‘A imagem que tenho de Bolsonaro é a do torturador’, afirma irmã de Fernando Santa Cruz


01/08/2019 - Luciana Araujo

A professora do curso de Serviço Social da PUC/SP Rosalina Santa Cruz concedeu entrevista exclusiva à reportagem do Sintrajud para falar sobre a mais recente crise institucional aberta nesta semana por declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre o assassinato do irmão dela, o militante Fernando Santa Cruz. Após o presidente da República ter declarado que teria conhecimento sobre como Fernando foi morto e seu corpo desapareceu, entidades da sociedade civil, instituições do Estado brasileiro e partidos, além da família, cobram explicações.

Doze ex-presidentes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o atual presidente da instituição, Felipe Santa Cruz, filho de Fernando e sobrinho de Rosalina, subscreveram interpelação ao presidente, ajuizada ontem no Supremo Tribunal Federal. Nesta quinta-feira (1º de agosto), o ministro Luís Roberto Barroso despachou dando ao presidente da República prazo de 15 dias “para, querendo, apresentar resposta à presente interpelação.” Se Bolsonaro não se manifestar poderá ser formalmente denunciado por crime de responsabilidade.

A família de Fernando analisa também a possibilidade de ir à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) caso o Estado brasileiro não cumpra sua obrigação constitucional e não  cobre a Bolsonaro a responsabilidade pela declaração que configura crime de cumplicidade.

Em nota divulgada neste dia 29, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público Federal ressaltou que “a responsabilidade do cargo que ocupa impõe ao Presidente da República o dever de revelar suas eventuais fontes para contradizer documentos e relatórios legítimos e oficiais sobre os graves crimes cometidos pelo regime ditatorial. Essa responsabilidade adquire ainda maior relevância no caso de Fernando Santa Cruz, pois o presidente afirma ter informações sobre um crime internacional que o direito considera em andamento.”

As declarações de Bolsonaro são ainda mais graves porque no último dia 24 de julho, sob seu governo, a Comissão de Mortos e Desaparecidos – órgão vinculado ao governo – emitiu a certidão de óbito de Fernando Santa Cruz atestando a causa da morte como violência “causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985” (veja a imagem da certidão ao final da entrevista). Em retaliação, neste dia 1º, o governo publicou no Diário Oficial a troca de quatro nomes de integrantes do colegiado, estabelecendo uma maioria de militares e filiados ao seu próprio partido, o PSL. Questionado, o presidente zombou mais uma vez das instituições e afirmou que a motivação da mudança é o fato de que “esse governo é de direita”.

Rosalina Santa Cruz ao lado do quadro com a foto do irmão, Fernando (Arquivo pessoal).

 

Sintrajud – A família vai acionar o STF para cobrar a responsabilidade sobre a questão, mas recentemente o presidente da Corte anunciou um “pacto” com o Executivo e o Legislativo para promover o que considera as reformas necessárias ao país e chamou a ditadura empresarial-militar de “movimento”. Quais as expectativas em relação ao papel do Judiciário nesse processo que estão iniciando?

Então, eu não tenho uma avaliação de que possa afirmar que eu acredite que a gente consiga, ainda mais nesse momento político, ter uma resposta boa para nós e para os setores progressistas em geral, mas acredito que temos que fazer [essa cobrança]. Nós e a sociedade. Não só no STF como também na Câmara [dos Deputados, onde poderia ser acolhido constitucionalmente um pedido de impedimento], mesmo sabendo a correlação de forças, como vimos na votação do impeachment da Dilma. Nossa representação federal é muito ruim, nos envergonha como conseguimos permitir ter um avanço dessa direita, mas acho que como sociedade – porque nós, a família, não temos esses recursos – temos que ir a todas as instâncias para mostrar o que está acontecendo no Brasil. A atitude dele [o presidente Jair Bolsonaro] tem repercussão internacional. E considero que até aquela fala do Trump o elogiando foi fruto do desgaste interno que o governo já está [enfrentando]. O caso do Fernando deu para a gente uma dimensão de que a sociedade não está mais aceitando isso, houve manifestações de todos os setores.

Das mais variadas colorações ideológicas…

Sim. Até o governador de São Paulo soltou uma nota, de imediato, independente do apoio dele e das relações que possa ter com Bolsonaro, a GloboNews teve uma posição que me surpreendeu, progressista, humana. Porque a questão do Fernando não é dele, quando se fala dele atinge-se a todos os nossos desaparecidos, a anistia, a visão que se comprovou por documentos oficiais de um golpe de Estado no Brasil. E ele tem feito isso, tem dito que é a favor da tortura, de comemorar o golpe como se tivesse sido uma revolução. Tudo o que ele vem fazendo é um desrespeito a posições do Estado brasileiro.

E ele tenta desmoralizar permanentemente o Estado, não só aos mortos e desaparecidos. Ir numa barbearia tratar um tema como esse, ridicularizar uma questão como essa, que atinge a todos nós, depois de 40 anos de luta, de termos ido a todas as instâncias para provar que Fernando foi morto pelo Estado. Então, ele ir numa barbearia para dizer que Fernando foi morto por companheiros é uma coisa absurda, de uma desqualificação sem precedentes. E na postura de um presidente da República é inacreditável que tenha dito e reafirmado [tais coisas]. Quando ele diz que a Comissão da Verdade é “uma balela”, e todas essas entrevistas ele dá em tom coloquial – saindo de casa, numa barbearia, num boteco, dando risada – como se fosse um assunto qualquer. Um desrespeito com o Estado e com a própria posição dele. Nunca vi uma coisa tão grotesca. Ele está nos levando a uma situação de vergonha no mundo inteiro.

Então, eu acredito que o STF vai responder, não pode ficar só nas mãos da sociedade. Todos os jornais estão dando o assunto na primeira página, numa posição que não tivemos nem na morte do [Vladimir] Herzog. A sociedade também já não aguenta esse tipo de desrespeito.

Sim. Por outro lado, o Brasil já foi condenado duas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por negligência na responsabilização aos torturadores e agentes dos crimes da ditadura, e até o momento o Supremo não assumiu a responsabilidade demandada pela Corte Internacional. Como isso impacta nessa postura, que configura um crime do presidente da República e outras autoridades?

Então, nós estamos avaliando a possibilidade de recorrer à Corte Internacional [de Direitos Humanos], porque temos um processo sobre o caso do Fernando e do Eduardo [Collier Filho, amigo com quem Fernando se encontraria quando foi preso], de 1975. Quando estávamos procurando por ele, solicitamos à Corte que pedisse informações ao Brasil, e ela pediu. Na época o Brasil respondeu que não tinha informações sobre a prisão. Quando teve a Comissão da Verdade nós reabrimos esse processo colocando que estava provado que a ditadura tinha mentido. E agora vamos acionar a CIDH informando que temos um fato novo, que é essa declaração do presidente Bolsonaro, e que o Brasil continua sem tomar as medidas que esperávamos, em relação ao Araguaia e aos demais mortos e desaparecidos e também no pedido individual sobre o Fernando. Outra medida que pensamos é recorrer à Anistia Internacional, onde também já temos um pedido de informações, para que sejam dadas respostas, inclusive aos jornais fora do Brasil que publicaram, como o ‘The New York Times’ e o ‘El País’, e como denúncia da situação, para que se tomem medidas.

Porque ele está se sentindo o ditador que pode fazer o que quer. Mais que um ditador, de fato. Um imperador. Parece que ele pode fazer qualquer coisa, que é dono do Brasil e as instituições não existem, ele não respeita. E a gente não pode tolerar isso.

Recentemente dei uma entrevista e afirmei que tenho medo dele, porque ele parece um psicopata. Tem uma coisa de ódio, de falta de limites.

Essa é uma outra questão. Seu sobrinho, o Felipe, afirmou que o que presidente não aceita é o posicionamento democrático da OAB. Num documentário sobre os 25 anos da morte de Fernando você afirmara algo parecido sobre os torturadores que atuaram contra você, sobre o prazer sentido por aqueles criminosos com o controle de corpos rebelados. Que similaridades você enxerga hoje com aquele período, tendo em vista que, em tese, estamos numa democracia?

Às vezes sinto mesma sensação da tortura, e o sentimento mais forte quando a gente está na situação da tortura é a sensação de impotência. Saber que aquela monstruosidade que está ali tem pés de barro, são pessoas doentes, mas você está numa situação de impotência, porque ele está ali com todo o poder sobre seu corpo, sua alma. Eu lembro de um torturador que disse pra mim, quando eu já estava desesperada com toda a dor e disse a ele que me matasse, e ele me disse, com o mesmo olhar que o Bolsonaro diz as coisas mais loucas que ele fala: ‘Eu te mato se eu quiser, e quando eu quiser’. ‘Eu vou te fazer em pedacinhos’. E isso era uma verdade absoluta. Então é esse sentimento de impotência diante do ‘Eu faço o que eu quero’.

E é isso o que o Bolsonaro está dizendo à Nação. ‘Eu faço o que eu quero, quando eu quiser afronto as instituições, minto, faço o que eu quiser e quando eu quiser’. Essa é a imagem que eu hoje tenho do Bolsonaro, que ele está achando que pode fazer isso com a Nação. O torturador dizia que ia fazer comigo, e ele está achando que pode fazer com a Nação. Não pode! É preciso por um limite a ele. Ele precisa saber que não tem esse poder absoluto sobre a gente, sobre o país.

O que ele tem tido sobre a população negra, sobre a população pobre, sobre a diversidade sexual, é um absurdo, uma coisa que realmente extrapola todos os limites. Um presidente [da República] dizer que prefere um filho morto a um filho gay?!? Ele tem que sofrer um impeachment imediatamente. Não podemos mais aceitar tanta vergonha diante do mundo. Ele queria ser o Trump, mas o ultrapassou. Eu avalio que, à exceção da base dele, com quem ele quer falar, essa postura explica a perda de apoio que ele teve nesses sete meses de governo, que foram um balde de água fria sobre quem acreditou que ele ia modificar sua atuação. E o que vem por aí a gente não sabe, como já se demonstra com a [‘reforma’] da Previdência.

O caso do Fernando, de pegar a questão dos direitos humanos e misturar o público com o privado, como diz o Felipe, usar esse tipo de expediente numa polêmica com um adversário – recorrer ao assassinato do pai da pessoa, que morreu quando ele tinha dois anos de idade e tentar desmoralizar a imagem deste pai – é uma coisa que eu nunca vi. Uma pessoa fazer coisas desse nível no cargo que ocupa? Ele não estava falando no botequim, ele é o presidente da República.

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