Marco da transição brasileira para a democracia, a Lei da Anistia (Lei 6.683/79) completou 40 anos nesta semana em meio a críticas de que foi usada como justificativa para o país descumprir convenções internacionais de direitos humanos e manter impunes as torturas, os sequestros, os assassinatos e outros crimes cometidos em nome do regime militar.
No momento em que a Presidência da República volta a ser ocupada por um militar (que elogia o regime instaurado em 64 e louva como herói um dos torturadores), a efeméride trouxe de volta também as críticas ao papel do Judiciário. “Estou profundamente desapontado com nosso Poder Judiciário”, disparou o ex-ministro da Justiça (governo FHC) José Carlos Dias, em seminário realizado no Centro Universitário Maria Antonia, da USP.
O evento, que discutiu os 40 anos da Lei da Anistia e o legado da ditadura militar, foi promovido pelo Centro de Arqueologia e Antropologia Forense (Caaf) da Unifesp, responsável pela identificação das ossadas de presos políticos encontradas em uma vala clandestina no cemitério de Perus.
“Alguns membros do Judiciário merecem todo o respeito, mas o STF [hoje] é uma vergonha”, completou Dias, que também preside a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo e foi coordenador da Comissão Nacional da Verdade.
Em 29 de abril de 2010, o STF rejeitou o pedido da OAB por uma revisão da Lei da Anistia. “Só uma sociedade superior qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos de humanidade é capaz de perdoar”, disse na ocasião o então presidente do Supremo, ministro Cezar Peluso.
Em novembro daquele mesmo ano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) condenou o Brasil a adotar uma série de medidas para se enquadrar nas convenções internacionais de que o país é signatário. Uma das medidas seria levar a julgamento quem cometeu crimes imprescritíveis como a tortura em nome do Estado durante a ditadura – como fizeram, aliás, outros países latino-americanos que passaram por regimes autoritários.
Foi preciso abrir outro processo no STF para obrigar o governo brasileiro a cumprir a sentença da CIDH, mas a ação (ADPF 320) ainda está na fase de instrução. Já o processo de 2010 (ADPF 153) está pendente de embargos de declaração, sob a relatoria do ministro Luiz Fux. Enquanto não sai a decisão final, ficam paradas 40 denúncias feitas à Justiça Federal em vários estados contra 60 agentes públicos ou a serviço da União.
“Crimes conexos”
O Supremo considerou que crimes como tortura e assassinato praticados pelos agentes públicos na época da ditadura foram conexos àqueles considerados como crimes políticos (como a própria oposição à ditadura, como panfletagens, greves e atuação sindical – à época criminalizados pelos decretos e atos institucionais). Esses atos foram anistiados por um acordo na transição para a democracia. Por isso, na compreensão dos ministros não caberia ao STF rever o acordo e, portanto, condenar os criminosos.
O placar foi de 7 a 2 – votaram conforme esse entendimento os ministros Eros Grau (relator), Cármen Lúcia, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso. Os votos contrários foram de Ricardo Lewandowski e Ayres Britto.
“A tortura não é crime conexo”, afirmou o ex-ministro José Carlos Dias, concordando com Lewandowski e Britto. “Não temos a menor dúvida de que tortura e assassinatos faziam parte de uma política de Estado; portanto, nossos generais ditadores são coautores de homicídios.”
Para Suzana Lisbôa, viúva de um dos mortos pelo regime de 64, a anistia foi “parcial, restrita”, mas falar em revogação da lei de 1979 é um “soco no estômago”.
“O que precisamos é interpretar a lei”, disse Suzana, ao participar do seminário no Centro Maria Antonia. Os restos mortais do marido dela, o militante Luiz Eurico Tejera Lisboa, foram os primeiros a serem encontrados na busca por desaparecidos da ditadura. A localização, no cemitério de Perus, também acaba de completar 40 anos. Ainda neste mês, a Justiça de São Paulo negou o pedido da família para mudar a causa mortis no atestado de óbito, que ainda consta como “suicídio”.
Suzana lembra que o tema dos mortos e desaparecidos políticos ficou “debaixo do tapete” durante muitos anos. “Logo depois da Lei da Anistia, falar desse assunto era ‘revanchismo’; fomos abandonados até pela esquerda.”
“Elite rifa a democracia”
O procurador federal Marlon Weichert, coordenador do Grupo de Trabalho Memória e Verdade, considera que a impunidade dos crimes da ditadura se deve unicamente à decisão do Supremo de não julgar as ADPFs.
No seminário, ele destacou que essa é uma decisão política e lembrou que desde 2016 o Brasil é o único país da América Latina a deixar os criminosos sem julgamento – naquele ano, El Salvador entrou para a lista dos que anularam as leis de anistia.
Weichert comparou as ditaduras militares que assolaram o continente e concluiu que o regime brasileiro se diferenciou pela longevidade (21 anos), que atravessou gerações e instaurou uma aparente normalidade. Além de uma contínua produção normativa, o governo manteve a impessoalidade, em meio à sucessão dos generais no poder.
As consequências desse período, segundo o procurador, somam-se à nossa longa história de Estado autoritário para afastar do cotidiano os valores democráticos. “Sempre que a elite econômica acha que vai ganhar mais dinheiro sem democracia, ela rifa a democracia”, afirmou. “E é com essa elite, que não tem apego aos valores democráticos, que se pactuou a transição.”
O procurador avaliou que, após muita luta por parte de um restrito grupo de pioneiros, a chamada “justiça de transição” ganhou amplo espaço no Ministério Público Federal, mas ainda “empaca” no âmbito do Judiciário.
Ele atribuiu tal resistência a uma série de fatores, como a estrutura fortemente hierarquizada desse Poder e o perfil social dos membros da magistratura. “Mas as instituições são espaços em disputa, e a disputa se dá todos os dias”, declarou. “O Judiciário é transformador apenas de forma lateral, pois o que realmente transforma é a política.”
Ofendida por Bolsonaro, família Santa Cruz estuda o que fazer
Irmã de Fernando Santa Cruz esteve no seminário do Centro Maria Antonia.
Entre os muitos participantes do seminário que foram presos políticos ou tiveram familiares perseguidos pela ditadura, o evento contou com a presença de Rosalina Santa Cruz. Professora do curso de Serviço Social da PUC/SP, Rosalina é irmã de Fernando Santa Cruz – ex-militante da oposição ao regime que foi morto pela repressão e cuja memória foi atacada pelo presidente Jair Bolsonaro no final do mês passado.
O presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, filho de Fernando e sobrinho de Rosalina, subscreveu com outros 12 ex-presidentes da entidade uma interpelação ao presidente, ajuizada no Supremo Tribunal Federal.
Em resposta à interpelação, Bolsonaro negou ter tido a intenção de ofender, embora tenha lançado dúvidas sobre as circunstâncias da morte de Fernando. “Limitei-me a expor minha convicção pessoal em função de conversas que circulavam à época”, afirmou o presidente. Logo depois de receber a resposta, o ministro do STF Luis Roberto Barroso arquivou a interpelação.
Ao Sintrajud, Rosalina Santa Cruz disse que sua família ainda busca orientação sobre quais medidas pode tomar daqui por diante.
Também nesta semana, em outro acontecimento relacionado à ditadura militar e à Lei da Anistia, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Rogério Schietti votou pela retomada do processo sobre o caso Riocentro.
A ação é resultado de um recurso do Ministério Público Federal (MPF), que busca levar a julgamento os ex-militares implicados no frustrado atentado a bomba, ocorrido em maio de 1981. Para o MPF, o atentado foi um crime contra a humanidade, que é imprescritível. Após o voto de Schietti, que é relator do caso, o julgamento do recurso na Terceira Turma do STJ foi suspenso por um pedido de vista do ministro Reinaldo Soares da Fonseca. Não há data para a retomada.