessoal).

Os cabelos assumidamente brancos, conforme a idade avançava, nunca foram sinônimo de sisudez ou negação das lutas libertárias. Em uma manifestação por respeito à diversidade sexual, em 2014, foi convidada a subir num dos caminhões de som e lá de cima acenava animadamente à juventude que no chão buscava respeito à orientação sexual e identidade de gênero de todas as pessoas.

A partir de 2015, incorporou-se à luta antirracista com o vigor que costumava emprestar a todas as causas com as quais se envolvia. Tradutora e revisora, corrigia trabalhos para estudantes carentes que buscavam ingressar em universidades.

Apoiou coletivos negros e participava de atividades da Marcha de Mulheres Negras ouvindo atentamente os debates e declarando sempre querer se “formar para combater o racismo ouvindo as experiências de quem vive a chaga do racismo, para melhor enfrentá-lo”. Desde então, passou a votar somente em candidatos e candidatas negros para cargos eletivos parlamentares, na expectativa de ver ampliada a representatividade da maioria populacional que ainda vive as desigualdades produzidas por uma sociedade fundada na escravização de seres humanos.

Muito mais haveria a ser dito sobre Carmen Caramela Sampaio Amendola. Mas hoje a diretoria do Sintrajud e seus funcionários reafirmam que sua trajetória militante continuará sendo uma referência para a entidade. A manifestação de pesar e solidariedade à família soma-se ao compromisso de seguir trilhando as lutas que fizeram com que ela escolhesse o Sindicato como parte de sua trajetória de vida. Caramela, PRESENTE!

Com o companheiro, Albérico, em manifestação em defesa do povo palestino e contra bombardeios promovidos pelo Estado de Israel (arquivo pessoal).

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