57 anos depois, reafirmamos: ditadura nunca mais!


02/04/2021 - Redação
Conhecer a história para não a repetir: nota da diretoria do Sintrajud sobre a persistência de 1964 e os últimos desdobramentos da crise política atual.

Estamos completando 57 anos do golpe a partir do qual teve início em nosso país uma sangrenta ditadura empresarial-militar de mais de duas décadas, que se instalou e se sustentou suprimindo direitos e garantias fundamentais, censurou, corrompeu, perseguiu, torturou e matou.

Nesse momento, vimos a maior crise na cúpula das Forças Armadas desde a chamada redemocratização, com a queda combinada do ministro da Defesa – um general – e dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.

Esse tremor é mais uma extensão da crise política que permeia e se aprofunda no governo Bolsonaro. Acuado, tentou elevar o tom e dar mais um passo na tentativa de solapar as liberdades democráticas e subordinar a cúpula militar a seus arroubos golpistas e autoritários. Somente nesse mês de março, o presidente referiu-se aos militares por pelo menos três vezes como “meu Exército”, ao atacar as medidas de isolamento determinadas pelos governos estaduais. Ao mesmo tempo em que não encontrou o respaldo almejado para sua escalada, com as trocas ministeriais busca ampliar sua base de sustentação entre as polícias e os parlamentares e partidos do “centrão”.

Enquanto isso, setores bolsonaristas também dentro do Congresso tentam incitar motins policiais e defendem proposta, flagrantemente inconstitucional, de atribuição de amplos poderes de intervenção ao governo federal sobre os demais entes da federação.

Esse novo episódio da crise, no entanto, não significa um reposicionamento dos militares em relação às instituições, nem encobre o fato de integrarem o núcleo central do governo, de forma que são corresponsáveis diretos por suas políticas. São milhares de cargos ocupados no poder Executivo, incluindo ministérios e outros postos de alto escalão. O caso mais notável foi no ministério da Saúde, com a desastrosa gestão do general Eduardo Pazuello, que como mais um preposto de Bolsonaro, na lógica do “um manda, outro obedece”, mergulhou em sangue também, e novamente, a imagem das Forças Armadas.

O novo ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, ocupava até então o posto de ministro da Casa Civil, e foi o interventor de Michel Temer no estado do Rio de Janeiro em 2018, em ação que foi amplamente contestada tanto por suas premissas, quanto por seus objetivos e resultados. Além de antecipar-se à entrega dos cargos e dispensar a mando de Bolsonaro os comandantes das Forças, um de seus primeiros atos no ministério foi emitir ordem do dia “celebrando” o “movimento” de 1964, em um gesto não inédito de revisionismo que seria impensável, por exemplo, em outros países da América do Sul onde, diferentemente do Brasil, houve punição a militares assassinos e torturadores e seus cúmplices, como Argentina, Uruguai ou Chile.

Da mesma forma procedeu o seu antecessor, general Fernando Azevedo e Silva, nos dois anos anteriores. Agora desafeto, Azevedo chegou a sobrevoar com Bolsonaro atos de rua estimulados pelo governo, atentatórios à democracia, em defesa de “intervenção militar” e pelo fechamento das instituições.

Cada novo episódio dessa crise confirma o caráter elitista e precário do arranjo político que, em meio à ampla pressão popular que enfrentava a ditadura e exigia democracia e direitos, pretendeu manter intocados os interesses e privilégios do “andar de cima”, e estabeleceu uma anistia que preservou e manteve na cena política agentes diretos e indiretos dos crimes de lesa-humanidade praticados em nome do Estado. Não houve no Brasil um traço de justiça de transição, o que nos prende ao passado como em um movimento circular de retorno. A tão celebrada Nova República, que nos últimos anos vem escancarando seus limites, foi a mudança por cima para manter por baixo as engrenagens profundas da perpetuação do Estado autoritário, da economia periférica, e da sociedade desigual.

O Poder Judiciário não se furtou a colaborar nesse arranjo. Há duas semanas, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região acatou recurso do governo federal e autorizou a manutenção da ordem do dia subscrita no ano passado pelo então ministro da Defesa, general Azevedo, enaltecendo o golpe de 1964. O próprio Supremo Tribunal Federal já negou revisão e sustenta interpretação da lei da Anistia que lhe confere caráter “amplo, geral e irrestrito”, inclusive em relação a atos de tortura praticados por representantes do Estado. Deve-se destacar também a declaração pública em 2018 do então presidente da Corte, Dias Toffoli, que também definiu o golpe militar como “movimento de 1964”, e a condescendência ou simples silêncio da Suprema Corte, desde então, frente a sucessivas declarações e gestos palacianos atentatórios às liberdades democráticas e à Constituição, no que não fica atrás a Procuradoria-Geral da República.

Essa invocação da lei da Anistia é um dos fundamentos para diversas decisões judiciais negando a responsabilização de agentes da ditadura. Nesse mês de março, os desembargadores Johonsom di Salvo, Diva Malerbi, Toru Yamamoto e Souza Ribeiro, da 6ª Turma do TRF da 3ª Região, foram além. Em julgamento por unanimidade de remessa oficial – isto é, sem que tenha sequer havido recurso voluntário da União, sob voto condutor do primeiro, eivado de juízos de valor, foi revertida sentença que concedia indenização à viúva de Antonio Torini, que foi perseguido, torturado e preso por opôr-se ao regime de arbítrio – conforme reconheceu, inclusive, a própria Comissão de Anistia do ministério da Justiça.

De acordo com os julgadores, que conferem ares de legitimidade à “opção política vigente” imposta por meio de um golpe de Estado, na condição de “infrator das leis vigentes”, a vítima teria assumido as consequências do “direito repressivo vigente”. Torini era empregado da Volkswagen, empresa cuja colaboração ativa e intensa com a ditadura foi confirmada em relatório produzido pelos Ministérios Públicos Federal, Estadual e do Trabalho em São Paulo, a partir de investigação iniciada em 2015. No ano passado, foi firmado um acordo entre a empresa e o MP – considerado insuficiente por representantes dos trabalhadores e especialistas na área de direitos humanos – prevendo o pagamento de indenizações, o reconhecimento dos fatos e retratação.

Nessa esteira, observa-se que não mudaram, também, a permeabilidade do sistema político nem a tolerância – e periodicamente o apoio ativo, sem hesitação – de grandes empresários e proprietários em relação ao autoritarismo e à violência como meio de “solução” de demandas sociais e de prevalência de seus interesses, quando esse recurso se fizer conveniente. Desde a simples possibilidade de candidatura e eleição de um presidente cuja defesa da tortura e da ditadura nunca foi uma surpresa, “aceitável” em troca do programa ultraliberal de desmonte dos direitos e completo loteamento do que ainda há de público por interesses privados, até a recente e hipócrita carta de banqueiros, empresários e seus economistas, que aguardaram pacientemente a marca oficial aproximada de 300 mil mortos e o mais absoluto caos para, de modo cortês, criticar a gestão da pandemia sob Bolsonaro, defender uma “agenda responsável”, e dizer que “o Brasil exige respeito”, mais uma frase de efeito entre tantas.

Depois de sucessivas reformas do Estado, da Previdência, e trabalhistas, a atual guerra declarada contra os trabalhadores visa pôr termo, em definitivo, ao pacto de 1988, considerado não mais sustentável pelos detentores dos poderes econômico e político no país, pelas atuais exigências do capital e da forma de inserção do Brasil na economia mundial. Exemplos dessa recente ofensiva são a “reforma” administrativa, que desfigura os serviços públicos e as respectivas carreiras e subordina por completo os direitos sociais aos imperativos do mercado financeiro e ao princípio da “subsidiariedade”; a tentativa de acabar com as vinculações constitucionais para direitos como educação e saúde e a extinção de fundos públicos; e a entrega dos patrimônios e espaços públicos ainda existentes para exploração privada, entre outros.

Desse modo, embora o governo Bolsonaro seja eivado de contradições e tenha fragilidades, os trabalhadores não poderão contar em sua defesa com as instituições reputadas diariamente como “sólidas” pelos comentaristas dos noticiários televisivos, subordinadas que estão ao programa político amplo dos poderosos que divergem tão somente quanto à intensidade da violência a ser empregada na marcha das “reformas”. O único caminho consistente para enfrentar o golpismo e a barbárie sanitária e social e para construir uma alternativa à ordem política em decomposição, que não seja a saída autoritária de Bolsonaro e seus apoiadores abertos ou velados para o impasse profundo em que se encontra o país, é a luta organizada e unitária da classe trabalhadora em defesa dos seus direitos civis, políticos, e principalmente sociais. E para isso não é possível esperar as eleições de 2022.

O Brasil é disparado o epicentro mundial da pandemia, com sucessivos recordes de mortes, cujo teto no ritmo atual não se consegue estimar. O colapso do sistema de saúde se expressa na falta de leitos hospitalares e de insumos básicos, como oxigênio e sedativos para internações. A vacinação segue em marcha absolutamente lenta, contradizendo o histórico de referência mundial do país em imunização coletiva, o que torna ainda mais grave o diagnóstico da situação.

Bolsonaro e seu governo seguem abandonando à própria sorte os trabalhadores, notadamente os mais pobres e vulneráveis, e os pequenos negócios, lançando-os à doença ou à fome – no que não se diferem além da superfície aqueles governadores e prefeitos que estão mais preocupados com as próximas eleições. Ele segue ainda cometendo reiterados e sucessivos crimes contra a saúde pública, com seu negacionismo e exemplos do que não fazer, ao desdenhar e ridicularizar o distanciamento social, a higiene e o uso de máscaras, ao defender tratamentos médicos sem eficácia comprovada, ao defender o contágio generalizado como suposto meio de imunização coletiva, e ao desqualificar e não promover a vacinação, entre incontáveis gestos.

Enquanto entrega resultados desastrosos na saúde e na economia, e vê cair seus índices de popularidade, Bolsonaro segue cavando espaços para seu projeto autoritário de poder, e aumenta o nível das barganhas no Congresso com os mesmos de sempre, como meio de tentar manter uma base de apoio e prevenir uma possível destituição. É preciso detê-lo como primeira condição para a superação da crise atual, o que por sua vez somente será possível com mais democracia, e não menos.

A compreensão e o acerto de contas com o passado são fundamentais para superá-lo, algo que a transição brasileira, articulada por cima, não levou a cabo. A história deve ser lembrada para não ser repetida. Sigamos fazendo também a nossa parte, por memória, verdade e justiça.

 

#ForaBolsonaroeMourão

#DitaduraNuncaMais

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