No último domingo, 20 capitais brasileiras e várias cidades foram tomadas por manifestações contra o racismo e as medidas do governo Bolsonaro no contexto da pandemia do novo coronavírus, que expõem mais fortemente à contaminação os segmentos mais empobrecidos da população. Respeitando o distanciamento social e com uso obrigatório de máscaras, cerca de cinco mil pessoas se reuniram no Largo da Batata, na capital do estado de São Paulo, depois que o Judiciário impediu a realização do ato na Avenida Paulista. O principal mote foi “Vidas negras importam”, mas o “Fora, Bolsonaro” era a segunda palavra de ordem mais gritada. Neste domingo (14 de junho), a principal avenida da cidade será ocupada a partir das 14 horas por nova manifestação para denunciar o racismo e defender o fim do governo. A concentração se dará na altura do Masp e as organizações convocantes ressaltam que todos devem usar máscaras, viseiras de proteção, respeitar as regras de segurança e retornar para casa tão logo acabe o protesto.
A CSP-Conlutas, central sindical à qual o Sintrajud é filiado, apoia a manifestação e estará representada. A diretoria do Sindicato também manifesta solidariedade e apoio ao ato, compreendendo que é um grito dos setores mais afetados pela pandemia. Também estão convocados atos em outros estados do país.
Os organizadores dos atos ressaltam que nas periferias e favelas do país nunca houve direito à quarentena necessária e às medidas sanitárias nesses três meses de pandemia do novo coronavírus. Ao contrário, a maioria dos moradores destas áreas foram obrigados a continuar trabalhando – muitos em regime de contratação precarizada ou ‘uberizada’, sem direitos.
A letalidade do novo coronavírus é altíssima, mas as desigualdades sociorraciais no país potencializam a tragédia. O abastecimento de água tratada tão importante para a higienização de compras, mãos, roupas, sapatos e tudo o que é levado das ruas para dentro das residências é artigo “de luxo” em muitas comunidades pobres e bairros periféricos, num país que joga fora anualmente 40% do líquido no processo de distribuição.
A precariedade habitacional também dificulta o isolamento de pessoas doentes e o distanciamento necessário.
O governo federal dificulta ao máximo o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 a R$ 1.200 aprovado pelo Congresso Nacional, forçando parcela da população a sair de casa todos os dias para garantir o sustento das famílias. Até a publicação desta reportagem, mais de dez milhões de brasileiros ainda aguardavam a primeira parcela do benefício assistencial.
Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro segue minimizando a situação, tentou impedir a divulgação de dados feita pelo Ministério da Saúde e até mesmo o Portal da Transparência permaneceu quase 24 horas fora do ar.
O Judiciário tem legitimado a política classificada pela diretoria do Sintrajud como “de morte”. Em abril, o TRT-2 derrubou liminar concedida na primeira instância que obrigava uma empresa de entrega de comida por aplicativos a pagar assistência financeira aos trabalhadores que prestam serviços durante a pandemia. Nesta sexta-feira, a 13ª Vara da Fazenda Pública negou liminar para impedir a flexibilização da quarentena no estado, o chamado ‘Plano SP’.
No estado, a quarentena nunca atingiu mais de 55% da população. E mesmo com uma taxa de letalidade acima da mundial, o governo João Doria deu início ao ‘plano’ de reabertura das atividades econômicas que já provocou a alta dos índices de contaminação e mortes em diversas cidades. Nesta sexta-feira o Brasil chegou ao segundo lugar mundial em óbitos pela covid-19, ficando atrás apenas dos EUA. São Paulo concentra quase 160 mil casos e beira as 10 mil mortes.
A pandemia expôs de forma ainda mais intensa também como o racismo é componente estrutural da sociedade brasileira e a violência estatal se intensificou. Em todas essas condições, a maioria de brasileiras e brasileiros são pessoas negras. Este é o resultado das históricas desigualdades sociais consolidadas no país que teve como política de Estado o extermínio da componente negra da população para “branquear” a sociedade colonizada. Pretos e pardos também são maioria dos infectados pelo coronavírus e morrem mais em razão da doença. Estudo realizado pela Prefeitura de São Paulo e divulgado em abril revelou que os moradores pretos da cidade têm chance 62% maior de morrer pela covid do que os brancos. Entre os paulistanos pardos, o índice de risco de morte é 23% maior que o de pessoas brancas.
Durante a quarentena, nem mesmo o lema ‘Fique em casa’ garante segurança à população negra e pobre. Levantamento realizado pela ‘Ponte Jornalismo’ apontou que em abril deste ano a PM paulista matou 116 pessoas, de acordo com os registros de “morte decorrente de intervenção policial”. O número é o maior para o mês desde 2001 e equivale a uma morte a cada seis horas. No primeiro quadrimestre foram 373 assassinatos provocados por agentes policiais. No Rio de Janeiro, o assassinato do menino João Pedro Matos Pinto, cuja casa foi metralhada com 72 tiros de fuzil numa operação policial eivada de irregularidades, foi um dos estopins dos protestos. João Pedro tinha apenas 14 anos.
Outro caso que chocou o país e aumentou a indignação foi o do menino Miguel Otávio, de apenas 5 anos. O garoto morreu após ser colocado sozinho num elevador e mandado ao nono andar de um edifício pela empregadora de sua mãe, que na hora levara os cachorros criados pelos patrões a um passeio na vizinhança e deixara o filho sob cuidado da primeira-dama da cidade de Tamandaré, no estado de Pernambuco. Depois de mandar o menino a uma busca solitária pela mãe que resultou na queda da criança de uma altura de 35 metros, Sarí Mariana Gaspar Hacker Corte Real negou que tivesse feito o que as câmeras de segurança do elevador no edifício de luxo no Recife registraram.
A realização de manifestações neste momento tão difícil se inspira nos protestos deflagrados nos Estados Unidos após a morte do agente de segurança George Floyd, no estado de Minnesotta, no dia 25 de maio. Floyd foi imobilizado sob o joelho do policial Derek Chauvin durante nove minutos, vindo à morte por asfixia. O homem negro assassinado por um agente público após abordagem marcada pelo racismo explícito estava desarmado e a suposta acusação era ter comprado um maço de cigarros com uma nota falsa de 20 dólares americanos. Outros três policiais assistiram a cena sem nenhuma intervenção e um deles, Thomas Lane, já foi solto após pagar fiança no valor de 750 mil dólares, arrecadados em uma espécie de vaquinha virtual. A indignação fez explodir manifestações em todas as regiões dos EUA e em diversos países do mundo.