A liberação das armas e o feminicídio


11/06/2019 - Shuellen Peixoto

Integrantes do Coletivo de Mulheres do Sindicato no 8 de março de 2018. Foto: Kit Gaion

Uma pesquisa realizada pelo Ibope em março, após o primeiro decreto do presidente Jair Bolsonaro (PSL) que flexibilizou a posse de armas, aferiu que 73% dos brasileiros são contrários à maior liberalização do porte de armamentos para cidadãos comuns (direito a transportar a arma fora de casa) e 61% são contrários à facilitação da posse.

Esta foi uma das propostas de campanha do presidente eleito, com o argumento de permitir às pessoas o direito de autodefesa. A medida causa preocupação também a especialistas, principalmente diante da alta dos números de feminícidios e de violência doméstica. Apenas no primeiro trimestre de 2019, o estado de São Paulo registrou um aumento de 76% nos casos de assassinatos de mulheres associados à condição de gênero, se comparado ao mesmo período do ano anterior.

Um problema nacional

De acordo com o ‘Relógio da Violência’, ferramenta disponibilzada na internet pelo Instituto Maria da Penha, a cada 16,6 segundos uma mulher é ameaçada com faca ou arma de fogo. O 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontou em 2018 que três mulheres por dia são vítimas de feminicídio no país. Na maioria dos casos os agressores estão na mesma casa.

Para Claudia Santos Garcia, promotora de justiça do Ministério Público do Espírito Santo, a liberação da posse ou uso de arma de fogo pode aumentar o risco de feminicídio. “As mulheres têm morrido pelas mãos dos seus (ex) companheiros e no ambiente doméstico. Por isso, entendo que sim, a arma de fogo é um elemento que potencializa o risco de feminicídio”, afirmou.

Para a promotora, o combate ao feminicídio não passa pelo endurecimento das leis e, muito menos, pela facilitação da posse de armas. “Apenas através de uma educação pela qual meninos e meninas sejam ensinados a respeitar o direito humano um do outro, onde as partes de um relacionamento tenham os mesmos direitos, é que será possível combater esse quadro alarmante de violências que temos vivenciado”, destacou. “Não precisamos de endurecimento de leis, precisamos que as leis sejam aplicadas e políticas públicas de enfrentamento às violências contra as mulheres, com perspectiva de gênero, sejam implementadas” disse Claudia Garcia.

Lei Maria da Penha

A promotora também vê com ressalvas as recentes alterações na Lei Maria da Penha, introduzidas com a Lei Federal 13827/19, que estabelece que o delegado ou agente poderá determinar que o agressor saia de casa, mantendo distância da vítima até a análise do juiz, entre outras medidas protetivas. A medida deve ser comunicada à Justiça em 24 horas, que decidirá pela manutenção ou revogação.

“As mulheres em situação de violência doméstica têm pressa, não temos dúvidas. É dever do Estado de direito conferir proteção às mulheres, no entanto, a não observância à Constituição Federal, ao contrário do que inicialmente possa se imaginar, fragiliza todo o Sistema de Justiça. A Lei Maria da Penha, que completa 13 anos, já passou por ações que questionaram sua constitucionalidade. Não raras vezes ainda se levantam, mesmo após o Supremo Tribunal ter declarado a constitucionalidade da Lei, para questionar sua legalidade, e esses questionamentos indubitavelmente enfraquecem a Lei”, finalizou.

 

O feminicídio em SP

O Ministério Público do Estado de São Paulo analisou 364 denúncias sobre mortes violentas de mulheres ocorridas entre março/2016 e março/2017.

  • 72% das vítimas de feminicídio foram atacadas em ambiente doméstico, em 2 de cada 3 casos o local era a residência da vítima.
  • 240 casos (65%) ocorreram em contexto de relações de afeto (praticados por namorados, maridos, parceiros fixos ou ex).
  • 58% dos casos aconteceram durante a noite, entre 18h e 6h.
  • Em 48% dos casos foram desferidos mais de dois golpes ou disparos contra a vítima.
  • Em 45% dos crimes cometidos por homens com quem a vítima se relacionava, a principal motivação foi a mulher decidir pela separação. Em 30% dos casos a alegação foi “ciúme”/sentimento de posse/machismo.
  • O levantamento que mostrou aumento de 76% dos feminicídios neste ano foi realizado pelo portal G1 e pela GloboNews. Foram 37 vítimas nos 3 primeiros meses de 2019, contra 28 no ano passado (8 em cada 10 aconteceram dentro da casa da vítima).

Fonte: Raio X do Feminicídio em SP: é possível evitar a morte (MPSP, 2018) e G1/SP

Entrevista

Veja a íntegra da entrevista com  a promotora de justiça do Ministério Público do Espírito Santo Claudia Santos Garcia, coordenadora do estadual do NEVID/ MPES (Núcleo de Enfrentamento às Violências de Gênero em Defesa dos Direitos das Mulheres):

Sintrajud –Depois de mais de 10 anos de vigência da Lei Maria da Penha, é impossível negar os avanços. Segundo dados de 2015 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a lei contribuiu para uma diminuição de cerca de 10% na taxa de homicídios contra mulheres praticados dentro das residência das vítimas. No entanto, os dados seguem alarmantes, segundo os dados divulgados pelo G1, em São Paulo, 88 mulheres são agredidas por dia. O que a senhora acha que é preciso avançar na lei e no atendimento às vítimas para diminuir estes números?

Claudia Santos Garcia – A Lei Maria da Penha é reconhecida, reiteradamente, como uma das três melhores leis no mundo de enfrentamento às violências contra as mulheres. Não obstante, os números de violências contra as mulheres continuam alarmantes, numa crescente. Vivemos uma violência endêmica. O feminicídio, compreendido como uma morte anunciada é o ápice das violências sofridas pelas mulheres em um relacionamento íntimo de afeto abusivo. Nesse sentido, é urgente a implementação das políticas públicas traçadas na Lei Maria da Penha. É preciso avançar na implementação das políticas integradas de proteção às mulheres. A Lei estabelece que serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária e psicossociais, porém desafio o município brasileiro que integralizou esses direitos. Não raro encontramos mulheres que não querem acabar com seus relacionamentos, querem viver com seus companheiros, porém livre de violências, portanto, o que falta? Falta a implementação integral e efetiva dos dispositivos da Lei Maria da Penha.

Sintrajud – Como avalia alterações introduzidas na Lei Maria da Penha pela Lei nº 13 827/2019 que concede a possibilidade de aplicação de medida protetiva de urgência por Delegados de polícia? Quais as consequências possíveis para as vítimas?

Claudia Santos Garcia – As mulheres em situação de violência doméstica têm pressa, não temos dúvidas. É dever do Estado de direito conferir proteção às mulheres. A Lei Maria da Penha é uma Lei de proteção integral, nesse sentido, o Ministério Público brasileiro vem atuando em construção de políticas de prevenção às diversas violências sofridas pelas mulheres e de repressão, responsabilizando os autores desses crimes. A recente alteração da Lei é vista com reservas, nossa Lei Maria da Penha é perfeita, o que precisamos é que o Executivo implemente as políticas que ali foram dispostas. A não observância à Constituição Federal, ao contrário do que inicialmente possa se imaginar fragiliza todo o Sistema de Justiça. A Lei Maria da Penha, que este ano completa 13 anos, já passou por ações que questionaram sua constitucionalidade, não raras vezes ainda se levantam, mesmo após o Supremo Tribunal ter declarada a constitucionalidade da Lei, para questionar sua legalidade.  Esses questionamentos indubitavelmente enfraquecem a Lei.

Sintrajud – No primeiro trimestre de 2019, houve um avanço dos números de feminicídio no Brasil, em São Paulo, o crescimento foi de 76%. Neste contexto, qual sua avaliação sobre o decreto de facilitação do porte de arma? Pode ser um elemento para piorar este quadro?

Claudia Santos Garcia – No Espírito Santo temos monitorado através do “Mapa de mortes violentas de mulheres no ES: de A à Z” todos os assassinatos de mulheres ocorridos nos municípios Capixabas desde o ano de 2016. Nesse sentido temos verificado, por exemplo, no ano de 2019, que mais de 50% das mortes de mulheres tiveram como meio utilizado a arma de fogo. Somado a isso, temos que mulheres têm morrido pelas mãos dos seus (ex) companheiros e no ambiente doméstico. Pesquisas nacionais e internacionais vêm mostrando que a presença de uma arma de fogo num ambiente doméstico onde haja conflito potencializa o risco de feminicídio. Protocolos que avaliam o risco de agravamento de violências contra as mulheres mostram que armas registradas ou não potencializam a violência contra as mulheres. Nesse sentido, entendo que sim, a arma de fogo é um elemento que potencializa o risco de feminicídio.

Sintrajud – Seria preciso um endurecimento da lei do feminicídio para combater este quadro?

Claudia Santos Garcia – O enfrentamento às violências contra as mulheres não é tão-somente uma questão de política criminal, importante que se entenda que o direito penal atua após o crime ter ocorrido, age sob o viés repressivo. Uma vez ocorrido o crime, precisamos de uma resposta rápida do Estado garantindo a proteção das vítimas sobreviventes e o respeito aos familiares daquelas que perderam suas vidas. A Lei do feminicídio nomeou o fenômeno de mortes intencionais onde mulheres morrem por serem mulheres, por questão de discriminação, menosprezo e ódio pela sua condição de ser mulher, morre-se por ser mulher. A Lei deu visibilidade a um fenômeno onde mulheres vinham morrendo pelas mãos dos seus parceiros, e suas mortes eram justificadas como crimes de honra, por ciúmes, pelo fato do homem não aceitar a separação. Entendemos que o endurecimento das leis não alterará a origem do problema. Apenas através da educação onde meninos e meninas sejam educados para respeitar o direito humano um do outro, onde as partes de um relacionamento tenham os mesmos direitos é que será possível combater esse quadro alarmante de violências que temos vivenciado. É preciso desconstruir esse modelo machista fruto de um patriarcado histórico onde meninos ainda são ensinados a não chorarem, a serem os provedores, não demonstrarem seus sentimentos, essa educação que, aliás, é também uma violência de gênero contra meninos, apenas tem contribuído com uma mensagem aos homens: de que conflitos sejam resolvidos através da violência. Violências gerando violências. Não precisamos de endurecimento de Leis, precisamos que as leis sejam aplicadas e políticas públicas de enfrentamento às violências contra as mulheres com perspectiva de gênero sejam implementadas.

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