Reorganização produtiva e suicídio


02/03/2017 - joebetho

As formas de gestão e produção passaram por grandes mudanças relativamente recentes em sua história, denominadas por vezes como reestruturação produtiva ou acumulação flexível. Enquanto para o capital a flexibilidade envolve a competição macroeconômica, exigindo capacidade reorganizativa das empresas ante as flutuações do mercado, para o trabalhador isso significa precarização, maiores exigências profissionais, baixos salários, jornadas prolongadas, eclosão de novas doenças e reaparecimento de velhas doenças em um novo cenário de acentuado individualismo. Assim, a precarização transformou o trabalho em emprego com incertezas, sem direitos ou com poucos direitos.

Alguns elementos dessa nova forma de organização da produção podem ser sentidos nas relações de trabalho dos mais diversos setores, incluindo serviços e mesmo no funcionalismo público. A mudança de denominação de “trabalhadores” para “colaboradores”, por exemplo, não é meramente estética ou superficial. Representa uma alteração do que será exigido deles a partir de então. Inicia-se um modelo que requer dos empregados uma identificação com a empresa, que “vistam a camisa” e coloquem também sua emoção, motivação e afeto à disposição dos objetivos da empresa. A subjetividade é colonizada pela empresa.

A adoção do discurso dos “vencedores” e “perdedores” no local de trabalho cria um ambiente para estimular os trabalhadores a dedicarem-se ao máximo para fugirem do estigma de improdutivos e perdedores. O individualismo competitivo que é incentivado nesse modelo vai minando as relações pessoais entre os trabalhadores e tornando o ambiente cada vez mais hostil.

Assim, o grupo, que seria principal defesa dos trabalhadores contra a exploração e as arbitrariedades, esfacela-se, perdendo seus laços de solidariedade. Mais que isso: os próprios colegas, imersos no clima de competição, acabam às vezes por serem autores, cúmplices ou coniventes com as agressões aos trabalhadores. Aqueles que, por quaisquer motivos, não se ajustam a essa situação são deixados de lado, vistos como inúteis, fracos, improdutivos e tendem a internalizar tal julgamento, sentindo-se culpados, envergonhados e humilhados.

Esse ambiente hostil é também um ambiente fértil ao assédio moral. Diferentemente da agressão do “todos contra todos” da competição acirrada, o assédio torna-se uma agressão realizada de forma sistemática e que tem origem e destino, isto é, possui autor ou autores e possui vitima ou vítimas. Não é a ação agressiva indistinta e generalizada que não se enquadra em assédio moral, mas não deixa de ser um grande problema, que inclusive contribui para o surgimento do assédio.

Os motivos para a realização de tal violência psicológica podem ser diversos, mas majoritariamente estão ligados ao poder no local de trabalho – uma pessoa ou grupo adota como objetivo se livrar de um subordinado ou colega de trabalho e utiliza a agressão sistemática para isso. O trabalhador vítima normalmente não percebe essa intenção e acredita que as agressões são respostas a supostos problemas reais de seu comportamento e rendimento no trabalho, esforçando-se para se adequar e produzir mais. Como o problema não está na própria vítima, a alteração de comportamento não faz cessar as agressões, desqualificações e ofensas. Isso vai gerando sofrimento, julgamento de incompetência, perda de autoconfiança, culpa, vergonha e adoecimento. O tempo não é capaz de amenizar essa situação; pelo contrário, tende a piorar.

Os colegas de trabalho, devido ao clima de competição e ao medo de se tornarem as próximas vítimas dessa violência psicológica, evitam solidarizar-se com os assediados, criando uma situação de grande isolamento. Tudo isso cria no assediado uma sensação de beco sem saída, de impossibilidade de solução e melhora, levando a um forte sentimento de desesperança e total desmotivação, podendo achar que a morte é a única saída possível para acabar com esse sofrimento.

Com o isolamento por parte do chefe, dos colegas e muitas vezes do próprio trabalhador, que de tão envergonhado e culpado evita interação com os colegas, o sujeito se vê ilhado. Os laços afetivos no trabalho, tão importantes à saúde mental, são desfeitos.

Os problemas no trabalho tendem a afetar negativamente também outras esferas da vida do sujeito, abalando muitas vezes relações conjugais e familiares, além de gerar isolamento em relação a amizades e outros meios sociais. Ademais, o significado financeiro do trabalho é também muito importante, pois perder determinados benefícios pode significar piora no padrão de vida, e sair do emprego para fugir da violência ou mesmo ser demitido pode ter efeitos drásticos na subjetividade do trabalhador. A perda do sustento e a possibilidade de ter de enfrentar o desemprego é outro fenômeno social devastador para a saúde mental.

A falta de qualquer apoio no trabalho para enfrentar isso é agravada quando a vítima não consegue falar sobre o tema com amigos e conhecidos – o que ocorre principalmente com homens que, devido à cultura machista, evitam expor seus sentimentos. Tudo isso constitui uma experiência subjetiva devastadora. E, se o trabalho pode ser algo que dá sentido à vida, algo que muitas vezes dita o nosso papel na sociedade, que nos faz nos sentirmos úteis e capazes, quando o trabalho perde o sentido, torna-se fonte de agressão, violência e sentimento de incompetência. Daí a vida pode também perder seu sentido, podendo levar as vítimas a tirar as próprias vidas. O sofrimento pode ser tão intenso e parecer tão inescapável que a morte pode ser vista como única forma de se livrar dele. O que se busca não é acabar com a vida, mas sim com o sofrimento. São suicídios que, se as vitimas tivessem um ambiente de trabalho saudável, seriam evitados.

O assédio moral não é um fenômeno novo, mas os relatos sobre isso aumentaram muito  após as mudanças recentes na produção. Conforme relata Christophe Dejours, o suicídio no trabalho é algo relativamente novo, surgido também nas últimas décadas. Pelo que se encontra na literatura científica sobre o tema, não é superficial dizer que o aumento do suicídio e o aumento do assédio moral estão interligados, como também estão relacionados com a reestruturação produtiva. Pesquisa feita com dois grupos de trabalhadores do Canadá aponta que, do primeiro grupo, composto majoritariamente de mulheres trabalhadoras da saúde, 14,3% apresentavam desespero e do segundo grupo, majoritariamente formado por homens engenheiros, 6,8% apresentavam desespero. O autor aponta que desespero é o indicador mais importante para a ocorrência do suicídio, mais que a própria depressão.

Identificar se um suicídio está ligado principalmente ao trabalho ou ao assédio é uma tarefa bastante difícil, ainda mais em larga escala. Na busca de estatísticas sobre o tema, cada vez mais pesquisadores apontam que, em geral, os suicídios ocorridos no local de trabalho são uma mensagem sobre a violência no trabalho, que possui um caráter importante de denúncia sobre o que ocorre ali.

Os que não ocorrem no local de trabalho são mais complexos, mas podem também ser conseqüência da violência no trabalho e do assédio moral. Mas é comum que as empresas tentem sempre se isentar, buscando elementos da vida do trabalhador que possam apontar como causa do suicídio.

Todas essas ponderações e novos casos são um alerta inegavelmente importante para a situação dos ambientes e dos colegas de trabalho. É urgente que esse assunto seja mais amplamente discutido, partindo primordialmente da responsabilidade dos empregadores e superiores hierárquicos em garantir um espaço acolhedor e saudável para os funcionários. Mas não só: é necessário que discutamos mais a fundo o tema da saúde mental em todos os âmbitos. Tanto porque isso envolve uma melhoria na qualidade de vida de todos, mas também porque é capaz de, em casos extremos, salvar vidas.

(*) Daniel Luca é psicólogo é assessor do Sindicato na área de saúde do trabalhador.

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Relação do suicídio com a crise econômica, dificuldades financeiras e desemprego
Mitos e fatos sobre o suicídio

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