“Bolsolão”: Governo Bolsonaro leva prática da rachadinha ao orçamento federal


14/05/2021 - helio batista
Também chamado de “Tratoraço”, escândalo revela gastos bilionários para compra de apoio parlamentar, em meio à falta de vacinas e paralisação de serviços.

Alvo de mais de 100 pedidos de impeachment e acossado pela CPI da pandemia, o governo Bolsonaro ampliou a lista de crimes de responsabilidade dos quais oferece provas em série. O escândalo da vez é a criação de um orçamento paralelo, cuja destinação de verbas seria a compra de apoio dos parlamentares do Centrão.

Por meio das chamadas “emendas do relator” – mecanismo que havia sido extinto após o escândalo dos “anões do orçamento” em 1993 – o governo teria destinado cerca de R$ 3 bilhões do orçamento do ano passado para despesas indicadas pelos parlamentares, sem previsão na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).

O dinheiro saiu do Ministério do Desenvolvimento Regional, por meio da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf) e, conforme revelou o jornal O Estado de S. Paulo, parte dos recursos foi usada para a compra de tratores com preços superfaturados. O escândalo ganhou o apelido de “tratoraço”, mas está sendo chamado também de “Bolsolão”, numa referência ao Mensalão – a compra de votos no Congresso que quase derrubou o governo Lula (PT), em 2005.

Além de não estarem previstas na LDO, as emendas que compõem o orçamento paralelo não cumpriram nenhuma regra de transparência e não seguiram nenhum critério racional de aplicação dos recursos. Sem passarem por licitação, empreiteiras de pequeno porte receberam milhões de reais da Codevasf para asfaltar estradas em locais de interesse dos políticos.

Entre os parlamentares, somente o relator e um grupo de deputados e senadores tinha conhecimento dos valores a serem distribuídos e de sua destinação, incluindo o ex-presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que indicou obras até no Paraná.

Foto: Carolina Antunes/PR

“Rachadinha” fura o teto

Em contraste com o discurso anticorrupção que elegeu Bolsonaro, o esquema também guarda alguma semelhança com o das “rachadinhas” que se tornaram prática habitual nos gabinetes parlamentares da família presidencial, segundo denúncia do Ministério Público do Rio de Janeiro. O presidente chegou a dizer que havia acabado com a Operação Lava Jato porque não existiria corrupção em seu governo.

O “Bolsolão” ainda vai de encontro ao discurso de austeridade fiscal e Estado mínimo usado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, para atacar o funcionalismo e justificar suas “reformas”.

Neste ano, as emendas de relator, designadas pela sigla RP9, totalizaram volume de recursos muito maior do que no ano passado, à custa de cortes nos gastos obrigatórios do governo em áreas como Previdência Social, pagamento de abono salarial e seguro-desemprego. A voracidade do fisiologismo que ajuda a sustentar Bolsonaro na Presidência da República foi tão grande que, para não furar o famigerado “teto de gastos”, o governo precisou vetar R$ 19,767 bilhões em despesas discricionárias e bloquear a execução de outros R$ 9,3 bilhões.

Na prática, porém, os gastos vetados serão repostos por um crédito suplementar no mesmo valor, conforme projeto de lei já enviado pelo Executivo ao Congresso. Isso permite supor que a farra com dinheiro público que teria acontecido no ano passado prossegue em escala bem mais ampla neste ano.

Serviços públicos paralisados

Reitoria da UFRJ / Divulgação

O orçamento paralelo de 2020 seria suficiente, por exemplo, para realizar o censo, adiado desde o ano passado. O valor também equivale a 10 vezes o orçamento anual da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que nesta semana anunciou dispor de verba para se manter apenas até julho.

Outras universidades federais correm o risco de fechar, assim como diversos serviços públicos podem ser paralisados, num cenário que vem se agravando desde que entrou em vigor a Emenda Constitucional do teto de gastos (EC 95/2016) e que pode piorar ainda mais se for aprovada a ‘reforma’ administrativa em tramitação no Congresso (PEC 32/2020). No caso das universidades, existe a ameaça adicional de fechamento dos hospitais universitários, em plena pandemia.

A pandemia, aliás, aumenta a gravidade do escândalo, dado que o país soma mais de 430 mil mortes causadas pela covid-19, em meio à falta de vacinas, testes, leitos hospitalares, medicamentos e de auxílio financeiro para as pessoas com atividades econômicas suspensas pelo isolamento social. Com os R$ 3 bilhões do orçamento paralelo, o governo poderia pagar um mês de auxílio emergencial no valor de R$ 600 (o valor que era pago no ano passado) para 5 milhões de pessoas.

Em relação às vacinas, o orçamento paralelo de 2020 corresponde a quase um terço da estimativa que o governo apresentou no começo deste ano para a compra dos imunizantes. Só da Oxford/AstraZeneca, vacina que está sendo produzida na Fiocruz, o montante garantiria a produção de mais de 176 milhões de doses. Em vacinas da Pfizer, seriam cerca de 50 milhões de doses.

Como se sabe, no entanto, as prioridades do governo Bolsonaro são bem diferentes e sua realidade paralela agora conta com um orçamento paralelo.

 

A “folha corrida” do governo Bolsonaro

Eleito com discurso anticorrupção, presidente e sua família acumulam escândalos em série.

O “Bolsolão” agride o princípio constitucional da impessoalidade na administração pública, dado o personalismo na aplicação das verbas – ofícios de parlamentares obtidos pelo O Estado de S. Paulo comprovam esse aspecto. Além disso, o esquema contraria a Lei de Responsabilidade Fiscal e pelo menos três dispositivos da LDO. O superfaturamento dos tratores pode indicar outros crimes, como desvio de verbas e até lavagem de dinheiro.

De resto, o escândalo se soma à longa série de indícios de corrupção no governo Bolsonaro, envolvendo não apenas o presidente como também sua família. A lista a seguir traz alguns dos casos de maior repercussão:

Outubro de 2019: candidaturas laranja – o então ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antonio, foi denunciado por criar um esquema para desviar recursos do Fundo Eleitoral durante a eleição de 2018, usando o dinheiro destinado a candidaturas femininas. Marcelo presidia em Minas Gerais o diretório do PSL, partido que elegeu Bolsonaro.

Fevereiro de 2020: morte de Adriano da Nóbrega – apontado como chefe da milícia que teria assassinado a vereadora do Rio Marielle Franco (Psol) e seu motorista Anderson Gomes em março de 2018, o ex-PM Adriano da Nóbrega foi morto pela polícia no interior da Bahia, onde estava foragido. A mãe e a filha de Nóbrega trabalharam no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, filho do presidente. No mês passado, foram reveladas escutas do Ministério Público do Rio de Janeiro que sugerem ter havido contato entre os milicianos e “o homem da casa de vidro”, que fontes do MP-RJ afirmam tratar-se do presidente e a referência à “casa de vidro” seria o Palácio do Planalto, após a morte de Adriano.

Outubro de 2020: rachadinhas – O MP-RJ denunciou à Justiça Flávio Bolsonaro, Queiroz e mais 15 pessoas por organização criminosa, peculato, lavagem de dinheiro e apropriação indébita entre os anos de 2007 e 2018, no “esquema das rachadinhas”. Segundo a denúncia, parte do salário de funcionários de Flávio no gabinete da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro seriam devolvidas ao parlamentar.

Abril de 2020: interferência na PF – ao deixar o Ministério da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro acusou Bolsonaro de tentar interferir na Polícia Federal para obter acesso a informações sigilosas e relatórios de inteligência. O inquérito aberto no STF completou um ano no final de abril e foi prorrogado por mais 90 dias. A Corte ainda não definiu se Bolsonaro pode depor por escrito.

Junho de 2020: prisão de Queiroz – o policial militar aposentado Fabrício Queiroz foi preso no escritório do advogado Frederico Wassef, em Atibaia (SP). Envolvido com milícias, Queiroz seria o coordenador do esquema de “rachadinha” no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, hoje senador (Republicanos-RJ).

Agosto de 2020: cheques de Queiroz – denúncia aponta que o presidente e a primeira-dama teriam recebido R$ 89 mil em depósitos de Queiroz e da esposa dele, Marcia Aguiar, entre 2011 e 2016.  Nesta semana, o ministro do STF Marco Aurélio Mello negou a abertura de inquérito sobre o caso, seguindo a posição da PGR, que alegou falta de provas.

Dezembro de 2020: relatórios da Abin – a ministra do STF Cármen Lúcia manda a PGR investigar se a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) produziu relatórios para ajudar Flávio Bolsonaro a se defender no processo das “rachadinhas”.

Dezembro de 2020: empresa do “04” – o deputado federal Ivan Valente (Psol-SP) protocolou na Procuradoria da República no Distrito Federal pedido de apuração sobre eventual tráfico de influência e lavagem de dinheiro praticados por Jair Renan Bolsonaro, o filho “04” de Bolsonaro. Uma empresa de eventos criada por Renan teria recebido doações de empresas para obter decisões favoráveis do governo federal.

Março de 2021: mansão de R$ 6 milhões – a imprensa noticia que Flávio Bolsonaro comprou uma mansão de quase R$ 6 milhões em bairro nobre de Brasília. O valor é muito superior ao patrimônio declarado pelo senador à Justiça Eleitoral e as prestações do financiamento são incompatíveis com seus rendimentos.

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